Conheça o trabalho da Fundaj na pesquisa sobre pesca artesanal
A colaboração entre comunidades pesqueiras e pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco resulta em intervenções nos territórios
Por Letícia Barbosa
![](https://static.wixstatic.com/media/683a6e_3c0e71dab030438689c50ed6088ba580~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_656,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/683a6e_3c0e71dab030438689c50ed6088ba580~mv2.jpg)
As comunidades pesqueiras ocupam parcela significativa do território pernambucano. Elas são exemplos dos chamados povos e comunidades tradicionais (PCTs), de acordo com a definição do Decreto 6.040, de 2007. A comunidade Engenho Siqueira é uma dos PCTs de Pernambuco. Localizado no município de Rio Formoso, na Zona da Mata do estado, é um território marcado pela herança quilombola e indígena, assim como pela pesca artesanal que estrutura a organização social local.
Moacir Correia, líder comunitário e idealizador do Museu Remanescente Engenho Siqueira, defende a valorização da cultura e a transmissão das tradições como forma de fortalecer a identidade da comunidade. Para isso, o museu construído em sua própria casa em 2014 tem sido um grande aliado. Ele conta que o desejo de montar o acervo para visitação veio à medida que entendia o processo de escravização no Brasil. “O senhor de engenho colocava um escravo no tronco, dava uma surra, dava um um banho de mel e dava pro boi lamber. (...) Trabalho escravo de 12 horas por dia, 16. Baseado nessa história, decidi montar o museu”, explica Moacir.
No início, a proposta não era bem vista no território, e o próprio título de quilombola, conquistado em 2005, não era apreciado amplamente. Porém, nestes dez anos de atividades, o equipamento cultural se tornou orgulho e até fonte de renda devido à prática do turismo de base comunitária. “A comunidade ficou meio assim 'mas pra que fazer museu, pra que serve?'. Hoje em dia ninguém fala [mal] do museu”, declara o pescador.
O que são PCTs? O Decreto 6.040, de 2007, define povos e comunidades tradicionais (PCTs) como “grupos culturalmente diferenciados e que se reconhecem como tais, que possuem formas próprias de organização social, que ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição”.
Museus comunitários como o de Engenho Siqueira são formas de construir conhecimento e fomentar a autorrepresentação por parte das comunidades pesqueiras. “Tudo que a gente encontra lá não é objeto de outro planeta. Só tem da vida de pesca, como corisco, por exemplo. Rochas sem valor comercial, só valor cultural. As rochas que cortavam, que tratavam a galinha, o pato, um peixe. Então tudo isso que quis trazer para as pessoas para entender de onde nós viemos e quem somos. Não posso mais tirar do lugar, não posso vender. Para mim, hoje o museu é importante , ele é a cultura”, pontua Moacir.
![Moacir Correia, representante da Comunidade Quilombola Engenho Siqueira, em evento na Fundaj. / Letícia Barbosa (Revista Coletiva)](https://static.wixstatic.com/media/683a6e_296427b15a3b469f9fc9296d6175fadd~mv2.jpg/v1/fill/w_980,h_490,al_c,q_85,usm_0.66_1.00_0.01,enc_avif,quality_auto/683a6e_296427b15a3b469f9fc9296d6175fadd~mv2.jpg)
Quanto ao acervo, o líder comunitário conta que começou a coleção desde criança com itens que ia encontrando no decorrer das atividades do cotidiano, como a pesca e a agricultura, muito presentes em sua vida. “Eu iniciei a minha vida na agricultura aos 8 anos e antes de nascer já pescava na barriga da minha mãe grávida. E depois de nascido me levava com ela. E no pescado, virei pescador”, declara ele.
Para Moacir, os pescadores e pescadoras artesanais, bem como as pessoas que se dedicam à agricultura, são essenciais ao funcionamento da sociedade.
“Sem o agricultor, sem o pescador, o médico não faz cirurgia. Com fome, professor, não leciona. O carro depende da agricultura. O astronauta não come vento. Submarino, minerador, tudo depende da comida, e essa comida tá no mar e tá na terra. E pasmem, as guerras só se ganham quando soldados estão com alimento. Como um soldado vai brigar com fome? Até a guerra, que infelizmente existe, depende do alimento. Tem um dito assim: ‘não sejais contra quem produz alimentos’” , argumenta.
Em conexão com a temática, a Fundação Joaquim Nabuco tem forte atuação na pesquisa e imersão em territórios pesqueiros. Por meio da troca de saberes, resultados positivos já podem ser observados. Nesta edição do Pesquisa+, vamos conhecer um pouco de quais os aspectos da pesca artesanal têm sido explorados na instituição.
Por dentro da Fundaj
A Diretoria de Pesquisa Sociais (Dipes) vem se articulando em torno da temática pesca artesanal e sustentabilidade socioambiental desde 2006. Por meio de pesquisa, formação e documentação, o setor realiza estudos e seminários para lançar luz sobre aspectos interdisciplinares da cultura pesqueira . As iniciativas se renovam ainda com a orientação dos estudantes de graduação que ingressam no Programa de Iniciação Científica (PIBIC).
Entre os pesquisadores que se debruçam sobre a temática pesqueira na instituição está Beatriz Mesquita. Doutora em recursos pesqueiros e aquicultura, ela faz pesquisas relacionadas à questão socioambiental e a comunidades tradicionais e seus saberes. Justiça ambiental, recursos naturais comuns, governança, conflitos socioambientais, áreas protegidas e pesca artesanal também são temas de interesse da pesquisadora. Além disso, Beatriz tem participação ativa em redes e coletivos que discutem essas temáticas.
Doutor em Ciências Sociais, Pedro Silveira vem cruzando os estudos da Ecologia com a Antropologia. São as teorias e metodologias antropológicas que o guiam nas pesquisas sobre paisagens e conflitos socioambientais. Além disso, sua trajetória acadêmica perpassa temas como a relação natureza e cultura, práticas de conhecimento, ecologia política, territórios tradicionais, pesca artesanal e agrobiodiversidade.
Já Tarcísio Quinamo é mestre em desenvolvimento e meio ambiente e especialista em Economia. Suas pesquisas são em torno de Unidades de Conservação da Natureza, impactos sociais e ecológicos, comunidades tradicionais e pesca artesanal.
Política de resíduos sólidos nos territórios pesqueiros
A doutora em recursos pesqueiros, Beatriz Mesquita, aproximou-se da pesca artesanal como objeto de estudo logo no início de sua carreira. “Quando formada, eu tive uma bolsa de trabalho na [Universidade] Rural [de Pernambuco] com comunidades pesqueiras. Foi meu primeiro encontro com a pesca artesanal. Depois eu fui fazer mestrado, saí e trabalhei com ICMS Ecológico, na Secretaria do Meio Ambiente, quando me afastei um pouco dessa área. Mas quando eu vim para Fundação [Joaquim Nabuco], eu voltei a trabalhar com pesca artesanal”, conta Beatriz ao Pesquisa+.
Atualmente, sua pesquisa é voltada para pensar a governança e em como ela afeta as comunidades pesqueiras e sua atividade laboral. De acordo com a pesquisadora, a inspiração veio de uma conversa com a colega Verônica Fernandes, que também integra o quadro da instituição. Considerando meio ambiente e educação, as duas perceberam que grande parte do problema enfrentado pelos pescadores e pescadoras têm origem fora de suas atividades, mas no contexto de gestão e articulações sociopolíticas que o atravessam.
“Hoje um dos principais problemas da pesca é o lixo no mar. O lixo enrosca nos motores dos barcos. Em cidades grandes, isso é um grande problema. No arrasto de camarão, você arrasta mais plástico do que camarão”, exemplifica a pesquisadora.
Além disso, a poluição encarece a atividade de sobrevivência desse grupo. “Quanto mais lixo tem na rede, mais combustível se gasta, e assim mais cara é a pesca. Então, o impacto desse lixo na nossa costa é muito maior do que o que a gente vê na praia. A política de resíduos sólidos não só influencia a pesca poluindo, mas também [impactando] diretamente as operações de pesca”, completa Beatriz.
O turismo, as unidades de conservação e os espaços de participação popular (ou a ausência deles) nas decisões governamentais também são aspectos apontados pela pesquisadora como relevantes ao cotidiano das comunidades pesqueiras. Para ela, assim como no meio ambiente, onde tudo se interliga , todas essas articulações são dependentes entre si.
Nesse sentido, Governança ambiental em municípios costeiros do Nordeste é o título que recebe o mais recente trabalho de Beatriz Mesquita, com a colaboração de Verônica Fernandes. “A ideia é olhar o meio ambiente e a sua governança como um todo, o que inclui a pesca; mas o objetivo principal é ver como o meio ambiente está sendo tratado lá na ponta, isto é, no município”, descreve Beatriz.
Um ponto fundamental da pesquisa é o conceito de “governança”. Sobre isso, Beatriz defende que “é um conceito mais ampliado, onde o poder está não só no governo que legisla, que legitima, que coloca em ação as políticas públicas, mas também na sociedade civil”. Dessa forma, por meio de análise de conteúdo e entrevistas, a equipe vem estudando o assunto por meio da perspectiva das gestões municipais, bem como de ONGs, cooperativas de catadores, associações, organizações de turismo comunitário, entre outros atores sociais.
A imersão nos territórios a partir da pesquisa de campo é parte do processo. A metodologia ajuda verificar o que realmente acontece na prática, para além do que está documentado. A interação com as pessoas é outro diferencial. Os momentos de interação elucidam ideias nos próprios agentes locais, provocando reflexões acerca do que pode ser feito a partir dos questionamentos da equipe de pesquisadores.
“A gente não só levanta informações mais realistas, mas, ao mesmo tempo, quando a nossa instituição vai a campo, a gente tá fazendo uma espécie de extensão também, porque aquelas visitas, aquelas reuniões, aquelas entrevistas também mexem com os atores sociais — e muito mais do que apenas responder uma pergunta no computador”, destaca Beatriz.
Como perspectiva futura, a pesquisadora da Fundaj ainda enxerga no trabalho o potencial desdobramento para a população dos municípios analisados. “A gente tá visualizando que o impacto da pandemia se prolonga em muitas temáticas. É interessante para as prefeituras [verificar] algumas políticas que foram paralisadas na pandemia: quer elas voltem ou não voltem da forma como eram realizadas antes.”
Ao todo, 53 municípios foram incluídos nos estudos. Em 2022, a pesquisa iniciou com a região do São Francisco, abrangendo 7 municípios. Já em 2023, foi a vez de outras localidades de Sergipe, Alagoas, Pernambuco e Rio Grande do Norte. Em Pernambuco, Barreiros, Itamaracá, Goiana e Abreu e Lima estão entre os municípios visitados. Em 2024, o projeto se expande para Bahia, Ceará, Piauí e Maranhão, onde será preciso contratar consultores dos respectivos estados.
O trabalho se desdobra ainda na atividade de Iniciação Científica da Fundaj. O estudante Wesley Santiago participa do programa desenvolvendo a pesquisa com o tema Unidades de conservação e gestão municipal na costa nordestina, sob orientação de Beatriz Mesquita. Ele tem direcionado o olhar para a governança no contexto dessas regiões de proteção a partir de revisão de literatura e análise de conteúdo de entrevistas para identificar como se relaciona o gerenciamento das UCs e de outras áreas ambientais em caráter municipal.
Para Wesley, o tema é urgente. “Mediante o cenário que estamos vivendo de mudanças climáticas, alterações no ambiente marinho, desastres naturais e tantos outros, nunca foi tão imperativa a gestão ambiental eficiente. Essa gestão ambiental precisa acontecer nas três esferas do governo, seja ela municipal, estadual ou federal. Mas o município ganha uma atenção maior pelo fato de ser nele que ocorrem as interações cotidianas”, argumenta o bolsista. Por meio de suas pesquisas, Wesley já entende que a poluição de uma região pode impactar outras áreas. “É preciso ter uma gestão conjunta com o objetivo de maximizar o objetivo, que é a preservação do meio ambiente”, afirma.
As primeiras conclusões são confirmadas por Beatriz Mesquita. Para ela, a falta de diálogo dos gestores públicos com a sociedade civil e entre si é um problema a ser superado. Além disso, há uma defasagem de iniciativas propostas de dentro das cidades, pois as políticas costumam vir do Poder Público Federal e Estadual para serem aplicadas.
Modos de existir a partir da atividade pesqueira
Pedro Silveira fortaleceu o contato com comunidades tradicionais por meio de suas pesquisas desde a graduação. “Eu já tinha trabalhado com pescadores ribeirinhos no Estado de São Paulo em um projeto de iniciação científica durante a graduação. Depois, durante o mestrado, eu trabalhei com comunidades tradicionais, entre elas as comunidades quilombolas em conflitos com os órgãos ambientais que vivem em áreas em que foram criados parques na região do Vale do Ribeira. No doutorado, eu trabalhei com a relação da Antropologia e Ecologia nas paisagens rurais de um município chamado São Luís do Paraitinga”, explica Pedro.
Na Fundaj desde 2007, o trabalho de Pedro na instituição começou por um projeto colaborativo. Liderada por Tarcísio Quinamo, e contando ainda com as pesquisadoras Solange Coutinho e Beatriz Mesquita, a pesquisa se chamava Dinâmicas ecológicas em ambientes estuarinos no nordeste brasileiro. “Eu fiz um estudo dentro desse projeto sobre por que e como se davam as reivindicações de criação de reservas extrativistas”, conta Pedro sobre sua atuação. A iniciativa viu nascer a Reserva Extrativista (Resex) Acaú-Goiana, a única que teria conseguido se estabelecer entre as áreas reivindicadas pelas comunidades pesqueiras incluídas na pesquisa.
Desse projeto, Pedro Silveira estabeleceu o primeiro contato com aqueles que seriam o seu foco dali em diante: os pescadores da região Nordeste . Após alguns anos de estudos sobre agroecologia e agrobiodiversidade, em 2016 ele dá início a uma nova proposta também colaborativa. Junto com Silveira, Rafael Buti, professor adjunto do Instituto de Humanidades e Letras da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab-BA), Lucas Pereira, na época doutorando em Antropologia Social pela Universidade de Brasília, sob orientação do professor Henyo Barretto, e Beatriz Mesquita, da Fundaj, compunham a equipe do projeto Ecologia política da pesca de crustáceos em manguezais do Nordeste brasileiro.
Essa pesquisa teve início em 2017 com o objetivo de compreender a relação dos modos de ser e existir dos pescadores com os ecossistemas de mangue e as espécies que neles vivem. Diante disso, lutas políticas em defesa de territórios como garantia de sobrevivência e de suas tradições foram aspectos também considerados. Para Pedro, as comunidades pesqueiras têm papel fundamental na preservação dos manguezais, e a manutenção de suas práticas beneficia toda a sociedade.
O escopo do trabalho parte das diferenças entre os caranguejos uçá, guaiamum e aratu, e como elas impactam nos modos de vida e na reivindicação política dos pescadores. “O caranguejo-uçá vive na lama dos manguezais,dentro dos manguezais; os caranguejos chamados de guaiamuns vivem em áreas próximas aos manguezais, nas áreas de mata ou de restinga, ou ainda em áreas agrícolas que ficam nas bordas dos manguezais, que são áreas muito sensíveis e que têm sido muito destruídas. Já os aratus, caranguejos menores, vivem entre o chão do manguezal e as árvores. No caso dos aratus, são caranguejos que são coletados principalmente por mulheres. Não só, mas principalmente, por mulheres —enquanto que o caranguejo-uçá e o guaiamum são atividades principalmente masculinas”, define Pedro.
No que se refere aos territórios, o pesquisador indica o critério da diversidade de condições e a viabilidade de recursos financeiros, e principalmente humanos, para a realização de estudos aprofundados. Nesse cenário, quatro áreas integram o projeto: Reserva Extrativista Acaú-Goiana, na divisa entre Pernambuco e Paraíba; Reserva Extrativista de Canavieiras, no sul da Bahia; São Francisco do Conde, no Recôncavo Baiano; e Delta do Rio Parnaíba, na divisa do Maranhão com o Piauí.
“Cada mangue é um mangue”, declara o pesquisador, citando a fala de pescadores sobre as particularidades do ecossistema em cada região. Pedro parte da perspectiva de que aspectos como conflitos locais e composição ambiental afetam as relações sociológicas de cada território analisado.
Em Acaú-Goiana tem-se a disputa de território com a monocultura de cana-de-açúcar e as fazendas de camarão. Já em Canavieiras, persiste a criação de camarão somado ao embate com as grandes produções de cacau e com a atividade turística muito intensa. A organização da comunidade pesqueira, por sua vez, é o que se destaca na avaliação de Pedro, servindo inclusive de exemplo para a Ressex de Pernambuco e Paraíba.
A situação de São Francisco do Conde diverge das anteriores por não contar com uma reserva. Apesar da existência oficial de uma área de proteção ambiental estadual, na prática ela não existe, e as comunidades estão em constante luta com a especulação imobiliária e para reduzir os efeitos das refinarias de petróleo instaladas no entorno. Por fim, no Delta do Parnaíba prevalece o comércio de caranguejo, fazendo com que haja uma maior organização no processo da pesca até o repasse para o consumidor final.
Outro ponto de diferenciação são as técnicas de captura dos caranguejos, que são alteradas de um território para outro ou mesmo ao longo das gerações. Algumas mudanças são influenciadas pelo objetivo de atingir uma melhor gestão ambiental, por exemplo. Sobre isso, Pedro pontua que a pesquisa teve o cuidado de não definir erros e acertos, mas sim entender o que era feito e, em colaboração com as comunidades, pensar em formas que funcionem para cada organização social.
“A gente confia muito na capacidade dos pescadores, a partir dos seus conhecimentos ancestrais e tradicionais, de conseguirem produzir novidades, inclusive tecnológicas, para continuar as suas atividades com essas referências”, afirma.
Os trabalhos realizados por Pedro Silveira e seus colegas da Fundaj no campo da pesca artesanal fizeram com que a instituição preenchesse cadeiras em conselhos e organizações do setor. Atualmente, Pedro ocupa uma das posições no Conselho Deliberativo da Ressex Acaú-Goiana. Tarcísio Quinamo e Solange Coutinho integram o Conselho Científico da mesma reserva.
Além disso, Ecologia política da pesca de crustáceos em manguezais do Nordeste brasileiro teve ainda como resultado a contribuição da equipe envolvida em audiências públicas e notas técnicas. Entre as atividades, está a elaboração do plano de manejo da reserva e a elaboração de planos específicos de uso de pesca. Pedro destaca um deles: “a gente produziu uma discussão que eu considero importante sobre o processo de proibição da pesca do guaiamum e as injustiças e possibilidades envolvidas nesse processo de proibição”. Ele se refere ao argumento da interdição baseado na pesca como ameaça de extinção ao animal. Entretanto, a destruição do habitat do guaiamum seria o real motivo para o problema, segundo ele, evidenciando um quadro de desigualdade social.
Para Pedro, a aliança do conhecimento científico com os saberes das comunidades pesqueiras é fundamental para o contexto atual — marcado pela emergência climática e a devastação ambiental. “Num processo em que a gente tem enchentes, subida do nível do mar, aumento da temperatura, branqueamento dos corais, diminuição das espécies, eles [os pescadores] estão o tempo todo lutando contra a contaminação dos manguezais, contra os resíduos da usina de cana-de-açúcar, os resíduos industriais; tentando impedir que sejam criados empreendimentos industriais nas áreas onde eles habitam. Então, é a partir dessa valorização e dessa colaboração com os movimentos da pesca, e da produção de conhecimento conjunto com esses pescadores, que a gente acha que pode aprimorar o debate sobre a produção e o incentivo aos modos de vida compatíveis com a existência da biodiversidade de um planeta equilibrado. Ao mesmo tempo, conseguimos ter argumentos para defender projetos políticos que contemplem esses modos de vida”, pontua o pesquisador.
Consciência ambiental em sintonia com a pesca artesanal
Traçando caminhos entre Economia e Ecologia, Tarcísio Quinamo conta que o ponto de partida para o seus estudos atuais foi o projeto Dinâmicas sociais e ecológicas em ambientes costeiros do nordeste brasileiro: interações e intervenções. Com início em 2007, a iniciativa contou com uma equipe formada por pesquisadores da Fundação Joaquim Nabuco, como Pedro Silveira, Beatriz Mesquita, Izaura Rufino, Lígia Melo e Solange Coutinho, além de Cristiano Ramalho, hoje Secretário Nacional da Pesca Artesanal. Como resultado, emergiu o Seminário Pesca Artesanal e Sustentabilidade Ambiental que se mantém ativo e já realizou seis edições.
A partir de 2017, Quinamo segue para um novo projeto, intitulado Unidades de conservação como lugares educadores. A pesquisa está na etapa final, com seus relatórios em processo de finalização. Coordenado pela doutora Solange Coutinho e com a participação da também doutora Edneida Cavalcanti, o estudo envolveu cinco desses lugares de proteção ambiental: o Monumento Natural do Rio São Francisco (Mona) dos Corais; a Área de Proteção Ambiental (APA) Costas dos Corais; a Reserva de Desenvolvimento Sustentável (Ressex) de Ponta de Tubarão, localizada no Rio Grande do Norte; o Parque Nacional do Catimbau, em Pernambuco; e a Reserva Extrativista Acaú-Goiana. Nas duas últimas foi realizado um trabalho de imersão por meio de oficinas.
“Inicialmente fizemos um levantamento do território com geoprocessamento para identificar as áreas das unidades [de conservação] que a gente tava trabalhando. [E para] identificar escolas também. No caso dessas duas áreas de aprofundamento, a gente teve um recorte de 10 km no entorno da unidade. Então, com levantamento em mãos, nós fizemos oficinas”, explica Tarcísio sobre a metodologia adotada.
As oficinas se dividiram em três temáticas: educomunicação, elaboração de programas e projetos de educação ambiental e avaliação da qualidade ambiental através de imagens. Cada uma das duas regiões foram divididas em duas áreas, que receberam as mesmas oficinas. Sendo assim, a Ressex Acaú-Goiana foi divida entre a parte que corresponde ao estado da Paraíba, formada por Caaporã e Pitimbu, e a região localizada em Pernambuco, que são as comunidades Baldo do Rio, Tejucupapo, Povoação de São Lourenço e Carne de Vaca. Para o Parque Nacional do Catimbau não foi diferente. Um grupo foi formado pelo município de Ibimirim e outro por Buíque e Tupanatinga.
Quinamo conta que as formações tinham o objetivo de buscar informações sobre os territórios ao mesmo tempo que compartilhavam com os professores, pescadores, guias turísticos, gestores e lideranças locais metodologias de trabalho acerca da conscientização ambiental. A percepção de seu próprio contexto por parte dos moradores e moradoras é o maior resultado, na visão do pesquisador. E isso se expressa tanto no cuidado com as unidades de conservação, quanto nas relações humanas.
“Muitos dos professores que atuam nessas áreas não tinham ainda muito conhecimento de que trabalhavam em um contexto de reserva extrativista, como a Resex de Acaú- Goiana”, explica.
Durante os encontros, os participantes tiveram a oportunidade de realizar um mapeamento colaborativo. O processo foi acontecendo desde a primeira oficina, a partir dos assuntos abordados. No final, a produção das comunidades paraibanas e das pernambucanas foi reunida em um único mapa que representava a Ressex Acaú-Goiana na visão de seus moradores e moradoras. O mesmo aconteceu com Buíque, Tupanatinga e Ibimirim, tendo como resultado um mapa participativo do Parque Nacional do Catimbau.
Já nas escolas, o desafio é aliar o cotidiano da pesca com o calendário escolar.
“Você tem educação formal dentro da escola. Mas tem a educação do pescador no dia a dia da pesca. A criança já vai acompanhando a mãe desde pequeno. O pescador é formado na maré ou no rio. Ele é formado pescador ali, não termina o estudo para entrar numa escola de pesca. E essas duas formações às vezes entram em conflito”, explica o pesquisador.
Ele acredita que o projeto contribuiu para uma sensibilização de educadores em relação aos alunos e alunas que estão ligados à pesca. “Os gestores e professores não tinham muita noção do público que eles trabalham, que são os pescadores artesanais ou filhos de pescadores. A partir do trabalho, houve um diálogo interessante porque também participaram das oficinas representantes e pescadores dessas comunidades, e com muitos deles representando as comunidades dentro do Conselho da Resex. Essa troca teve desdobramentos interessantes. Depois estavam os pescadores colaborando em atividades dentro das escolas, com estudantes dentro do trabalho de campo, trazendo informação sobre a Ressex e professores também se articulando com pescadores para atuar na comunidade”, destaca Tarcísio.
Compartilhando saberes
A interação entre os conhecimentos dos pesquisadores e das pessoas que estão fora do meio acadêmico é essencial para que algumas questões avancem, principalmente no contexto da pesca artesanal. E a participação em conselhos que pretendem contribuir para a preservação do território pesqueiro, a elaboração de documentos utilizados pelas comunidades para reivindicar seus direitos e o compartilhamento de técnicas e métodos de ensino-aprendizagem são alguns exemplos de como realizá-la.
As comunidades, por sua vez, oferecem um imenso acervo de conhecimentos e práticas tradicionais pelos quais lutam para preservar. Elas são também as primeiras a sentir os impactos da depredação ambiental, como as mudanças climáticas — e assim têm papel fundamental na resiliência dos ecossistemas. Dessa forma, são fontes inevitáveis para o trabalho dos pesquisadores e pesquisadoras.
Moacir Correia, pescador e um dos moradores da Comunidade Quilombola Engenho Siqueira é uma das pessoas que comprova esses argumentos. Ciente que tem feito sua parte com a administração do museu comunitário em seu território e ao falar por sua comunidade, é um exemplo desse compartilhamento de saberes. Ele costuma marcar presença nos seminários e outros eventos sobre a pesca, ao mesmo tempo em que pode contar com os levantamentos elaborados pelos estudos da instituição em suas reivindicações.
“A universidade tem o saber científico, a teoria. A gente sabe a prática. Isso é muito importante”, defende Moacir.
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