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Mulheres e cidades: desvelando as desigualdades interseccionais na vivência urbana

Mércia Alves

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Introdução

 

As reflexões ao longo das minhas trajetórias de militância e acadêmica sobre a questão de mulheres e cidades foram não só motivadas por minha vivência nesta cidade, mas também pela observação e diálogos cotidianos com as mulheres nas ações políticas. Pela vivência de mulher no ir e vir na cidade, principalmente por algumas interpelações, sobretudo, masculinas e acadêmicas, sobre o porquê pesquisar mobilidade urbana, uma vez que a circulação das mulheres e homens no uso do transporte público era a mesma, ‘padeciam’ dos mesmos problemas, como: engarrafamentos, superlotação, custo da passagem no orçamento etc. E essa pretensa igualdade na mobilidade urbana para mulheres e homens me inquietou como pesquisadora, profissional, militante e usuária do transporte público, por viver as expressões das desigualdades e diferenças no ir e vir na cidade.

Neste artigo, minhas reflexões se ancoram no feminismo materialista decolonial e antirracista, junto às contribuições apresentadas pela geografia materialista, a arquitetura, o urbanismo feminista e o serviço social. Áreas de conhecimentos multidisciplinares, que nos apresentam chaves de leituras sobre a questão social urbana e feminista antirracista, que, numa perspectiva crítica, nos ajudam a desnudar as desigualdades que estruturam a conformação das cidades em sua dimensão física/material e simbólica.

Diariamente, o ir e vir das mulheres nas cidades, nos bairros, em seus territórios de vivência, enfrentam dificuldades e interdições. Há muitas demandas por circulação devido ao mundo do trabalho, da reprodução (ao levar o/a filho/a na escola de bicicleta; ao transitar com carrinho de bebê, entre outras coisas), da vida política, do usufruir e viver com urbanidade o dia a dia na cidade. São as mulheres das classes trabalhadoras, mulheres negras moradoras das periferias urbanas e usuárias do transporte público, no seu deslocamento cotidiano, no caminhar em ruas mal iluminadas ao sair e/ou chegar em casa do trabalho, ou na busca de atendimento em unidades de saúde, geralmente em horários de pouca circulação de pessoas na rua, dentre outros cenários, que estão mais expostas a riscos dessa cidade e de quem surgem essas demandas. Por isso, o trânsito dessas mulheres é dificultado e interditado por uma construção ideológica e política, que acaba naturalizando esses riscos. Em todas essas situações cotidianas, os riscos são naturalizados por uma construção ídeo-política que interdita o direito à cidade para as mulheres.

Para compreendermos estas interdições sobre as condições de vida das mulheres nas cidades, é preciso entender as formas de dominação e suas implicações na vida das mulheres. Mais particularmente, compreender as implicações nas vidas das mulheres negras decorrentes das condições de pobreza e racismo que se apresentam na dimensão do território. Não podemos esquecer, inclusive, que esse mesmo território se organiza por essas desigualdades, numa geografia marcada pelas dimensões interseccionais de classe, raça e gênero. É com o movimento feminista, abordando a complexidade destas vivências de um ponto de vista estrutural e estruturante das desigualdades, que é possível perceber atentamente essas realidades. Portanto, defendemos uma perspectiva feminista que compreende o feminismo como teoria e movimento social transformador. Como aponta bell hooks, feminista negra, em O feminismo é para todo mundo: “[...] acabar com o sexismo, dominação e opressão sexista, é uma luta que inclui esforços para acabar com a discriminação de gênero [e racial] e para criar igualdade, é um movimento fundamentalmente radical”.

Deste modo, o diálogo com a perspectiva crítica radical dará base às reflexões que buscam a transformação em sua totalidade social e se centrará nas condições de vida das mulheres em razão de se conectar com a materialidade de suas vidas e vivências no espaço urbano, principalmente as pertencentes às classes populares e negras, para pensar a cidade à luz dos princípios feministas.

Situando nossa linha de análise por onde construímos toda uma reflexão sobre um contexto social marcado por um ambiente urbano de violência material e simbólica que impacta e interdita as vivências das mulheres nas cidades. Citamos como expressões cotidianas a precariedade das moradias, infraestrutura urbana, acesso à água, saneamento básico e o esgotamento de um sistema de transporte público inseguro, portador de inúmeras violências sexistas e racistas.

Essa dimensão teórica-metodológica, aportada pelo pensamento feminista e pelo feminismo negro, de que há uma centralidade, em sua práxis, na experiência das mulheres negras, destacando que o sistema de dominação-exploração tem impactos particulares na vida das mulheres. Entretanto, tratando-se das mulheres negras, há uma maior complexidade devido às dimensões materiais, imateriais, as imagens de controle e representações que as colocam em condições de subjugação particulares. São, sobretudo, as mulheres de cor, numa sociedade de capitalismo periférico como a brasileira, que tem em suas experiências as marcas mais perversas das opressões sobre seus corpos. Aqui a referência ‘mulheres de cor’ tem uma afirmação política e uma contraposição à hegemonia do pensamento eurocêntrico, colonial, um sistema mundo que elabora imagens, representações, como construções sociais que buscam normatizar as experiências dos corpos políticos subalternizados, tendo como referência o padrão da branquitude, seja masculino ou feminino. Somos sempre pensadas e localizadas por uma exterioridade, homogeneizando e deshistorizando os lugares sociais dos sujeitos, negando o impacto do sexismo e do racismo na vida das mulheres em suas relações  sócio-geográficas.

Portanto, pensar as dimensões  materiais e subjetivas na construção das cidades é de suma relevância para ir além da sua arquitetura. E ter no feminismo crítico esse referencial teórico-político, por dar centralidade a sujeitos historicamente situados, amplia nossos horizontes de análise acerca das desigualdades. Além disso, aporta e apresenta contribuições e críticas de como o sistema de dominação patriarcal também se espraia na composição do urbano, na produção e reprodução social do espaço e também as contribuições diante das poucas elaborações que abordam, na tradição da teoria crítica, uma análise sobre a cidade numa perspectiva das relações sociais de gênero e racial, de forma articulada, conectada.

Cidades construções desiguais de gênero e raça

 

Na relação feminismo e espaço urbano, um dos seus temas centrais diz respeito ao corpo, um debate que promove deslocamentos teórico-políticos em diversos campos da vida social, tornando visível as desigualdades e a dominação, às quais estão sujeitas as mulheres. Os corpos das mulheres habitam vários espaços sociopolíticos e territoriais, fazem parte de diferentes contextos de exploração sexual, por conta do sistema patriarcal-colonial-racista, que se apossa como forma de controle e profusão do medo que se produz e se (re)produz na cidade. Desta forma, recorrer às conexões materiais e simbólicas, que estes corpos produzem como construção das relações sociais, contribui para a análise crítica das desigualdades socioterritoriais em diálogo com o pensamento feminista negro e decolonial.

O feminismo negro trata das opressões interseccionais (raça, classe, gênero, sexualidade) que marcam de forma particular a experiência das mulheres negras como grupo social, e num contexto socio-político-econômico cultural situado. Como afirma Patricia Hill Collins, o feminismo negro “[...] nos lembra que a opressão não é redutível a um tipo fundamental, e que formas de opressão agem conjuntamente na produção da injustiça”. É importante reafirmar as conexões entre o capitalismo-patriarcado-racismo no espaço urbano, uma vez que a sociedade capitalista se molda e se constitui pela hegemonia masculina. É, portanto, o homem o ‘determinante’, a falocracia, a norma dominante e constitutiva que norteia o funcionamento da dinâmica sócio-espacial. O que implica na estruturação material e subjetiva do trabalho, na sua divisão social, sexual e racial no território, como também a disposição de monumentos e símbolos arquitetônicos, serviços urbanos e comerciais, dentre outros.

Neste aspecto, Paula Soto Villagrán indica três questões sobre as relações de gênero e o urbano para análise: 1) o espaço urbano é organizado por dicotomias geográficas, que reforçam a lógica do sistema patriarcal de oposição público-privado e ratificam os tradicionais papéis de gênero; 2) a reprodução da representação simbólica da mulher, feminina, frágil delicada e a do homem, como viril, grande e poderoso, o espaço da casa e da rua, que se revela na estrutura física, arquitetônica, e na ocupação dos espaços; e 3) a invisibilidade das mulheres no espaço urbano, afirmada por uma razão patriarcal, que reforça o papel das relações de gênero nas dimensões da produção e reprodução social.

Essa organização espacial demonstra a articulação e indissociabilidade do privado-público como parte da dinâmica extensiva do trabalho das mulheres para atender às necessidades e obrigatoriedades da vida laboral e doméstica, que a autora Sonia Alves Calió chama de dinâmica econômica, que favorece o conceito de ‘lar expandido’, onde as responsabilidades com as tarefas de cuidado da família e da casa se espraiam pelo território, pela cidade, parte do fluxo contínuo da economia doméstica. É um mecanismo que contribui para o controle dos corpos femininos e ao seu confinamento ao espaço doméstico.

Portanto, essa extensividade no tempo da vida cotidiana das mulheres para atender as responsabilidades das dimensões produtiva e reprodutiva, aponta para a relação dessa jornada que se prolonga num continuum com a sua movimentação, deslocamento, no território. Impactando os corpos políticos das mulheres numa tensão que é de contradições dessas duas esferas, que organiza e define não só a divisão sexual e racial do trabalho, mas que também é marcada por uma vida urbana de múltiplas complexidades, desigualdades, racismo ambiental.

Para Calió, geógrafa feminista e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações Sociais de Gênero da Universidade de São Paulo, a invisibilidade das relações de gênero no espaço urbano é uma das expressões do patriarcado, presente também na produção do conhecimento acadêmico. A análise das relações sociais de gênero numa perspectiva da estrutura social e espacial ajuda a compreender a influência androcêntrica no âmbito das disciplinas acadêmicas, profissões, como também como “[...] as relações sociais entre os sexos, a divisão sexual do trabalho, as relações entre produção e reprodução, entre capitalismo e patriarcado, com o objetivo de tornar clara a relação específica das mulheres com o meio ambiente e com o espaço”.

Com a divisão sexual e racial do trabalho estruturada hierarquicamente há uma desvalorização do trabalho realizado pelas mulheres. Reforçando a ordem, o sistema capitalista- patriarcal-racista, naturalizando as desigualdades e colocando o espaço da rua como o não lugar das mulheres, criando a separação público política, a rua, e o privado a casa, família. E, desta forma, me aproximo do conceito da diferenciação sexual do espaço utilizado por Silvia Federici para afirmar que na nova ordem mercantil, a transição do capital estruturou as relações sociais de sexo/gênero. A diferenciação sexual do espaço, veta e dificulta a presença das mulheres no espaço público ao longo dos séculos, sob pena de estarem sujeitas a atitudes sexistas, patriarcais, de apossamento e sujeição dos seus corpos aos ‘desejos’ e interesses masculinos, mas sempre em profundo conflito e resistências por parte das mulheres.

As expressões das relações patriarcais de gênero se articulam e se interconectam no cotidiano de dominação que sujeita às mulheres nos espaços da vida material produção e reprodução social, no ambiente doméstico e público. Essa construção social define e determina a desvalorização do trabalho das mulheres e sua subjugação, o controle sobre os seus corpos, sobre os territórios, criando uma situação de insegurança e medo, que controla seu ir e vir, sua vida social e autonomia reprodutiva, limitando a vida e a criatividade das mulheres.

O controle, por meio da ideologia e sua base material, sugere culturalmente que determinados lugares são inseguros para permanência das mulheres e contribui para a cristalização e reprodução dos espaços para homens e para mulheres. Desse modo, a estrutura de dominação sexual, racial e de classe segrega o espaço urbano. O patriarcado promove uma sexualização da cidade, a rua espaço público aos homens, idem para a política e o econômico. O doméstico, a casa, o cuidado da família, as mulheres.

O sistema de dominação gera a “[...] invisibilização das mulheres na multidão urbana” como sujeitos e fortalece os privilégios da branquitude na ocupação socioespacial. A crítica à naturalização das desigualdades entre homens e mulheres no urbano visa combater os privilégios do poder androcêntrico e racial e as interdições que sujeitam as mulheres, especialmente as pobres, negras, chefes de família, que objetifica seus corpos assentados na ideia da propriedade privada, controle e contrato social-sexual.

A desigualdade material e simbólica que estrutura as cidades exclui várias populações de vivê-la de forma livre, democrática e digna. É o caso das pessoas com deficiência, idosos, jovens, a população LGBTQIAPN+, população negra e mulheres. Ao articular as esferas de classe, raça e gênero/sexualidade, verificamos na ação destes sujeitos que ao questionar a lógica heteronormativa-patriarcal por sofrerem repressões, violência, na ocupação do espaço da rua instando sua constituição avessa aos corpos políticos dissonantes.

Muitos espaços públicos no Brasil, como exemplo, parques, bares, centros históricos, são também lugares de preconceitos e discriminações contra negros/as, gays, lésbicas, trans e mulheres cis. Por outro lado, são lugares disputados pelos movimentos organizados, em contraposição e resistência às discriminações, com ações antissistêmicas, como atos públicos, ocupações de praças, os ‘beijaços’, Ocupes (Estelita, Passarinho), apresentações e batalhas poéticas, como o Slam das Minas, uma expressão insurgente de ocupar os espaços públicos.

Reafirmamos que homens e mulheres vivem de maneiras diferentes a cidade e os problemas da vida urbana, porque o sistema capitalista-patriarcal-racista, enquanto uma simbiose da dominação-exploração, se expressa no cotidiano como produtor de desigualdades e materialidade dessa ordem que resulta em restrições na vida das mulheres, especialmente no ir e vir no território.

Compreendemos que há uma política de interdição/permissão de circulação dos corpos. As reflexões sobre elas dizem respeito à arquitetura urbana, à memória simbólica das cidades, às desigualdades socioeconômicas, de modo que nos provocam a perguntar: há um direito à cidade para as mulheres? Especialmente, há um direito à cidade para as mulheres negras, pobres, com deficiência e vivências afetivas dissonantes do cisheteropatriarcado no urbano?

O ambiente urbano, por ser  estruturado pelo paradigma patriarcal e racista, reproduz esse modelo num tipo de circulação que limita a vivência das mulheres. O pensamento sexista se consolida naturalizando formas dicotômicas e binárias por categorias de sexo, ou como dimensões da vida social, público-privado, o que limita às mulheres na liberdade de viver, caminhar, usufruir da vida política, econômica, social e cultural na cidade.

É a reprodução da ideia do ‘não lugar’ que se espraia no espaço urbano material e simbolicamente; e mais do que isso, que não expressa as necessidades e demandas de um segmento social, um sujeito político presente neste ir e vir, que também constrói estratégias de resistência nesta vida urbana.

Esta realidade de ser ou não parte integrante da cidade, do ponto de vista da visibilidade das desigualdades em ocupar o espaço urbano, é dialético, contraditório, porque somos mais de 52% da população nacional. Porém, as políticas urbanas não se refletem em serviços e ações, que reconheçam e atendam o imperativo das exigências das esferas da produção e reprodução social, como uma jornada intermitente das mulheres, sobretudo as populares e negras, em sua maioria chefes de família.

Esses elementos nos dão pistas para pensar as relações sociais de gênero, raça e classe na cidade e nos seus territórios. Já que em sua geografia e no desenho urbano, as suas configurações estruturam as desigualdades, impactam nas condições de vida das pessoas e no usufruto do paradigma ético do direito à cidade, como direito coletivo. O patriarcado, o classismo e o racismo estão escritos na estrutura material e imaterial das cidades, e citando a geógrafa feminista Jane Darke: “[...] nossas cidades são patriarcados escritos na pedra, tijolo, no vidro e no concreto”.

Deste modo, compartilho da perspectiva de autoras feministas como Kern, Berth e Ana Falú, que colocam as mulheres como sujeitos políticos no espaço urbano e desnaturalizam a compreensão binária sob a qual estão estruturadas as cidades. Há uma normatização histórica nas cidades e no ambiente urbano, de masculinização, do fálico, e isso encontra-se na sua estruturação objetiva e subjetiva. Na validação do pensamento sexista que acentua a separação do mundo da casa e o da rua, o público e o privado.

É, portanto, a partir das experiências das mulheres e seus saberes que os pontos de desencontros cotidianos se tornam explícitos e quebram o paradigma normativo androcêntrico e do privilégio da branquitude. Na prática cotidiana as cidades refletem as relações sociais, assentadas nos pilares da exploração, dominação e subjugação, já que tais relações atendem aos interesses e necessidades masculinas, tomando-os um único gênero como parâmetro da sua estruturação. O que lança as mulheres em vivências desiguais e diversas de classe, raça, gênero, sexualidade no ambiente urbano, histórica e socialmente.

As inúmeras interdições vividas pelas mulheres nas cidades se revelam na disposição dos serviços urbanos, na própria oferta de transporte público, quando organiza o deslocamento de forma linear casa-trabalho, estruturado para lidar diariamente com um tipo de usuário, homem cis, hétero e provedor. E desconhece no planejamento do tráfego e do transporte, outros sujeitos políticos, especialmente as usuárias deste serviço, desconsiderando que as mulheres trafegam na cidade de forma multidimensional, e hoje na reconfiguração familiar são em sua maioria chefes de família.

A questão da violência sexista no espaço urbano é uma outra dimensão que ganha relevância nos estudos sobre mulheres e questão urbana, entendendo o fenômeno da violência contra às mulheres como algo que se estende e se efetiva além das relações conjugais e familiares, por mais que a violência sexista no âmbito doméstico seja uma tendência expressiva das relações patriarcais, do poder do macho e domínio sobre o corpos e vida das mulheres.

E o que tal situação, diga-se de passagem crescente e sempre presente no dia a dia das mulheres que circulam nas ruas, nos espaços públicos, nos revela é que é mais uma expressão do sistema patriarcal-racista e capitalista em tratar os corpos das mulheres como objeto, disponível aos desejos ‘incontroláveis’ da virilidade masculina.

E nestes termos, o medo é uma forma de exercer o controle sobre os corpos políticos das mulheres na vivência das cidades, em muitas situações define e determina a ‘escolha’ por um trabalho próximo ao local de moradia, evitando circular pelo bairro em determinado horário, revelando-se castrador das potencialidades, que poderiam ter no exercício da vida política. A interdição das mulheres pelo sistema patriarcal, cuja estratégia é consolidar o confinamento das mulheres ao espaço doméstico, privado, ao cuidado da família, favorece os homens, como categoria social.

É uma tarefa constante, como acadêmica e ativista, desnaturalizar a dinâmica patriarcal- colonial-racista nas relações sociais, colocando as desigualdades de gênero no centro das reflexões. Para isso, é preciso descortinar os elementos que invisibilizam a existência das vivências cotidianas desiguais das mulheres, sobretudo, os corpos dissidentes nas cidades, como sujeitos políticos no urbano. Nestes termos, é importante analisar que o espaço público, do viver à vida na cidade, neste ir e vir, e que se estrutura, material e simbolicamente pelo sistema de dominação, neste continuum privado-público, deva ser também nosso foco de reflexão-resistência no enfrentamento às inúmeras interdições e violências que atravessam a vida das mulheres.

O cotidiano das mulheres nas comunidades, bairros, ocupações e nos assentamentos, é sinalizado por muitos arranjos e resistências, redes de apoio e solidariedade, em virtude da fragilidade de políticas e serviços urbanos, que facilitem o atendimento das suas necessidades, em razão das demandas com o trabalho doméstico gratuito e de cuidados. O mesmo acontece quando as mulheres estão engajadas no trabalho produtivo, formal ou informal, uma vez que as ofertas dos serviços, existentes no centro e na periferia, como escolas, creches, postos de saúde, supermercado, paradas de ônibus, dentre outros, nem sempre estão próximos ao local de moradia, e quando estão não funcionam adequadamente.

Para sua inserção no mundo do trabalho ou outras atividades sempre há um ônus econômico, em razão das responsabilidades com o cuidado dos filhos e filhas e/ou integrantes da família, que necessitam de apoio por conta de saúde ou mobilidade reduzida. Muitas vezes precisam pagar por esse serviço, mesmo em redes de apoio informal, para assegurar sua participação na vida laboral e política, algo que na vida dos homens não aparece como necessidade. Portanto, sem essas formas alternativas e de resistência, a tendência é de as mulheres permanecerem encalacradas e confinadas no local de moradia e nas obrigatoriedades do doméstico, como também tornar invisível esse fluxo contínuo do deslocamento diário.

Para essas situações constroem estratégias de sobrevivência e resistência para enfrentar a hostilidade da cidade à vida das mulheres, atitudes cotidianas, naturalizadas, mas formas assertivas que vão se construindo desde a juventude para enfrentar as interdições do patriarcado e racismo concreto. Recentemente me debruçando sobre os estudos das cidades numa perspectiva de gênero, sobretudo, na obra da Leslie Kern, me atentei que, para avançar na construção de cidades observando o marcador de gênero, as estratégias de resistência contra-hegemônica para ocupar os espaços públicos contam com o valor da amizade como experiência compartilhada, tornando-se então um marcador de análise relevante, por romper os tradicionais papéis de gênero, que compulsoriamente reserva, de forma dicotômica, o mundo da casa e da rua, às mulheres e aos homens, respectivamente.

A cidade como espaço em que a vida pulsa, tem uma linguagem explícita na sua arquitetura física, mas também silenciosa, que ‘normatiza’ os lugares sociais dos sujeitos neste território. A linguagem silenciosa é a que oculta as desigualdades e discriminações, pois é conveniente socialmente que aos trabalhadores(as) seja ‘permitido' circular em todos os lugares em função do trabalho. É aceitável, inclusive, em espaços de alto poder aquisitivo, lugares em que sempre estarão em condição de subalternidade e, no caso da população negra, mais precarizados.

Não à toa, o espaço público urbano, as ruas e praças em diferentes cidades do norte ao sul global, vem sendo palco de resistências e contrapontos a este modelo hegemônico e promotor de desigualdades e discriminações. Diferentes sujeitos políticos e grupos sociais realizam, de forma simbólica, a ocupação de espaços na cidade para denunciar a estrutura sexista e racista, que impedem a liberdade e está condicionada ao fator econômico e a organização social da branquitude, o tipo urbano universal, homem branco, cis, de poder aquisitivo.

Nestes termos, concordamos com a arquiteta-urbanista, escritora e feminista negra, Joice Berth, em suas análises sobre o urbano numa abordagem interseccional, para quem as cidades revelam na sua conformação socio-histórica, o racismo e machismo na sua estruturação. A autora recorre ao conceito empreendido pela PhD Melissa M. Valle76 sobre o urbanismo daltônico: “[...] temos um urbanismo daltônico, que até afirma-se como social, mas não olha a cor das pessoas mais prejudicadas e, claro, não olha a cor das pessoas que planejam e decidem sobre as cidades”. 

À luz da realidade brasileira, podemos dizer que há uma divisão social, sexual, racial do espaço urbano, mas isso é invisível à sociedade e, sobretudo, para as pessoas responsáveis pelo planejamento urbano. No entanto, a vida cotidiana as revela de diferentes formas e mesmo os planejadores que identificam as desigualdades, não consideram a dimensão racial como estruturante e como ela incide sobre as nossas vidas. O que significa a necessidade de uma racionalidade sobre o espaço na sua inteireza, para o enfrentamento às injustiças sócio territoriais, o racismo ambiental, e das relações sociais de sexo/gênero e raça.

Romper com a visão apartada das vivências desiguais na construção urbana é um horizonte necessário para construção de cidades com mais igualdade racial e de gênero, o que implica planejar e pensar ações por parte da gestão pública consultando os sujeitos políticos, individuais e coletivos, que enfrentam diariamente as dificuldades de acesso à cidade por meio dos serviços sociais urbanos.

As provocações do movimento feminista negro e antirracista na luta política e na produção acadêmica interdisciplinar joga luz a esta invisibilidade do sujeito político mulher como parte da memória, produtora, na construção das cidades, considerando os múltiplos papéis e relação corpo-território (casa, bairro, resistência, sexualidade) nas dimensões do público e do privado. Portanto, desnudar as desigualdades feminilizadas e racializadas nas cidades provoca as áreas de conhecimento dedicadas a planejar, com ações e orçamento nos territórios, em suas diferentes escalas e necessidades sociais, com vistas à acessibilidade de serviços e equipamentos urbanos, na perspectiva das relações sociais de gênero, classe e raça.

Como feministas, as condições de vida das mulheres nos permitem, como dever ser, pensar a construção de cidades assentadas em situações mais justas e igualitárias, onde os corpos políticos das mulheres populares, negras, dissidentes da norma cisheteropatriarcal, como: lésbicas, trans e pessoas não binárias, ocupem o espaço da cidade e transformem seus corpos políticos em denúncias públicas mediante a resistência cotidiana em viver a cidade.

São ações políticas que modificam o espaço da cidade em territórios de resistência, denunciando que as violências postas nas estruturas sociais materiais e simbólicas impõem-se sobre a vida das mulheres. Resistências para existência no espaço urbano se dar de forma individual e/ou coletiva, para romper as amarras e interdições deste viver desigual, normatizado pelos ‘papéis’ de gênero e hierarquia racial, em diferentes âmbitos da vida social.

Nestes termos, concluímos que as mulheres vivenciam de modo diferente e desigual, em termos de tempo e espaço, a vida cotidiana na cidade, em razão das determinações e imposições da divisão sexual e racial do trabalho, advindas da estrutura patriarcal-colonial-racista, que constitui o espaço sócio-urbano, centrado na figura masculina, no padrão da supremacia branca, que molda a dimensão física e espacial das cidades, promotora de ambiente hostil às mulheres, marcado pela insegurança, medo e controle político-sexual sobre seus corpos.

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Ilustrações: Isabella Alves

NOTAS

[1]  Silva, 2023

[2] hooks, 2019, p. 161

[3] Collins, 2019, p. 57

[4] Villagró, 2014

[5] Ávila, 2009

[6] Calió, 1997

[7] Calió, 1997, s. p

[8] Para essa análise, ver as reflexões de Saffioti (2004), Federici (2017) e Ávila (2018), na qual o patriarcado é um sistema de poder dos homens, falocêntrico, anterior ao modo de vida social capitalista. Porém, toma novas dimensões no âmbito desta sociabilidade, marcada pela apropriação privada da terra, acumulação de riquezas, reforçando as desigualdades no âmbito da divisão social do trabalho, e dando centralidade no âmbito da família heteronormativa às funções no campo da reprodução social da força de trabalho pela apropriação dos corpos, saberes e trabalho das mulheres, com fins da acumulação capitalista.

[9] Federici, 2017

[10] Saffioti, 2004

[11] Calió, 1997

[12] Calió, op. cit., n.p.

[13] Kern, 2021, p. 29

[14] Kern, 2021

[15] Berth, 2022, n. p.

PARA SABER MAIS 

ÁVILA, M. B. O tempo do trabalho das empregadas domésticas: tensões entre dominação/exploração e resistência. Recife: Editora UFPE, 2009.

 

ÁVILA, M. B. Nas veredas do feminismo materialista. In: ÁVILA, M. B.; FERREIRA, V. (org.). Teorias em movimento: reflexões feministas na Articulação Feminista Marcosul (AFM). Recife: SOS Corpo, 2018. p. 177-209.

BERTH, J. São Paulo e o urbanismo daltônico: como isso define a sua vida. Terra, [S. l.], 6 set. 2022. Disponível em: https://www.terra.com.br/nos/opiniao/joice- berth/sao-paulo-e-o-urbanismo-daltonico-como-isso-define-a-suavida,526072c2f571eaa7f613485e5fc8c1999gi5j6cl.html. Acesso em: 12 ago. 2023.

 

CALIÓ, S. A. Incorporando a questão de gênero nos estudos e no planejamento urbano. Observatório Geográfico da América Latina, [S. l.], 1997. Disponível em: http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal6/Geografiasocioeconomica/G eografia cultural/737.pdf. Acesso em: 12 ago. 2023.

COLLINS, P. H. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política deempoderamento. São Paulo: Boitempo, 2019.

FEDERICI, S. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo:Elefante, 2017.

HOOKS, B. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. 9. ed. Rio de Janeiro:Rosa dos Tempos, 2019.

 

KERN, L. Cidade feminista: a luta pelo espaço em um mundo desenhado por homens. Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2021.

SAFFIOTI, H. I. B. Gênero, patriarcado, violência. São Paulo: Editora Perseu Abramo, 2004.

 

SILVA, M. M. A. Mulheres e Cidades: Injustiças Territoriais, sexismo e racismo na mobilidade urbana. 1 ed. Recife: SOS Corpo, 2023.


VILLAGRÁN, P. S. Patriarcado y orden urbano: nuevas y viejas formas de dominación de género en la ciudad. Revista Venezolana de Estudios de la Mujer, [S. l.], v. 19, n. 42, p. 199-214, 2014. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/265785861_Patriarcado_y_Orden_Urbano_N uevas_ y_viejas_formas_de_dominacion_de_genero_en_la_ciudad. Acesso em: 12 ago. 2023.

A AUTORA

Mércia Alves é assistente Social, educadora e pesquisadora do SOS Corpo Instituto Feminista para a democracia, doutora em serviço social pelo Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco (PPGSS/UFPE), militante feminista antirracista e da luta urbana do Fórum de Mulheres de Pernambuco – Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) /Rede de Mulheres Negras de Pernambuco.

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COMO CITAR ESSE TEXTO

ALVES, Mércia. Mulheres e cidades: desvelando as desigualdades interseccionais na vivência urbana. Revista Coletiva, Recife, n.35, ago.set.out.nov.dez. 2024. Disponível em: https://www.coletiva.org/mercia-alves. ISSN 2179-1287.

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