Em tempos de copa do mundo, futebol e política contribuíram para a construção de nossa identidade nacional
Túlio Velho Barreto
Em um ano em que coincidem a realização de uma Copa do Mundo de Futebol da FIFA, a se realizar na longínqua Rússia, e as eleições presidenciais no Brasil, vale a pena chamar a atenção para a relação entre o esporte preferido dos brasileiros, o futebol, e a política. Até porque, versa o senso comum, mas também certo discurso acadêmico, que, no Brasil, o futebol só passou a ser um instrumento mais efetivo da política e dos políticos após o golpe civil-militar de 1964 e até o seu ocaso. Mas, tanto em períodos autoritários quanto em períodos democráticos, futebol e política nunca foram absolutamente dissociados. Apenas para enfatizar tal fato, podemos relembrar dois episódios recentes, portanto, após o regime militar-civil, que findou em 1985: a realização do Jogo da Paz partida entre a seleção nacional e o Haiti, em 2004, em Porto Príncipe, capital daquele País, quando o Brasil liderava, ali, a Missão de Paz da ONU como parte da política exterior do então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva, e a escolha, em 2007, do Brasil como a sede da Copa do Mundo de 2014, também durante a gestão do petista.
Nesse caso, ainda estão em nossa memória a mobilização do então presidente e de vários governadores para que o evento ocorresse no Brasil e as diversas manifestações de apoio que o governo federal recebeu de quase todos os setores da população, da mídia, dos agentes econômicos, dos gestores públicos, dos políticos etc., quando do anúncio pela FIFA. Mas, igualmente, recordamos as enormes manifestações de muitos desses mesmos setores contra a sua realização, em especial quando da proximidade da Copa das Confederações, evento-teste da Copa do Mundo, que a antecede em um ano. O fato de o evento-FIFA não resultar de gastos privados, como prometido quando do anúncio oficial, mas, sim, de recursos públicos, contribuiu decisivamente para que manifestantes ganhassem as ruas defendendo mais investimentos para saúde, educação, moradia, transporte público etc. em contraposição aos gastos na construção ou reforma de arenas multiuso com o “padrão-FIFA”. Tais fatos, aliados às crescentes instabilidades econômica e política que se estabeleceram no País a partir de então, contribuíram para um enorme desgaste da então presidenta da República Dilma Rousseff. O dramático desfecho e suas consequências são bem conhecidos.
Contudo, aqui, não se pretende tratar desses episódios mais recentes e sim, destacar o uso do futebol, por exemplo, como importante ferramenta de um projeto político mais amplo, ou seja, a construção de nossa identidade nacional, sobretudo durante a ditadura do Estado Novo (1937-45), comandada por Getúlio Vargas, e entre 1950-64, quando se combinou precária democracia e populismo. Então, nada melhor do que observar como isso aconteceu tendo como foco a participação brasileira nesse evento de alcance mundial envolvendo representantes de várias nacionalidades. Será esclarecedor mirar, ainda que de soslaio, o comportamento de alguns dos nossos presidentes da República em tais ocasiões.
Na Era Vargas e no pós-Estado Novo
De maneira simbólica, a chamada Revolução de 1930, que levou Vargas ao poder, ocorreu no mesmo ano em que foi disputada a primeira Copa do Mundo, no Uruguai. Naquela ocasião, apenas um jogador de São Paulo aceitou integrar a seleção brasileira. A pendenga entre paulistas e cariocas no campo esportivo, que camuflava uma disputa entre os adeptos do amadorismo e do profissionalismo, afastou, por exemplo, o maior jogador brasileiro de então, Arthur Friedenreich, conhecido como “El tigre”, que atuava em São Paulo.
Quatro anos mais tarde, em 1934, ao mesmo tempo em que Vargas cedia às pressões políticas e populares, em especial dos revolucionários paulistas, ao convocar uma Assembleia Constituinte que dotaria o País de uma nova Carta Magna e o reconduziria ao cargo em eleição indireta, realizava-se, na Itália, a segunda Copa do Mundo. Na ocasião, apenas quatro paulistas aceitaram integrar a seleção brasileira. Além das questões futebolísticas, tal situação refletia igualmente uma disputa política, econômica e cultural entre a emergente São Paulo e o Rio de Janeiro, então Capital federal, e a pouca importância que a dimensão nacional tinha entre nós. Assim, só em 1938, o Brasil foi representado pelos melhores jogadores daqueles dois estados, já os dois maiores centros futebolísticos do País, o que possibilitou, portanto, a formação de uma seleção, digamos assim, nacional.
No final da década de 1930, com a adoção do profissionalismo, o futebol se popularizou, mas a verdadeira paixão dos torcedores ainda era por seus teams, como os times ainda eram conhecidos. A seleção brasileira tivera participação pífia nas duas primeiras Copas do Mundo e o chamado esporte bretão era dominado, na América do Sul, pelo Uruguai, que conquistara os títulos olímpicos, em 1924 e 28, e a Copa do Mundo de 1930, e pela Argentina, que disputava a hegemonia sul-americana, tendo vencido diversos torneios regionais. Porém, a história começaria a mudar, nos campos e nos gabinetes, a partir da Copa de 1938, disputada na França, quando o Brasil alcançou a semifinal. Apesar da derrota para a Itália, em jogo polêmico, o Brasil revelaria ao mundo dois de seus maiores jogadores, o “divino” Domingos da Guia e o “diamante negro” Leônidas da Silva, artilheiro e craque do torneio, e encantaria o mundo com seu futebol vistoso, embora ainda pouco eficiente.
Vargas ficou tão impressionado com a mobilização nacional em torno dos jogos e comoção que seu resultado causou, que anotou em seu diário: “O jogo monopolizou as atenções. A perda do team brasileiro para o italiano causou uma grande decepção e tristeza no espírito público, como se se tratasse de uma desgraça nacional”. Aí, possivelmente, percebeu o apelo popular do futebol e, certamente, o seu potencial como ferramenta para construir a almejada ideia de Nação, que, como tal, carecia ainda de identidade. Nesse sentido, o sociólogo Gilberto Freyre, com seus escritos sobre o que ele denominava de “foot-ball mulato”, os jornalistas Nelson Rodrigues e Mário Filho e o escritor José Lins do Rego – os dois últimos tiveram papel ativo em entidades e clubes esportivos – contribuiriam decisivamente para fazer do futebol relevante traço de nossa identidade cultural.
Do ponto de vista político, destaque-se que as comemorações do Dia do Trabalhador, em primeiro de maio, eram realizadas comumente nos dois maiores estádios de futebol do País: São Januário, no Rio, e Pacaembu, em São Paulo. Após o final da Segunda Grande Guerra, a construção do Maracanã, então o maior estádio de futebol do mundo, para sediar a Copa do Mundo de 1950, por um lado, e sua “conquista” antecipada, por outro lado, levaram os brasileiros da mobilização e euforia à enorme frustração. Foi exatamente Nelson Rodrigues quem melhor traduziu o sentimento da derrota: “Cada povo tem a sua irremediável catástrofe nacional, algo assim como uma Hiroshima. A nossa catástrofe, a nossa Hiroshima, foi a derrota frente ao Uruguai, em 1950”. Suas palavras dão a ideia precisa, porque ele se referia ao escrete nacional como “a pátria em calções e chuteiras”, pois, como tal, “representa os nossos defeitos e as nossas virtudes”.
Getúlio Vargas no estádio do Pacaembu, em evento de 1º de maio de 1944.
Foto: Reprodução do site do CPDOC/FGV
Nos anos seguintes, muito se discutiu sobre as razões da derrota. A culpa, de modo geral, recaiu sobre três jogadores, todos negros, acusados de terem falhado em momentos decisivos no jogo final. Assim, por decisão dos dirigentes do futebol brasileiro, teve início um processo de branqueamento da seleção, que perdurou até o segundo jogo da Copa do Mundo de 1958, na Suécia. No entanto, a versão do craque Zizinho para a “tragédia de 1950” é outra. Para ele, embora os jogadores não tivessem, naquela época, que atender a tantos procuradores e patrocinadores, como ocorre hoje, eles eram forçados a responder às insistentes demandas de políticos oportunistas e cartolas inconvenientes, que invadiam os alojamentos para discursar ou posar ao lado dos jogadores. Afinal, aquele era um ano de eleições gerais no país. Horas de repouso, refeições ou treinamentos foram suspensos, em especial às vésperas e no dia da final contra o Uruguai, quando a seleção desceu a serra e hospedou-se em São Januário.
Quatro anos mais tarde, na Copa da Suíça, a seleção chegou às quartas-de-final tendo que enfrentar a Hungria, campeã olímpica e, à época, considerada a melhor seleção do mundo. O Brasil foi novamente derrotado em outro jogo dramático, que ficou conhecido como a Batalha de Berna, face aos tumultos e agressões em campo. O árbitro inglês expulsou dois brasileiros, Nilton Santos e Humberto Tozzi, e a imprensa nacional o acusou de ser “agente do Kremlin” por favorecer um país comunista, enquanto a Confederação Brasileira de Desporto (CBD), em tempos de Guerra Fria, protestava, oficialmente, acusando-o de servir ao “comunismo internacional, contra a civilização ocidental e cristã”.
Futebol e política em tempos de democracia e populismo
Em 1958, na Suécia, o Brasil superaria, nas palavras de Nelson Rodrigues, o seu “complexo de vira-latas”, ao conquistar pela primeira vez uma Copa do Mundo. Na ocasião, Juscelino Kubtischek, o JK, que, apesar de ser um “presidente bossa nova”, não era exatamente um político popular, acompanhou atentamente o desempenho da seleção e o impacto que os resultados causavam. E também percebeu que o futebol poderia contribuir para torná-lo mais popular. Assim, após os primeiros jogos, convidou “seu” Amaro, pai de Garrincha, para acompanhar uma partida no Palácio do Catete, sede do Governo Federal. Tudo devidamente coberto pela imprensa. Obtido o título inédito, JK logo enviou o avião presidencial ao Recife, onde os campeões do mundo fizeram escala, exclusivamente para buscá-los. Na Capital federal, todos foram efusivamente recepcionados e JK bebeu champanhe na taça conquistada ao lado dos jogadores. Ele teria confessado ao então presidente da CBD, João Havelange: “Durante a Copa do Mundo, substituí vários ministros e não houve uma única palavra a respeito nos jornais”. Para, depois, arrematar: “Estou pensando em fazer novas mudanças no futuro próximo. Qual é a data da próxima Copa do Mundo?”
A Copa do Mundo seguinte, que só seria disputada em 1962, no Chile, ocorreu em um momento político particularmente tumultuado. Meses antes, após a renúncia do presidente Jânio Quadros, os militares haviam tentado impedir a posse de João Goulart, o Jango, então vice-presidente. Para assumir, Jango teve que aceitar a introdução do Parlamentarismo, mas arrancou a convocação de um plebiscito para que se decidisse, em definitivo, a forma de Governo. Em campanha pela antecipação do plebiscito, e aproveitando a realização da Copa, Jango lembrava que, na juventude, no Rio Grande do Sul, fora jogador de futebol e que já defendera a aprovação de uma lei com o objetivo de impedir a venda de jogadores brasileiros para clubes estrangeiros, o que bem servia aos propósitos nacionalistas da época. Jango acompanhava todos os jogos através do rádio, algumas vezes ao lado do primeiro-ministro Tancredo Neves, o que a imprensa nacional noticiava fartamente.
João Goulart (Jango) acompanhado jogo de estreia do Brasil na Copa do Mundo de 1962 em seu gabinete.
Foto: Reprodução do site do Arquivo Nacional
Veio a semifinal e Garrincha foi expulso. O Brasil, que já perdera Pelé por contusão no segundo jogo, ficaria sem seus dois principais jogadores. Então, o presidente Jango acionou o primeiro-ministro e os dirigentes do nosso futebol para que intercedessem junto à FIFA e aos organizadores do torneio, para que Garrincha fosse perdoado e disputasse a final, o que, de fato, ocorreu. Os esforços brasileiros foram no sentido de convencê-los de que Garrincha jamais teria sido expulso antes, o que era falso. Mas, para muitos, o argumento mais convincente junto à FIFA teria sido o de que a simples presença do craque em campo aumentaria a chance de o Brasil impedir o título da então Tchecoslováquia, à época um país comunista. Conquistada a Copa, Jango recebeu os jogadores e a taça Jules Rimet ainda no interior do avião, em meio à grande manifestação popular. Mas não foi só isso. Meses depois, quando o Santos disputava a final do Mundial Interclubes contra o Benfica, em Lisboa, o presidente tomou uma decisão inédita: o programa oficial A Voz do Brasil teve o seu início retardado para que todos pudessem acompanhar a conquista de mais um título mundial para o País.
Durante o regime civil-militar (1964-85), os generais-presidentes militarizaram a relação entre futebol e política. E, como dizia a música que embalou nossos craques no México, tentaram mobilizar 90 milhões de brasileiros para torcer pela conquista definitiva da Jules Rimet, em 1970, em busca da legitimidade que nunca veio, apesar de relativo apoio popular alcançado. Depois, passaram a exigir que, se a Arena, partido de apoio ao regime militar, estivesse mal, mais um time deveria ingressar no Campeonato Nacional. Mas, aí, futebol e política já andavam de mãos dadas há muitas Copas. Agora, em outro momento político de clara excepcionalidade, o que ocorrerá se o Brasil ganhar ou perder é de difícil prognóstico. Até porque pairam dúvidas acerca das condições em que ocorrerão as próximas eleições presidenciais e suas consequências. O certo é que, após sofrer com os altos custos políticos e econômicos de uma Copa e de ter sido excluída dela em seu próprio país, além de ressabiada pelo “trauma cultural” provocado pela derrota contra a Alemanha, a maioria parece ter realmente menos razão para se preocupar com o destino da “pátria em chuteiras e calções” em gramados russos.
O AUTOR
Túlio Velho Barreto é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e docente do Mestrado Profissional em Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio/Fundaj). Já publicou livros e artigos científicos e de opinião sobre política. É autor de artigos científicos em livros e periódicos nacionais e internacionais na área da Sociologia do Futebol. Atualmente, também tem publicado acerca do ensino da Sociologia na Educação Básica.
COMO CITAR ESSE TEXTO
BARRETO, Túlio Velho. Em tempos de copa do mundo, futebol e política contribuíram para a construção de nossa identidade nacional. (Artigo). In: Coletiva - Política e Cidadania. Publicado em 13 jun. 2018. Disponível em https://www.coletiva.org/politica-e-cidadania-n1-em-tempos-de-copa-do-mundo-futebo-e-politica-por-tulio-velho-barreto. ISSN 2179-1287.