Os Arrecifes que cercam o Porto Musical: o centro do Recife como o ruído da Cidade da Música
Jeder Janotti Junior
Em 2021, o Recife ferveu com o título de “Cidade da Música” atribuído à capital pernambucana pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura). Talvez, para amenizar os humores da vizinha Fortaleza, que não pareceu ser uma cidade tão musical como Recife para as escutas da ONU, em 2022 a capital cearense recebeu o título de Cidade Criativa do Design. É sabido que qualquer distinção pressupõe diferenciação, ou seja, para que a categorização Cidade da Música possa funcionar, é necessária a pressuposição, oblíqua, de que há cidades que são mais musicais que outras. Mas fico aqui ruminando: em que ponto a capital do Ceará, terra forrozeira, de reggae e trap, é menos sonora e musical que os arrecifes?
Diante disso, proponho um gesto reflexivo que permita estranhar a ideia de que habitamos uma indiscutível Cidade da Música. Parece-me evidente que, se observarmos as festividades carnavalescas, incluindo prévias e ressacas, festivais e trajetos agenciados pela música brega, ciranda, forró, frevo, manguebeat e maracatu, notaremos excessos de evidências de que vivemos em uma das cerca de 75 urbes reconhecidas pela UNESCO como Cidades da Música. Assim, tudo parece um tecer de paisagens sonoras afinadas, que faz com que habitantes do Recife coreografem a vida, dançando passos nas alacridades do viver, independentemente das condições adversas impostas pelo cotidiano. Afinal, a contração da preposição d + o artigo definido feminino a, parece convencer que estamos em uma Cidade que é da Música.
De outro lado, parece-me que as delimitações que atravessam as articulações entre música e cidade não são algo já subentendido, de um simples já sabido, de uma posse. O carimbo Cidade da Música aciona uma força centrífuga que nos coloca em percepções estereotipadas, que se aconchegam no imaginário sem grandes tensões, pois acabam por tornar-se pertencimento por imposição. Ao abrir a escuta para o que está fora do tom, para os ruídos não acolhidos por esta sinfonia cultural, podemos perscrutar outras possibilidades de adentrar o Recife como uma cidade musical.
Há ruídos, espaços e temporalidades que se sobrepõem e não criam, necessariamente, sensações agradáveis e vivências multiculturais. A cacofonia da urbe moderna não está enlaçada só na experiência de lugares e temporalidades badaladas pelas agendas oficiais, como o carnaval e os festivais, nem pelos espaços higienizados frequentados por turistas e cidadãos da Cosmópolis.
Quando penso na cidade moderna a partir dos deslocamentos de grandes contingentes de pessoas do campo para a urbe, a constituição dos cruzamentos que irão tramar esses lugares é parte de possibilidades inscritas em existências do trivial, exclusões, oportunidades, subjugo e pertencimento, por exemplo, de quem tem condições de usar um transporte por aplicativo ou mesmo pagar uma passagem de ônibus para se deslocar para os eventos musicais que ocorrem diariamente no Recife.
Para os residentes ocasionais que desembarcam na cidade como turistas e/ou passantes, ou para aquelas que se encontram nos grandes eventos, há uma conexão com os cartões-postais. Já para quem vive o calendário dos trajetos comuns dos prazeres citadinos e suas exclusões, a cidade musical é arquitetada, principalmente nos finais de semana, pela vivência reiterada da música em pequenos espaços que aninham diferenças, agenciando, através das plataformas digitais articuladas ao tecido urbano, encontros e prazeres que servem de combustíveis para o existir, do mesmo modo que embargam os contingentes de andarilhos que são desvistos nestes trajetos, criando incômodas desafinações na procura dos prazeres que se imaginam possíveis nos arrecifes musicais. Nesse cenário é interessante perceber que temporalidades diferentes atravessam uma Cidade da Música. O tempo do respiro de entretenimento de um final de semana, de uma noite de sexta, para quem reside em Recife é diferente, mas não excludente, do tempo dos feriados festivos e de quem está de passagem pela cidade para gastar tempos de férias.
Uma cidade são várias cidades, várias musicalidades e sonoridades formando espaços múltiplos, movimentos que parecem distantes das ideias de “afinação” que parecem estar presentes na ideia de cidades musicais. Mas, antes de achar uma ideia de pouca utilidade ou excessivamente institucionalizada, acredita-se que sua potência está em possibilitar às pesquisadoras e aos pesquisadores que trabalham com cidade e música a chance de notar como esses conceitos fazem parte de um emaranhado de vivências fundamentais para se perceber os aspectos inclusivos, exclusivos, excludentes e desestabilizadores daquilo que reconhecemos como música e como cidade.¹
Na maioria das vezes, o destaque dado a cartões-postais como a Recife do Frevo e do Manguebeat oblitera práticas musicais como a vivência regular, ao longo do ano, em botecos, rodas e pistas que passam a ser considerados fenômenos descentrados e não dimensionados, apesar de sua importância para o dia a dia musical da Cidade do Recife.
Minha intenção, então, é apontar que uma Cidade da Música também se constitui do trivial, nas sonoridades que ritmam os prazeres, encontros e desencontros de quem vive a cidade nas dinâmicas musicais que ocorrem de forma rotineira, nos interstícios do labor e da ordenação do caos cotidiano que nos aglutina.
O Centro da Cidade
Não é difícil perceber que, após o período pandêmico, ocorreu uma série de modulações em relação às vivências nos espaços sonoro-musicais situados no centro da Cidade do Recife. Se antes ruas e avenidas como a Mamede Simões e a Conde da Boa Vista eram nódulos centrais para estas vivências, sejam nas esquentas em botecos antes de “ir para o show ou para a festa” nos finais de semana, hoje essa dinâmica se espraiou de modo radial pela cidade, tornando as cercanias, para muitas pessoas, o novo núcleo de circulação. Pensando, por exemplo, na Zona Norte, é possível consumir bandas covers e DJs em bares badalados como Liamba nas Graças, Carranca no Poço da Panela e Downtown Pub nos Aflitos. Também se pode escutar heavy metal no Morro da Conceição no bar Metalmania, bem como reggae no Zezinbar na Avenida Norte. Essa dinâmica não significou o fim da importância da região central do Recife como referência sônico-musical no consumo diário de música, e sim, modulações e um certo arrefecimento. É possível perceber uma pluriversidade de arrecifes musicados – dos mais “subterrâneos” aos mais populares, dos mais acessíveis aos mais elitizados – na região central da cidade, especialmente em bairros como Boa Vista, Santo Amaro e Recife Antigo. Assim, este pequeno recorte busca mostrar que esse viver ordinário também é parte do carimbo que estampa Recife como Cidade da Música.
As vivências no centro da cidade passam por uma certa sensação de segurança oferecida pela junção de diferentes agrupamentos, pessoas e estilos que coabitam o Centro de Recife. Por isso, o centro é um lugar de irradiação para outros cantos da urbe, confluência de diversos nichos de cidade, onde o deslocamento é favorecido pela presença de transporte público ligando esta região a quase todos os rincões da capital pernambucana.
Antes da autossuficiência de nódulos de cidade dentro da cidade, com a ampliação do comércio local, das compras online e da emergência dos shopping centers de bairro, o centro era o nódulo de encontro do grande número de habitantes da cidade. A perda desta hegemonia não significou que o centro deixou de ter linhas de transporte públicos, vias e práticas de comércio que ainda perpassam por diferentes corporeidades que transitam por quase toda a cidade. É preciso lembrar que, após um período de decadência, regiões centrais esquecidas pelo poder público em cidades como Recife, Rio de Janeiro e Salvador voltaram a receber atenção a partir de processos de gentrificação, requalificação urbana, emergência de polos de cultura, ocupações e lazer que acabaram por realocar essa região como ponto significativo de rotinas de vivências.
Mas, além do aninhamento, o centro também abriga encontros ruidosos, não tão afinados, como aqueles entre quem está se divertindo e quem mora nas ruas ou vaga descentrado pelos desvãos dos aglomerados urbanos, entre homens alcoolizados e pessoas em situação de vulnerabilidade, entre contingentes de descolados brancos e pessoas negras vulnerabilizadas que não passam despercebidos quando se pensa nas cacofonias urbanas, ou seja, entre os que cantam, contam e que não são contados como encantados.
Por exemplo, na Rua do Sossego, onde estão localizados dois dos mais descolados inferninhos do centro, conhecidos pela presença de músicos, artistas, docentes e estudantes universitários, o IRAQ e o Provinha Bar & Pista, locais destacados pela música de DJs e ocasionais apresentações de bandas, onde as pistas são inundadas por disco music, funk, indie rock, pop, reggae, salsa, soul. Nestes espaços a entrada é anunciada nas plataformas de interação social como gratuita, mas a gratuidade não é franca, pois o Provinha e o IRAQ possuem seguranças na porta que controlam o fluxo do público, evitando a entrada das/os inúmeras/os andarilhas/os que circulam pela região central da cidade, principalmente nos finais de semana.
Caminhando em direção à Boa Vista, avenida referência do Centro, local de parada de ônibus para várias localidades da Região Metropolitana do Recife, é possível se deparar com o 100% Brasil Lounge na Rua Sete de Setembro, espaço de shows de música brega para artistas que estão despontando, com ingressos acessíveis e atrações que se apresentam a partir das 18h, horário para quem sai do trabalho e depende de ônibus para voltar para casa. Próximo à casa de shows está situado o Beco da Fome, uma pequena galeria com diversos comércios de pequeno porte e uma série de botecos que, às sextas-feiras, têm apresentações ao vivo de MPB e rock nacional na galeria, atendendo a todos os bares. Nesta passagem, a música ao vivo se mistura com os sons mecânicos dos bares e o alvoroço das conversas.
Para os que preferirem um ambiente mais arejado, é possível ir em direção ao Bar do Biu no Beco do Poeta Japa, que durante o início da noite ocupa o espaço público com diversas mesas espalhadas pela calçada. A ambiência sonora é composta pela trilha de uma jukebox, com fichas ao preço de R$ 0,50, abastecida basicamente com faixas de brega de diferentes períodos.
Para quem tem fôlego ou se preparou para uma saída mais tardia, uma possibilidade é uma passagem no Pátio Santa Cruz, onde é possível se deparar com voz e violão no Bar Lisbela e Prisioneiros ou com o som de uma jukebox que cria um confuso mix sonoro ao redor do Pátio. De lá, parte do público se encaminha para os fãs de músicas mais pesadas, para o espaço de shows Dark Side, um estúdio que nos finais de semana vira palco para apresentações de heavy metal, hardcore, gothic e outros estilos underground. Outra parcela do público se conecta com a Rua das Ninfas;
Na Boa Vista, reconhecida como um dos bairros recifenses de maior articulação da comunidade e das culturas LGBTQIAPN+, encontra-se a Rua das Ninfas que, no cruzamento com a Avenida Manoel Borba, forma um dos principais pontos de festas frequentadas pela comunidade, em seu amplo espectro de gêneros, raças, sexualidades, corporeidades e faixas etárias – embora a presença majoritária seja de homens cis, gays, de diferentes raças e classes sociais. Para além de boates pop como o Club Metrópole (a boate gay mais conhecida desta região da cidade), o Bar do Céu e o Pajubar, há espaços como o Conchitas (onde as caixas de som vibram ao som do bregafunk e forró), Pop House (ponto de karaokê) e o The Bears, um pub (bar + boate) direcionado aos “ursos”, uma subcategoria de homens gays que são gordos ou “parrudos”. Somando-se às boates, há o fervo que acontece na Avenida Manoel Borba, o que faz com que alguns frequentadores sequer cheguem a entrar em algum espaço privado de festas, já que é possível consumir, socializar e ouvir diversos tipos de músicas na própria rua.²
Essa multiplicidade de opções musicais não significa, necessariamente, um arrefecimento das exclusões que operam em, praticamente, todos os espaços da sociedade brasileira. Desde a logística de transporte até a transformação do espaço em lugares de consumo de música, observam-se processos de racialização e criação de barreiras corporais que são produzidas na própria afirmação da diversidade. Assim, é possível perceber os limites impostos pelo horário do transporte público que divide quem pode estar na rua até mais tarde, seja por habitar o centro, por poder gastar mais ou ter acesso ao transporte via aplicativos. Somando-se a isso, é importante salientar que as corporeidades que são criadas nas ambiências sonoras do centro da cidade têm como pressuposto corpos que são embarreirados nestes espaços, como, por exemplo, a gratuidade selecionada que não permite a entrada das/os andarilhas/os nos inferninhos do centro e a divisão entre corpos que circulam sem maiores preocupações e quem está trabalhando nestes locais que, como em boa parte das racializações que marcam o Brasil, costumam ser posições ocupadas por pessoas não brancas.
Nesse contexto, como é possível notar no trecho descrito abaixo, mesmo lugares como o conhecido Pagode do Didi, situado próximo à Avenida Guararapes, que ocorre às sextas-feiras a partir das 18h, em que há forte afluência de pessoas negras, também se nota a operação da racialização, mostrando de modo explícito que os lugares de agenciamentos de diversidades e convivências distintas não estão de fora destes processos.
Se antes o bar era o centro do consumo de álcool enquanto acontecia a roda, hoje Seu Didi divide espaço com uma série de vendedoras/es ambulantes que acabam por complementar as necessidades de consumo do público, já que o antigo bar dificilmente daria conta do volume de participantes que frequentam atualmente o pagode. Por volta das 22h30, o público do local já mudou completamente; estamos em meio a uma multidão composta por jovens, que aparentam ter entre 20 e 35 anos, entre homens e mulheres cis e trans, negros e brancos, de diversas sexualidades, o que aponta para uma transformação do público tradicional da roda, que além de mais velho, também era em sua maioria heteronormativo. Neste momento, as poucas pessoas do público mais velho que permanecem no pagode estão sentadas em mesas próximas do bar e da roda de samba e parecem mais interessadas em ouvir o repertório dos sambistas do que os mais jovens, que permanecem transitando, cumprimentando amigos, interessados nos flertes que o ambiente movimentado pode proporcionar.³
Com isso, não se quer dizer que os trajetos musicais do Centro do Recife sejam idênticos a lugares mais elitizados situados na Zona Norte e Zona Sul de Recife, e sim, que não há como menosprezar a racialidade que opera mesmo em lugares ditos plurais e acolhedores. Cabe lembrar que, mesmo o aninhamento observado em alguns desses espaços, significa, ao mesmo tempo, possibilidades de sentir-se mais à vontade, como também mais seguro.
Algumas Conclusões
Neste pequeno exercício reflexivo produzido a partir da sobreposição da categorização do Recife como Cidade da Música e dos trajetos ordinários do consumo de música em alguns pontos do centro da cidade, nota-se que é importante não tomar o dito pelo dado. A saber, uma Cidade da Música não se faz só de cartões-postais e de musicalidades oficiosas; uma parte que importa desta alcunha é imaginar que, com suas devidas diferenças, toda cidade acaba por ser musical, o que não as torna Cidades da Música. Outro ponto é que o sustentáculo de cidades que se distinguem pela produção, circulação e consumo de música não pode ser restrito aos estereótipos e gêneros musicais reconhecidos como marcas culturais pelo poder público e pela intelectualidade local, já que habitar uma Cidade da Música pressupõe vivências em outras ideias de cidade que se juntam aos cartões-postais.
Por fim, e não menos importante, não há como deixar de lado o fato de que o Recife, como todas as cidades da música, são constructos de cidades dentro da cidade cujas transformações de espaços em lugares musicais passam por experiências em ambiências comunicacionais complexas, de aninhamentos e exclusões, em que diversas corporalidades constituem narrativas em disputa do que depreendemos como uma Cidade da Música.
Sabedor de que inúmeras urbes habitam nossas ideias de cidade, criando sobreposições, junções e supressões agrupadas em uma mesma nomenclatura, cabe às/aos pesquisadoras/es inquietar-se com o que parece óbvio, já dado e conclusivo, procurando evitar o lugar fácil das sínteses e conclusões afinadas, trazendo para o campo reflexivo os ruídos e as desafinações que são parte constitutiva de uma Cidade da Música.
NOTAS
[1] Janotti Jr.R.; Pires, 2018, p. 161
[2] Barreiro et al., 2024, p.10
[3] Barreiro et al., 2024, p.7
PARA SABER MAIS
JANOTTI JR., Jeder Silveira; PIRES, Victor de Almeida Nobre. Limites das Cidades Musicais: problematizando cidade, território e música. In: FERNANDES, Cíntia Sanmartin; HERSCHMANN, Micael, (Org.). Cidades musicais: comunicação, territorialidade e política. Porto Alegre: Sulina, 2018. p. 141-162.
BARREIRO, Heloise; CARNEIRO, Giovanna; JANOTTI JR., Jeder; MONTEIRO, Gabriel. Inimigos do Fim: apontamentos sobre o circuito de afters no Recife. In: CARDOSO FILHO, Jorge; FERNANDES, Cíntia Sanmartin; HERSCHMANN, Micael; JANOTTI JR., Jeder; PEREIRA, Simone Luci; HERSCHMANN, Micael. Cidades Musicais (In)visíveis Volume 2. Porto Alegre: Sulina, 2024. p. 65-88.
O AUTOR
Jeder Janotti Junior, pesquisador nível 1 do CNPq, professor titular do Decom e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFPE.
COMO CITAR ESSE TEXTO
JANOTTI, Jeder. Os Arrecifes que cercam o Porto Musical: o centro do Recife como o ruído da Cidade da Música. Revista Coletiva, Recife, n. 35, ago.set.out.nov.dez. 2024. Disponível em:https://www.coletiva.org/jeder-janotti . ISSN 2179-1287.
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