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entrevista

Os quintais de Rita Montezuma

Pesquisadora da Universidade Federal Fluminense conversou com a Coletiva sobre a influência africana nos modos de viver e habitar dos brasileiros

 12. 2024 | Entrevista por Amaro Mendonça e Cristiano Borba
                      | Edição: Maria Carolina Santos

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A pesquisadora e professora Rita Montezuma. Foto: Arquivo pessoal

Foi rememorando os quintais da infância na casa da avó em Salvador que a pesquisadora Rita Montezuma, professora do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), viu que aqueles lugares eram, sim, um campo de pesquisa; um espaço privado, mas onde o coletivo aflora em reuniões, festas e plantações. Esse olhar único que a pesquisadora colocou nos quintais das periferias – e em seus desdobramentos, como as lajes e as varandas – são fruto também da sua formação múltipla.

 

Rita Montezuma é graduada em Ciências Biológicas, foi professora da rede municipal do Rio de Janeiro e trabalhou por sete anos na indústria farmacêutica. Mas a pesquisa sempre foi sua vocação. No mestrado e no doutorado foi para a Geografia – “Nunca consegui me encaixar em um mundo dividido em caixinhas cartesianas. Já fui criticada por não parar em uma área só,mas o que me move é a pergunta. Se eu tenho uma pergunta, eu vou atrás dela, seja qual for a área. Eu sou muito feliz sem rótulos”, contou a pesquisadora, em entrevista para a revista Coletiva. 

 

Conduzida pelos editores temáticos Amaro Mendonça e Cristiano Borba, ambos arquitetos e urbanistas, a entrevista discute as ideias de Montezuma sobre os quintais e espaços públicos como exemplos de práticas ancestrais de resistência e sustentabilidade. Na conversa, a pesquisadora critica a deslegitimação que a ciência eurocêntrica impõe aos saberes tradicionais, como a agroecologia e a arquitetura vernacular, e defende uma abordagem afrocêntrica e transdisciplinar da ciência, com a valorização dos saberes ancestrais e tradicionais.

Revista Coletiva — Sobre a justa relação da ciência com os saberes e conhecimentos ancestrais e tradicionais, Antônio Bispo dos Santos – o Nêgo Bispo –, pensador, militante, filósofo e detentor de conhecimento quilombola, falava que conhecimentos de agroecologia e agricultura eram colocados numa caixinha para virar produtos e serem vendidos na universidade. Eu queria que você falasse um pouco da sua pesquisa em relação aos conhecimentos e às tecnologias quilombolas em um ambiente urbano, nos quintais. Como é que isso se desenvolve nas cidades e nas periferias brasileiras?

 

Rita Montezuma — À medida que eu fazia pesquisas no quilombo os saberes se entrecruzavam. Eu percebia as sabedorias e aprendia com elas. Além da pesquisa, iniciamos um processo no qual eu levava, semestralmente, pelo menos uma turma para ter aulas no quilombo sobre ecologia de florestas. O quilombo contava sua história e eu a minha, e a partir daí fomos entrecruzando saberes. Hoje, eu até brinco com eles: “Eu vou trazer as turmas para vocês falarem, eu vou sentar, vou tomar uma cerveja e vocês ficam aí trabalhando, dando aula de ecologia, porque eu já fiz a minha parte” (risos). Na verdade, começamos a perceber, a partir dos conhecimentos que são gerados dentro da universidade, a correspondência nos territórios;isso caberia aos povos indígenas das Américas mas, de certa forma, também cabe aos povos africanos que lá aportaram numa migração forçada. 

 

O continente africano é tão grande, atravessa tantas áreas, tantas coordenadas, de Norte a Sul e de Leste a Oeste. Tem desertos, savanas, matas equatoriais, pluviais, todas as tipologias. Isso facilitou a entrada (de africanos e africanas) nas Américas, porque essa correspondência trazia a memória de uma natureza que nunca foi dissociada; um aprendizado incrível para nós que fomos adestrados numa concepção eurocêntrica de tudo, principalmente da ciência. Essa talvez tenha sido uma das maiores crises que eu tive, porque eu ficava assim: “caramba, não bate”. Aliás, o meu doutorado fez isso comigo, porque eu trabalhei com algo que não era trabalhado dentro das ciências ecológicas; uni ecologia e geografia. A metodologia que eu tinha não se aplicava, tive que adaptar e fui questionada por isso. Eu dizia: “Vocês estão trazendo uma ciência que vem da Europa para aplicar numa realidade tropical brasileira. Não vai dar, entendeu?”

 

Revista Coletiva — E como você vê isso hoje?

 

Rita Montezuma — Hoje eu tenho certeza que não funciona, pois não parte apenas de uma experiência ecossistêmica, passa também por uma experiência de povos e da forma com que esses povos lidam com as suas naturezas. Porque nós somos natureza e essa é uma concepção que o europeu não tem; e principalmente após a reforma Kantiana é que essa noção não aparece mesmo. Então, à medida que eu participava das discussões, das reflexões com o quilombo, foi ficando cada vez mais evidente como se dá a relação com a natureza; me tornei, a partir daí, muito crítica dessa ciência. Até então, eu não tinha contato com a afrocentricidade, com esse debate afrocentrado; e com isso vieram os questionamentos: “olha, peraí, minha mãe já fazia isso”. A gente começa com essas questões, e por sempre privilegiarmos o pensamento crítico, acabamos sendo muito questionadores daquilo que se vê e vive. 

 

Comecei a formular minhas próprias hipóteses, minhas próprias questões. Então, hoje, para mim, é muito claro e eu concordo totalmente com o Nêgo Bispo, o nosso intelectual superorgânico, em dizer que o que a ciência resolve se apropriar e dar nome – “A minha descoberta” – é uma descoberta só para ela. Porque os povos originários de todos os ambientes tropicais do mundo sempre fizeram agroecologia, a técnica da coivara, a produção agroflorestal; e empregamos mal, porque eu não aguento mais ouvir que se faz agrofloresta, quando eu só vejo o ‘agro’ e a ‘floresta’ não está nem por ali por perto. É uma questão que eu trago até para os meus alunos: primeiro me digam onde está a floresta – porque aí podemos discutir o que é uma agrofloresta. 

 

Revista Coletiva — Como começou seu interesse por quintais?

 

Rita Montezuma — Eu sempre me interessei por quintais, por uma questão subjetiva. Hoje, quando eu pego a teoria, a abordagem afrocêntrica para pensar ciência, pesquisa, etc, fica muito claro o motivo da intuição ser parte do nosso processo de produção do conhecimento. A intuição, que é negada na ciência eurocêntrica, é muito bem-vinda em outras matrizes do pensamento, porque não é só o africano que produziu esse conhecimento, existem outros povos que também são produtores de conhecimento e não dissociam a intuição. Por nunca ter tido quintal, e ter sido sempre apaixonada por quintais, comecei a me interessar; e aí, como diz Nêgo Bispo, houve uma confluência com a minha experiência na casa dos meus avós, que tinham quintais.

 

Uma vez me perguntaram: “foi visitando a floresta da Tijuca que você se tornou bióloga?”. Não, foi no quintal da minha avó, na Salvador dos anos 1960, caminhando pelas matas das encostas da casa da minha avó. Ela morava no centro, no bairro da Federação, mas era numa encosta, que me conectava à orla. E muitas vezes, criança levada que eu era, pegava esse caminho para fugir dos castigos. A gente ganhava o mundo, vivia e comia o que tinha ali; aparecia cobra, aparecia tudo. A minha vivência de natureza vem desse espaço. Ao mesmo tempo, por ser muito apegada a esse tipo de ambiente, da janela da minha casa a ecologia que eu via me chamava atenção e eu me questionava o porquê das maritacas estarem saindo de Leste para Oeste e voltando todo dia. Coisas que eu observava e não tinha resposta. Comecei a investigar pelo viés da ecologia urbana, até uma hora que eu falei assim: “Espera aí, eu quero estudar os quintais”. O quintal acaba sendo pouso.

 

A pesquisa foi se desdobrando de tal maneira que quando eu chego no quilombo, ganha uma escala mais ampla de reflexão. Como há um conflito territorial em torno da presença da terra quilombola, com a presença de uma unidade de conservação de proteção integral, então eu quero pesquisar o que é a existência quilombola na relação com a biodiversidade. Os meus estudos já mostravam que aquela forma de uso era conservadora; já estávamos publicando, colocando dados no mundo. Os quintais têm um ritual porque é num espaço privado. Você precisa ser levado. 

 

Revista Coletiva — Como você conseguiu entrar nos quintais das comunidades quilombolas?

 

Rita Montezuma — Minha grande interlocutora é uma pesquisadora colaboradora, a Maria Lúcia Mesquita, que foi até pouco tempo atrás a presidenta do quilombo e que também é rezadeira, mãe e avó. Ela me introduzia nos quintais e me apresentava; era a minha carta branca para eu ser recebida. 

 

Tem todo um ritual belíssimo que só entendemos porque trazemos lá da nossa experiência pessoal. Nós, mulheres, principalmente, sabemos o significado da cozinha e para quem a gente abre a cozinha. Numa sociedade machista, é como se a cozinha sempre fosse da mulher; para você ser recebida é preciso um passaporte. As mulheres nos levavam até a cozinha, e aí quando sentamos para conversar tem café e comida em torno da mesa – isso é profundamente afro diaspórico. A partir daí você tem o encaminhamento para ir ao quintal e perguntar o que quiser. 

 

Por mais que eu fosse aquela mulher negra universitária, e elas mulheres negras donas de casa, sempre busquei o link no sentido de vê-las e entendê-las como mulheres sábias, como pessoas sábias. Sempre me coloquei na condição da horizontalidade; aciono minha mãe, minhas avós, minha história. Quando você aciona esse lugar, se vê [a si mesma] e se vê como povo. A universidade é só um dos campos que pretendemos conquistar como povo, porque por ora ainda é muito individual. 

 

Revista Coletiva — Acionar a sua ancestralidade fez com que você criasse uma relação com essas pessoas?

 

Rita Montezuma — Abre-se um portal, transpondo esses mundos, de lá para cá, daqui para lá. Não me importo com essa diferenciação do meu olhar de ecóloga, geógrafa, biogeógrafa, seja lá o que for. Hoje eu compreendo que na afrocentralidade isso não importa, porque o afrocentrismo te obriga a ser transdisciplinar. Hoje todo mundo quer saber de quintal, mas quando eu comecei a estudar as pessoas falavam pra mim: “mas isso é um objeto científico?”.

 

Por que não? E agora eu estou vendo que está todo mundo interessado em quintal, falando de quintal à beça. Estou muito feliz porque eu não aciono apenas uma biogeografia, uma ecologia interescalar; eu estou acionando as memórias, a história. Estou acionando geografias e arquiteturas. O universo de conhecimento se abre, e se abre em um diálogo de como se revelam e se vêem os quilombos, as favelas, os territórios negros, afroindígenas ou indígenas.

 

Queremos falar, por exemplo, de urbanismo e trazer como referencial os seis mil anos antes da era atual, falar do urbanismo produzido no continente africano. A história da humanidade começou nele, a primeira diáspora é da África para o resto do mundo.

 

Meu referencial vai ser esse, um referencial que me foi negado, que tentaram nos subtrair. A força desses povos é tanta que nós chegamos ao século 21 com esses conhecimentos e mostramos o quanto esses conhecimentos são salutares para pensarmos não só a justiça social e a paz social, mas também outros mundos, antes que o céu caia sobre as nossas cabeças – para parafrasear aqui Davi Kopenawa (xamã e pensador). 

 

Revista Coletiva — Fiquei pensando sobre essa questão identitária, sobre o quanto temos dessa identidade construtiva que lida com nossos ambientes, desde a palafita nos ambientes alagados com as marés até aos quintais, que lidam com o microclima e com as vivências sociais muito mais próximas. Esse processo de não identificação desses aspectos como identidade brasileira e como isso está atrelado ao racismo ambiental. O planejamento urbano não só não aceita, como persegue e destrói essas soluções. E como isso faz mal para um país inteiro: é como se fabricássemos um monte de soluções que nós mesmos estamos destruindo.

 

Rita Montezuma — É preciso deslegitimar para que a apropriação possa ser mais efetiva. É o que a história nos ensinou: você deslegitima as pessoas para poder escravizá-las. Deslegitima os conhecimentos dela para se apropriar e se colocar como superior na hegemonização desse conhecimento. Essa questão identitária talvez seja a força motriz que me faz buscar esse conhecimento.

 

Quando você se reconhece, [isso] é de uma potência, de uma força tão grande! E quando você se vê e se entende como resultado de um processo histórico que foi extremamente violento, mas que ele foi violento porque buscou ser proporcional à sua força, sua força como coletivo, isso empodera. Toda vez que penso nesses conhecimentos e vejo a riqueza deles, me sinto muito empoderada e desafiada a desvendá-los e a torná-los públicos. 

 

As palafitas, por exemplo, ilustram a existência de tecnologias ancestrais. A ciência não se originou no século 19, nem em um único lugar. Antes das tecnologias serem institucionalizadas na forma como nós a conhecemos no Ocidente, existiram em todos os continentes e muito anterior à chamada era moderna. Não falo só dos povos maias ou astecas. A nossa necessidade de ser e existir produziu conhecimentos adaptados aos ritmos, dinâmicas e realidades ambientais onde nós vivemos. Povos de áreas alagadas, dos mangues e dos pântanos desenvolveram as palafitas brilhantemente como uma melhor forma de lidar com esses ambientes e suas dinâmicas. Só que quando esses povos passam a ocupar o espaço urbanizado numa lógica eurocêntrica, vão se adaptar àquelas realidades em que foram colocados. 

 

Vou trazer o exemplo do Rio de Janeiro: até os anos 1980 a favela da Maré tinha palafitas, algo que era sempre visto com péssimos olhos; a mesma coisa com o bairro Alagados, na Bahia, e várias outras regiões. Isso porque eram áreas periféricas. Na verdade, foram aquelas áreas onde os europeus não sabiam o que fazer, não fazia parte da realidade deles a ocupação desses lugares, então eles foram negligenciados. Essas pessoas foram para essas áreas porque eram os únicos locais possíveis de habitar – só que elas traziam os conhecimentos ancestrais que lhes permitiram empregar essa memória biocultural, para fazer referência aqui ao Vitor Toledo, um pesquisador mexicano que brilhantemente traz essa discussão e essa memória biocultural. 

 

Ao ter o contato com essa realidade específica, as pessoas produzem suas tecnologias e criam suas condições, que, para o olhar estrangeiro, além de tudo racializado, vai desqualificar e desprezar aquilo. Até que, em algum momento, percebem que aquilo pode ter algum valor. 

 

Outro exemplo é a casa de pau a pique, que até então era do miserável, do pobre nordestino; desqualificada como “a casa do barbeiro” [inseto vetor da Doença de Chagas], disso e daquilo. Porém, uma hora se descobre que regula melhor a temperatura, é mais barata e é verdadeiramente sustentável do ponto de vista ecológico, porque, uma vez abandonada, a casa é reincorporada ao ecossistema. 

 

E aí, diante disso tudo, o que se faz? Pegam essa tecnologia, aprendem, dão um rótulo bacana: “vamos chamar de bioarquitetura”. Com isso, a casa de pau a pique se torna um absurdo de cara. Isso se aplica a vários outros saberes que são hegemonizados, e com isso se cria uma ruptura entre aqueles que são, de verdade, os produtores desse conhecimento. Uma coisa que esse processo civilizatório traz muito bem demarcado é a capacidade de roubar, de tomar para si aquilo que é do outro. Essa é a marca civilizatória do europeu. 

 

Revista Coletiva — A utilização do espaço público, da rua, foi forjada também pelos colonizadores europeus que chegaram aqui. A rua era um ambiente apenas para escoar produtos, e havia um preconceito muito grande com quem estava nela. Hoje temos uma cultura que é forjada desse encontro das populações, e na rua há desde a cultura de resistência e reivindicação dos direitos à cultura de festa, de Carnaval.

 

Como é que você avalia esse modo de habitar que não é só para a parte interna da casa, mas também para uma criação comunitária brasileira? E como o negro habitar e as tecnologias ancestrais de quilombo têm influência na criação dessa identidade, não apenas das soluções nas próprias casas e nos próprios quintais, mas também nessa cultura de rua?

 

Rita Montezuma — Interessante sua pergunta, pois me leva a uma nova perspectiva sobre o tema. Você já reparou qual é a morfologia de uma aldeia? Existem os espaços privados que, no caso, são casas coletivas, na grande maioria. Mas elas são colocadas em círculo e há uma área central onde as pessoas convivem, as diferentes casas se entrelaçam e tem esse entorno da floresta.

 

O quilombo não é diferente disso. Inclusive, já escrevi algumas coisas e já dei algumas palestras falando sobre isso. Primeiro, porque a circularidade é uma marca registrada desses dois povos.Não me atrevo a falar dos povos originários, mas percebemos a convergência dessas duas matrizes da formação social brasileira.

 

A geografia do quilombo é extremamente variada e é muito ditada pelas condições do meio. Por ter vindo de uma migração forçada, os quilombos se conformaram de acordo com contextos não apenas geográficos, mas históricos e políticos também; e por isso há uma diversidade muito grande dessas geografias. Mas existe essa relação do espaço do indivíduo, que é respeitada, e o espaço do coletivo, que tem o status de troca e de encontro. O status de um cuidar coletivo, de uma cooperatividade, que são valores afro-civilizatórios.[A intelectual e educadora feminista] Azoilda Trindade comenta sobre esses valores civilizatórios: a singularidade, a oralidade, a cooperatividade. 

 

A urbanização, embora altere a estrutura, preserva certas funções. Esse diálogo eu trago para analisar os quintais quando eu falo que a laje, o terraço, a varanda são os quintais ressignificados. Se mudam as formas, mas as funções resistem.

 

Quando se cria essa estrutura urbana, algumas funções vão permanecer porque são intrínsecas ao viver desses grupos e vão estar, de certa forma, presentes no campesinato europeu também. Essa coisa da relação de vizinhança, da cooperatividade, leva ao uso desse espaço coletivo. Outra coisa que vai ao encontro do que você está falando é a questão da festa; um dos valores afro-civilizatórios está justamente na ludicidade, na sociabilidade. É o povo do canto, da dança. As nossas corporeidades têm muito essa manifestação da dança. Conversamos pelo ritmo, usamos a música para nos comunicar. Não são coisas à parte do nosso viver.

 

A rua é o encontro, a festa, a manifestação. Uma vez enxadrezados nesse modelo de habitar urbano que foi importado da Europa – e uma importação horrível, porque o que havia de melhor desse urbanismo que os mouros deram à Península Ibérica pouco foi entregue aqui – e nas primeiras oportunidades ocupamos as ruas. O carnaval, na minha opinião, é apenas uma desculpa. Usamos o carnaval apenas para marcar um momento, mas toda essa ocupação está presente no boi do Maranhão, nas festas juninas e nordestinas, em uma série de manifestações que chegam com a cultura europeia e são enriquecidas pelos povos originários das Américas e pelos povos africanos.

 

Revista Coletiva — Para fechar: você sabe de algum mapeamento, ou até mesmo alguma reflexão, sobre a possibilidade de como isso pode ser incorporado às políticas públicas oficiais?

 

Rita Montezuma — O resumo dessa ópera – ou desse samba – é exatamente isto: o direito do habitar. É direito das pessoas escolherem como elas querem ter o seu cotidiano. O projeto dos quintais, inclusive, inverte a lógica do pensamento sobre a cidade, porque ela não está sendo pensada dos governantes para baixo, e sim a partir do corpo para a cidade. 

 

Isso pode gerar uma política pública incrível, e eu trabalho exatamente nesse sentido quando eu me associo aos movimentos sociais. Há muito tempo eu tenho uma articulação com o Grupo das Barras; vemos e entendemos a demanda e dizemos o seguinte: é possível fazermos um outro planejamento, produzirmos uma outra forma de habitar mais digna, pensarmos numa forma urbana que seja integradora, solidária e que nos permita ter a festa – uma festa que não precisa ser demarcada pontualmente num calendário, mas que possa ser até uma festa cotidiana.

 

A coisa mais gostosa é poder sair do trabalho e no caminho ser parado por um vizinho, um amigo e tomar uma água que seja e bater um papo. Eu vou dar um exemplo: tenho uma relação de vizinhança muito forte; não é raro eu sair a pé pelo meu bairro e, de repente, chego numa esquina, encontro um amigo e já tem um copo me esperando. E aí conversa, troca, discute o condomínio, a rua. Isso é tão enriquecedor.

 

Antes de serem tomados por narrativas de violência e de discriminação, os subúrbios do Rio de Janeiro produziram essa cultura popular tão incrível. As pessoas sentavam nas ruas, aquela coisa de botar a cadeira na calçada para tomar a fresca e conversar com os vizinhos. Eu sonho com esse lugar.

 

E já que isso é a nossa utopia, por que não tentar pelas vias públicas um outro projeto de segurança pública, um outro projeto de urbanismo, outro projeto de arborização? Que possamos fazer com que a população retome as ruas e as praças como espaço público coletivo. Se não for para trazer uma outra forma, outros padrões múltiplos – porque padronizar é engessar – para que serve a pesquisa?

 

Para que eu estou aqui, cercada pelos meus alunos, para falar disso tudo se não for porque acreditamos em uma utopia de outros mundos? Se essa é a nossa forma de viver, vamos a ela, mas vamos com a sabedoria que deixamos lá para trás. Não que essa sabedoria não precise ser renovada – precisa sempre. A oralidade nos ensina isso. Aliás, é o princípio de Sankofa: olhar para trás para garantir o presente e ter a certeza de um futuro. Sem isso, acho que não vale a pena.

A ENTREVISTADA

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Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) (1985), mestra em Ecologia (1997) e doutora em Geografia (2005) pela Universidade do Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é professora Associada do Departamento de Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF), onde atua na graduação e no Programa de Pós-Graduação em Geografia. Tem ênfase nos seguintes temas: Ecologia, Biogeografia, Ecologia Política, Gestão de Áreas Protegidas, Diagnóstico Ambiental, Conflitos Socioambientais e Geografias Negras. Além disso, tem se destacado por sua atuação e publicações voltadas para as Geografias Negras, contribuindo para o debate sobre a racialização do espaço, Racismo Ambiental e a valorização dos saberes afro-diaspóricos. É membro titular e fundadora da AFIDE/UFF (Assessoria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade) e integrante do Comitê de Demandas Étnico-raciais, coordenando o GT Quilombola da UFF.

COMO CITAR ESSE TEXTO 

 

MONTEZUMA, Rita. Entrevista com Rita Montezuma. [ 21 de out. 2024] Recife: Revista Coletiva. Entrevista concedida a Amaro Mendonça e Cristiano Borba. Disponível em: https://www.coletiva.org/entrevista-rita-montezuma . ISSN 2179-1287.

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