top of page

Industrianato: o que é e por que é uma ameaça ao artesanato nordestino



Foto: Cristiana Dias/Fenearte/ Divulgação

Por Maria Carolina Santos

Ele está nas lojinhas de aeroportos e rodoviárias, nos mercados populares das grandes cidades, em centros e feiras de artesanato. Quem passou nessas últimas semanas pelo Centro de Convenções de Pernambuco para visitar a Feira Nacional de Negócios do Artesanato, a Fenearte, com certeza se deparou com muitos exemplos dele. É o chamado industrianato, um termo que une ‘artesanato’ com ‘indústria’ para designar uma produção artesanal – ou nem tão artesanal assim – em série.


A pesquisa sobre esse tema faz parte do Projeto Artesanato no Nordeste Hoje, da Diretoria de Pesquisas Sociais (Dipes) da Fundação Joaquim Nabuco em parceria com universidades de cinco estados.


Um dos usos do termo industrianato é para denominar uma produção genérica, de itens produzidos em países como a China, que são comercializados com o nome de um destino – seja João Pessoa, Recife, São Paulo ou Rio de Janeiro – e que é encontrado em vários lugares, só com a mudança de nome. São chaveiros, barquinhos, porta-moedas, ímãs de geladeira.


“O primeiro contato que eu tive com esse termo foi por meio dos estudos do pesquisador Paulo Fernando Keller, da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que o usou para falar dessa produção artesanal seriada que ia perdendo o componente da criação, da inventividade. Um artesanato no qual não há aprimoramento da técnica, há reprodução em série”, diz o pesquisador e professor Márcio Sá, do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e um dos coordenadores do projeto.


“Podemos entender o industrianato como um fenômeno que abrange mesmo aquelas peças que não parecem ser peças do industrianato em sentido mais estrito. Há desde as peças em fôrmas, ou essa coisa massificada em que vários estados têm a mesma peça; e no extremo as peças made in China”, exemplifica Diogo Helal.

O pesquisador Diogo Helal, da Dipes/Fundaj, também coordenador do projeto de pesquisa, amplia o termo industrianato para a reprodução de peças que já foram originais e feitas de forma totalmente manual. “O trio de sanfoneiros de Vitalino, por exemplo, era uma representação do contexto da vida dele. Esse produto agora, além de ser um artesanato, representa um souvenir. Em qualquer lugar de artesanato em Pernambuco você encontra, de vários tamanhos, o trio de sanfoneiros em barro, que é feito de maneira quase como a da produção em massa. Você tem o braço, a cabeça, a perna; é como se fosse um conjunto de pecinhas que se montam”, afirma.


O leão de cerâmica de Tracunhaém, originalmente feito pelo artesão Nuca, é outro exemplo. “Nas peças mais antigas, o cabelinho do leão era todo feito à mão. Se você pegar uma peça mais nova, o cabelinho é feito usando uma fôrma. Há uma diferença nos modos de fazer. A peça do leão ganhou um status, e então se precisa reproduzir e entregar mais e mais para o mercado. Houve uma adaptação para que aquela peça pudesse ser feita em maior quantidade. O industrianato vai trabalhar com a ideia de massificação e de ampliação da produção”, detalha. “Na verdade, é um debate que permeia a própria Teoria Crítica, a discussão sobre a indústria cultural”, reflete Diogo Helal.


As tensões entre comércio e cultura


Por ser mais simples de fazer, os itens do industrianato possuem um preço competitivo, ganhando espaço em feiras e mercados. Márcio Sá explica que a dimensão econômica de grandes feiras favorecem o industrianato. “É um produto padronizado, pasteurizado, muito mais massificado. É algo que se coaduna muito bem com a dinâmica de uma sociedade de mercado que tira as marcas históricas e os vínculos daquilo que é ofertado”, diz.


Diogo Helal afirma que o artesanato tem duas dimensões, a dimensão econômica e a dimensão cultural. E o tensionamento entre essas duas dimensões sempre vai ocorrer. Quando se fala em políticas públicas, a dimensão econômica se mostra prevalente quando o artesanato está em secretarias estaduais ou municipais de base econômica, como secretarias de turismo, de desenvolvimento econômico, de empreendedorismo.


“Quando o fenômeno é visto de maneira mais intensa na perspectiva cultural, o artesanato se localiza nas secretarias de cultura. A tendência no Nordeste hoje é a dimensão econômica. Aí você tem o apelo das feiras, a questão da comercialização, a questão da geração de renda. E a Fenearte é um exemplo disso”, diz o pesquisador da Fundaj. “O que nós colocamos é que não existe uma dimensão mais importante do que a outra. O artesanato possui as duas dimensões enquanto fenômeno social”, afirma.



“Mas quando você tem um fenômeno multidimensional e você foca prioritariamente em uma dimensão, você tem vantagens e desvantagens”, continua o pesquisador. “Na dimensão econômica há perspectivas e resultados no curto prazo. Você vem para uma feira, a feira vendeu tantas peças, uma renda de tantos reais, atendeu a tantas pessoas. Só que isso não permite a perpetuação e a transmissão do conhecimento do artesanato”, critica ele.


Helal ainda afirma que, por vezes, há um processo reducionista do fenômeno como um todo. “Questões como a salvaguarda da tradição e a do patrimônio imaterial acabam não aparecendo, ou [só] aparecendo de maneira secundária, quando o foco é econômico”, diz. 


Ele dá como exemplo a Ilha do Ferro, em Alagoas, que tem ganhado destaque nos últimos anos pelo artesanato feito com madeira. “Tem aumentado a procura pelos artesãos, pelo contexto local e pelas obras, o que faz com que a madeira que servia de base para a feitura daquelas peças comece a rarear”, alerta.


Outro exemplo de como políticas públicas meramente comerciais afetam o artesanato está nas xilogravuras feitas em Bezerros, no Agreste pernambucano. “Em uma das visitas técnicas do nosso projeto de pesquisa, conversamos com o xilogravurista J. Borges e a família dele. Ele nos disse que se usava um tipo de madeira mais mole, mais maleável para talhar a matriz das xilogravuras. Essa madeira já não existe mais. Agora, J. Borges manda trazer um outro tipo de madeira, mais dura, com vários nós, o que gera dificuldades e acidentes na feitura da matriz”, conta Helal.


“Ou seja, não houve uma preocupação, uma reflexão – dado que o foco era a comercialização –, em preservar aquela madeira mais maleável para o trabalho. Reflexão semelhante encontramos em visita técnica ao Alto do Moura, onde os artesãos trabalhavam a partir de um barro que começa a faltar. São questões de meio ambiente e de sustentabilidade. E não estou nem falando da transmissão do conhecimento para as novas gerações e dos processos de aprendizado que também são imensamente prejudicados quando só se vê a dimensão econômica do artesanato”, afirma Helal.


O pesquisador da Fundaj Diogo Helal. Foto: MCS/Coletiva


Na Paraíba, a pesquisa de Márcio Sá entrevistou gestores públicos e artesãos que evidenciaram essas tensões também no Mercado de Artesanato Paraibano. “Foi um espaço pensado para a comercialização da produção artesanal paraibana, mas que hoje é muito mais tomado pela venda dessa produção genérica do industrianato do que necessariamente por aquilo que se faz como artesanato vinculado à identidade dos povos artesãos da Paraíba”, afirma.


A pesquisa feita na Paraíba identificou que o apelo do industrianato gera tensões inclusive entre os próprios artesãos. “Entrevistamos artesãos que participaram em janeiro do Salão do Artesanato Paraibano, e muitos não identificavam parte do que estava sendo vendido como sendo produção artesanal. Mas, ao mesmo tempo, para dar amplitude ao evento e para que ele possa contemplar uma série de trabalhadores manuais, abriga-se tipologias que são denominadas de ‘produtos criativos’. É uma trama com tensões que nos chamou atenção em termos investigativos”, afirma.


O Projeto Artesanato no Nordeste teve início em fevereiro de 2022 e segue até janeiro de 2025, com apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Na Fundaj e na UFPB, a pesquisa pode se estender por um prazo maior, indo até 2026. Além da Fundaj e da UFPB, o projeto conta com pesquisadores na Universidade Federal do Maranhão (UFMA), no Centro Acadêmico Agreste da Universidade Federal de Pernambuco (CAA-UFPE) e na Universidade Federal do Cariri, em Juazeiro do Norte, no Ceará.


A reprodução de matérias e fotografias é livre mediante a citação da revista Coletiva e da autoria do texto.



APOIO
LABJOR/UNICAMP
REALIZAÇÃO
FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO
régua .png
MEC.png
bottom of page