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A música negra e o Recentro: configurações da cidade musical diante da falta de investimento do poder público
Giovanna Carneiro
Este texto é um desdobramento do artigo Inimigos do fim: apontamentos sobre o circuito de “afters” no Recife, apresentado no 33° Encontro Anual da COMPÓS.
Localizado no Centro da Cidade do Recife, no bairro de Santo Antônio, o Pagode do Didi é um reduto do samba na terra do frevo. Com sua tradicional roda de samba e pagode, o bar, que funciona desde 1981, surgiu com o objetivo de ser um ponto de encontro de sambistas de todo o Brasil e logo se consagrou como a primeira roda de samba ao ar livre da capital pernambucana.
A permanência na operação do caixa do bar durante todos os anos de sua existência de Vlademir de Souza Ferreira – dono do bar conhecido como Didi –, a presença de músicos recifenses na roda de samba, a localização e a estrutura do estabelecimento resistem ao tempo. Mas, nos últimos anos, sobretudo no contexto pós pandemia da Covid-19, a roda de samba mais famosa da cidade passou por mudanças em seu público e precisou se adaptar.
Ponto de lazer de trabalhadores e trabalhadoras, o pagode acontece toda sexta-feira a partir das 18h, um horário pensado para atrair o proletariado logo após o expediente. Por começar cedo, a roda de samba costumava encerrar por volta das 22h, no mais tardar às 23h; porém, com a mudança do público – que passou a ter frequentadores mais jovens –, agora a música está garantida até uma hora da manhã.
Ao chegar no Pagode do Didi por volta das 20h é possível notar uma transição. No primeiro momento encontramos grupos de pessoas sentadas nas mesas espalhadas ao ar livre na rua; elas conversam, tomam cerveja, consomem os petiscos do bar e alguns levantam para sambar. Porém, a partir das 21h, o primeiro público, formado por pessoas que aparentam ter entre 40 e 60 anos, começa a se dispersar ou se misturar com um grupo mais jovem que toma conta da rua do bar. Os jovens não costumam sentar nas mesas, que geralmente servem de apoio para as bebidas, preferem ficar em pé para circular com mais frequência pelo local.
Nesse momento a cerveja disputa espaço com a caipirinha e também com o famoso Axé¹. Por volta das 22h30 o público do local já mudou completamente, e ficamos em meio a uma multidão composta por pessoas que aparentam ter entre 20 e 35 anos, entre homens e mulheres, negros e brancos de diversas sexualidades. Podemos perceber ainda a presença de turistas. As poucas pessoas do público mais velho que permanecem no pagode estão nas mesas que ficam mais próximas do bar e da roda de samba e parecem mais interessadas em ouvir o repertório dos sambistas do que os mais jovens, que permanecem transitando, cumprimentando amigos, fazendo novos contatos e amizades, interessados também nas oportunidades de flerte que o ambiente bem movimentado pode proporcionar.
O que parece consagrar a mudança do público frequentador do Pagode do Didi é a participação de Maria Pagodinho na roda de samba. A cantora ficou conhecida pelo seu repertório que reverencia grandes sucessos de Alcione e logo caiu nas graças do público, que faz questão de se aproximar da roda e cantar junto com Maria durante a sua participação. O relógio marca 23h quando a sambista entra na roda.
Os novos frequentadores e frequentadoras do Pagode do Didi também colocam em evidência um problema que tem sido relatado por parte do público: a falta de respeito com a roda de samba. A chegada de um público branco e de classe média alta, em grande parte universitários, resultou em uma superlotação do espaço que apresenta uma estrutura limitada. Com isso, ficar próximo à roda de samba é uma tarefa difícil e muitas vezes requer disputa. Sendo assim, quando uma maioria branca começa a se posicionar de maneira a se tornar protagonista na roda de samba, desperta o incômodo de pessoas negras que também estão ali para curtir a música. Subir nas cadeiras, pegar o microfone para cantar sem ser oferecido, insistir para que uma determinada música seja tocada são algumas das atitudes que causam desconforto e até revolta de parte dos frequentadores da roda de samba, que entendem que é preciso respeitar toda uma dinâmica forjada nos fundamentos da cultura negra do ritmo.
Com isso, tem se tornado cada vez mais comum ouvir relatos de pessoas que pensam em deixar de frequentar o Pagode do Didi, mas que não conseguem encontrar outro local onde é possível curtir um samba na rua, de graça, com bebidas a um preço acessível e num ponto central da cidade. E assim o público segue lotando a roda de samba para ouvir saudosas canções de um repertório que homenageia grandes sambistas como Jorge Aragão, Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Alcione e Beth Carvalho.
A partir das movimentações que ocorrem no samba, é possível notar as diversas disputas que estão presentes em torno do espaço sociocultural que é o Pagode do Didi. Disputas estas que dizem respeito à diversidade dos corpos que frequentam o local, mas também à própria área ocupada pelo estabelecimento e seu tradicional evento das sexta-feiras. Portanto, é necessário – como propõem os pesquisadores Cíntia Sanmartin Fernandes e Micael Hershmann em seus estudos sobre as cidades musicais – “observar as interações da cidade não somente como um aparato programado e planejado pelos urbanistas, mas como um espaço de comunicabilidades dinâmicas que se dobram e desdobram infinitamente, construindo múltiplos espaços comunicantes onde se produzem articulações e tensões sociais”.
Configurações do trânsito e a falta de segurança
Quando tensionamos o transitar e suas influências na forma como vivenciamos a cidade e as manifestações musicais que a compõem, é possível constatar como as políticas públicas, ou a falta delas, estão diretamente ligadas com as configurações socioculturais.
No que diz respeito ao Pagode do Didi, por exemplo, é um bar que está localizado no Centro da cidade, com diversas linhas de ônibus que passam a menos de um quilômetro de distância do local, mas boa parte do público, que tem condição financeira para tal, prefere utilizar o transporte por aplicativo para chegar até o bar a fim de evitar assaltos. E isso acontece porque circular pelo Centro do Recife depois das 19h já é perigoso, uma vez que o comércio não funciona mais e o lugar fica deserto. Não são raros os relatos de assaltos próximo ao Pagode do Didi, em sua maioria praticados em uma rua próxima ao bar e por homens armados com facas².
Além disso, a ausência de instalações de banheiros públicos no Centro da cidade é outro fator que demonstra a falta de preocupação da gestão pública com os moradores da cidade e frequentadores da região. Com isso, a falta de estrutura muitas vezes resulta em ruas sujas, uma vez que só há dois banheiros no bar para atender a uma demanda de cerca de 200 pessoas que ocupam o local toda sexta-feira à noite.
É no mínimo questionável o descaso dos governos municipal e estadual com o Pagode do Didi, a primeira roda de samba do Recife que tem mais de 40 anos de história, tendo em vista todo reconhecimento que o espaço já recebeu através de titulações e eventos oficiais organizados pela gestão pública.
A música enquanto agente de revitalização
O bar foi o primeiro local a receber a Terça Negra, um encontro cultural realizado para homenagear a ancestralidade do povo negro de Pernambuco, que agora acontece no Pátio de São Pedro (ou pelo menos acontecia, como veremos adiante). Graças a sua relevância, Didi foi homenageado pela Prefeitura do Recife e recebeu o troféu Terça Negra, em 2009. Em 2010, o fundador do Pagode do Didi também foi diplomado com o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco.
Contudo, como esses títulos influenciaram na manutenção das atividades da roda de samba mais famosa da capital pernambucana? Diante dos problemas relatados acima, é possível afirmar que é só graças ao público e ao proprietário do bar que o Pagode do Didi segue acontecendo de forma independente, enfrentando os desafios de estar localizado em uma área da cidade esvaziada e sem segurança. Situado em um beco sem saída próximo a Avenida Guararapes e entre as pontes que cruzam o Centro do Recife, o Pagode do Didi está inserido em um circuito cultural que tem pouca ou nenhuma atenção do poder público. Nestas mesmas imediações, além da roda de samba, estão o Armazém do Campo, a Casa Bacurau, o Pátio de São Pedro, o IRAQ, o Provinha, entre outros espaços públicos e privados que são responsáveis por manter uma circulação de pessoas na noite recifense.
Poucos metros e/ou quilômetros separam os locais, e por isso o público consegue traçar o roteiro de uma noite onde é possível transitar por estes diferentes lugares. É comum que esse roteiro de lazer noturno comece no Armazém do Campo, passe pelo Pagode do Didi e em seguida por IRAQ, Provinha e/ou Casa Bacurau. Porém, apesar da proximidade dos locais, fazer o percurso entre eles a pé é quase impraticável, e são poucos os que se arriscam, devido à falta de segurança na região.
É evidente que o Centro do Recife, assim como os de grande parte das metrópoles do Brasil, passa por um processo de esvaziamento e desvalorização. A fim de reverter este quadro, a gestão municipal lançou em 2021 o programa Recentro. De acordo com a Prefeitura do Recife, a iniciativa “prevê a manutenção, cuidado, intervenções físicas estruturantes e o desenvolvimento de processos sociais, culturais e econômicos necessários à transformação urbana sustentável e inclusiva do território do Centro”. Dentre as ações previstas pelo Recentro estão a iluminação das ruas, a recuperação da estrutura dos mercados públicos e o investimento em atividades culturais nos bairros que compõem a área central da cidade.
No entanto, apesar de todo seu histórico de relevância na cultura do Recife, o Pagode do Didi ainda não foi contemplado pelo programa. Ao invés disso, a Prefeitura do Recife tem realizado eventos de grande porte que acontecem esporadicamente, geralmente com patrocínio de grandes empresas como a cerveja Devassa, que em setembro de 2023 organizou um festival de música no Cais da Alfândega em homenagem aos 30 anos do movimento Manguebeat, denominado Manguezassa. O evento, que teve shows da banda Nação Zumbi com participações de Lia de Itamaracá, Devotos, Banda Eddie, entre outros, contou com um megaesquema de segurança, banheiros públicos disponíveis e barracas para comercialização de comidas e bebidas.
O Viva a Guararapes também é um projeto cultural realizado pelo Recentro e consiste em uma série de atividades de arte e lazer que acontecem um domingo por mês na Avenida Guararapes, que é completamente interditada para veículos e se transforma em uma área aberta para o público. Boa parte da programação é voltada para o público infantil, e o evento também conta com apresentações de diversos artistas pernambucanos.
Outra ação prevista pelo programa é a “potencialização do Pátio de São Pedro”. Apesar da promessa, os eventos que acontecem de maneira mais frequente no local são realizados de forma independente pelos fazedores de cultura da cidade, como o Som na Rural – veículo de comunicação e som operacionalizado pelo agitador cultural Roger Renor –, que reúne diversos artistas pernambucanos para se apresentarem no território. E também a Quinta Nagô, evento cultural que acontece na terceira quinta-feira de todo mês e é realizado pela Yalorixá, mestra de Cultura Popular e fundadora do Afoxé Oyá Alaxé, Maria Helena Sampaio. Este último, inclusive, acaba por suprir uma necessidade do público negro frequentador da Terça Negra – evento da prefeitura que promove apresentações artísticas para celebrar a ancestralidade no Pátio de São Pedro. Apesar da premissa de acontecer todas as terças-feira, o evento não conta com uma regularidade garantida, e não há um canal de comunicação oficial que divulgue as atrações. Há meses sem uma nova edição do evento, o perfil do Instagram da Terça Negra excluiu todas as suas publicações.
Cidade da Música o ano todo
Em 2021, Recife recebeu o título de Cidade da Música pelas Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A titulação reconhece toda a riqueza cultural que a capital pernambucana possui, colocando em evidência ritmos populares – como frevo, maracatu e forró – que integram o ciclo festivo oficial da cidade e ganham mais prestígio e visibilidade no Carnaval e no São João.
No entanto, é preciso reconhecer e valorizar o fato de que o Recife possui uma efervescência cultural e musical que mobiliza econômica e socialmente os seus populares durante todo o ano, e não apenas durante os ciclos festivos tradicionais. E, a partir disso, é preciso garantir a sustentabilidade e a manutenção desses celeiros culturais que insistem em fazer pulsar a música no cotidiano dos recifenses, ocupando espaços por vezes abandonados – uma vez que, assim como afirmaram Cíntia Sanmartin Fernandes e Micael Hershmann, “[...] os ecossistemas musicais locais invisíveis presentes no cotidiano; e/ou as práticas minoritárias transgressivas, que incomodam e que são até proibidas, as quais desafiam as práticas regulatórias da urbe que em geral estão ‘fora do radar’ do poder público, mas podem se constituir em significativas riquezas locais”.
Em março deste ano, o Pagode do Didi precisou interromper suas atividades por irregularidades nos alvarás exigidos pelo poder público para garantir seu funcionamento. Diante da situação que gerou comoção nos frequentadores do local, o vereador Ivan Moraes (PSOL) propôs à secretaria responsável pelo Recentro a criação de uma Zona Cultural na área em que está localizada a roda de samba e também outras atividades culturais importantes para a cidade, como os sebos de livros. Em junho, o bar e a roda de samba tiveram seu funcionamento restabelecidos após regularização apresentada pelos proprietários, que garantiu o alvará de funcionamento. Porém, até o momento, o Recentro não se posicionou sobre a proposta de criação da Zona Cultural.
Diante disso, é importante notar como a gestão municipal do Recife utiliza da música como um instrumento sociocultural capaz de reconfigurar as dinâmicas de circulação e de valorização dos espaços da cidade em determinados momentos do ano, com eventos pontuais do Recentro e em ciclos festivos tradicionais, mas não consegue viabilizar uma manutenção efetiva de espaços culturais já existentes e com atividades frequentes durante todo o ano.
Além disso, as gestões – tanto estadual quanto municipal – falham também em executar políticas públicas efetivas para garantir a segurança do público frequentador destes espaços, sobretudo das pessoas negras e de baixa renda, que dependem do transporte público, dos agentes de segurança e da iluminação pública para terem o mínimo de oportunidade e direito de locomoção na cidade.
Por fim, é importante destacar ainda que são justamente os espaços culturais geridos por pessoas negras e majoritariamente frequentados por este mesmo público que enfrentam grandes dificuldades em manter suas atividades por falta de investimento e recursos públicos. E isso não é coincidência. Não fosse a capacidade de articulação e execução dos fazedores e fazedoras de cultura e toda a instiga de um público que deseja manter viva e pulsante a música durante o ano todo, me pergunto: o que seria do Centro do Recife, a cidade da música?
NOTAS
[1] Popular bebida local feita à base de uma infusão de ervas, mel e cachaça.
[2] https://m.leiaja.com/noticias/2023/10/27/violencia-ameaca-diversao-no-pagode-do-didi-no-recife/
[3] https://desenvolvimentoeconomico.recife.pe.gov.br/recentro
Economia%20Criativa%20e%20Polo%20Circense
[6] https://www.instagram.com/somnarural/
[7] https://www.instagram.com/afoxeoyaalaxe/
PARA SABER MAIS
BARREIRO, Heloise; CARNEIRO, Giovanna; JANOTTI JR., Jeder; MONTEIRO, Gabriel. Inimigos do fim: apontamentos sobre o circuito de “afters” no Recife. Em: Anais do 33° Encontro Anual da COMPÓS; Niterói. Rio de Janeiro. Brasil. Campinas: Galoá; 2024.
FERNANDES, Cíntia Sanmartin ; HERSCHMANN, Micael. A Força Movente da Música: cartografias sensíveis das cidades musicais do Rio de Janeiro. Porto Alegre: Sulinas, 2023.
A AUTORA
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Jornalista e mestra em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Atua como repórter do site Marco Zero Conteúdo e do Portal Afoitas, além de fazer trabalhos como freelancer. Já passou também pela Folha de Pernambuco e tem publicações no UOL.
COMO CITAR ESSE TEXTO
CARNEIRO, Giovanna. A música negra e o Recentro: configurações da cidade musical diante da falta de investimento do poder público. Revista Coletiva, Recife, n. 35, ago.set.out.nov.dez. 2024. Disponível em: https://www.coletiva.org/giovanna-carneiro. ISSN 2179-1287.
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