Tempo, tempo, tempo
Daniel Munduruku
Meu nome é Daniel e pertenço a um povo que se chama Munduruku, um povo ancestral que carrega consigo a honra e a dignidade de ser brasileiro. Por conta desse meu nascimento, tenho orgulho de ser um brasileiro nascido Munduruku, pois é disso que se trata no final das contas: o Brasil é um país que carrega em seu DNA uma interculturalidade de fazer inveja a todos os outros países deste nosso planeta.
É comum, no entanto, as pessoas olharem para mim e verem um "índio”. Elas seguem a imagem que foi introjetada na mente delas. Devido à minha aparência, elas apenas conseguem me ver como um "índio”. Queria dizer a vocês, no entanto, que apesar de minha cara de "índio”, meu cabelo de "índio”, meus olhos puxados de "índio”, as maçãs do rosto salientes de “índio”, eu não sou “índio”. E digo mais, não existem “índios” no Brasil. Ao afirmar isso, quase consigo ver a cara de espanto que o caro leitor está fazendo.
Brincadeiras à parte, é mesmo comum esse tipo de reação. Isso acontece porque a maioria das pessoas foi ensinada a nos reconhecer através de uma palavra que não diz quem nós somos, mas diz o que elas acham que nós somos. O pior é que esta palavra está ligada a duas imagens que misturam dentro da gente: 1. Uma imagem romântica que diz que o “índio” é o bom selvagem que vive na floresta, caçando e pescando numa espécie de eterno domingo paradisíaco; 2. A outra imagem tem a ver com um olhar ideológico difundido pelos que são inimigos dos povos indígenas.
Quem nunca ouviu dizer frases do tipo: “índio” é preguiçoso; "índio” é selvagem; "índio” é atrasado; "índio” é covarde; "índio” só atrapalha o progresso e o desenvolvimento, entre outras mais escabrosas? Sei que alguns dos leitores dirão que jamais pensaram isso e que só têm um olhar positivo sobre os tais “índios”. Mas será que ao verem um "índio” trajando roupas ocidentais, bem formado pela universidade, músico, escritor, advogado e empresário não terão pensado algo como: acho que este aí não é mais “índio de verdade”, embora ele se pareça com um deles. Isso acontece porque está incrustrado na mente dos brasileiros esse tipo de pensamento. A escola só nos ensinou a desqualificar os povos ancestrais. Ela não nos ensinou a chamá-los pelo nome ou a compreender suas diferentes formas de humanidade. Como um bom aparelho ideológico, a escola serviu para diminuir sua rica visão de mundo tanto material quanto espiritualmente. Pois lhes digo, eu sou Munduruku. Não sou “índio”. Não sou um apelido, uma negação. Sou uma afirmação, sou parte de um povo que tem uma história linda para contar.
O povo Munduruku está presente em três estados brasileiros: Amazonas, Mato Grosso e Pará, de onde sou oriundo. Tem uma população aproximada de 15 mil pessoas e está em contato com a sociedade nacional desde o século XVIII. Desde essa época, portanto, é um povo que resiste bravamente para não abrir mão de sua identidade, apesar dos conflitos desiguais gerados pela colonização a que foram submetidos ao longo do tempo.
Gostaria de compartilhar com vocês uma particularidade do meu povo: nós não temos o hábito de cumprimentar as pessoas através do toque físico como acontece em outros povos. Nossos avós nos ensinam desde cedo que quando desejamos cumprimentar alguém, temos que nos aproximar da pessoa, olhar dentro dos olhos dela e dizer: xipat? ‘tudo bem?’. A pessoa cumprimentada se sente na obrigação de falar a verdade porque, dizem os velhos, nossos olhos são a única parte do corpo que não mente. Eles sempre revelam o que sentimos dentro de nosso coração. Em função disso, ainda hoje acontece algo milagroso: a gente senta e conversa olhando um nos olhos do outro. E o que isso tem de importante? Isso nos lembra que a gente precisa ter tempo para o outro.
Quando nos propomos ouvir, temos que dar tempo àquele que cumprimentamos. Isso é possível porque meu povo tem uma noção de tempo diferente daquela que é defendida pelo Ocidente. O tempo ocidental é o tempo linear, marcado pelo relógio que nos aprisiona, dando a falsa impressão de que o dominamos e podemos fazer o que quisermos. Nós, na verdade, não nos damos conta de que somos o tempo todo conduzidos por um tempo que não nos pertence e do qual somos eternos escravos. O tempo ocidental é o tempo da produção, do acúmulo, da riqueza, do futuro.
O tempo indígena, no entanto, é o tempo da natureza e a natureza, como dizia Charles Darwin, não dá saltos – Natura no facit saltus, ele dizia. É o mesmo que dizer que a natureza segue uma lógica que responde às suas próprias necessidades. O tempo do corpo é o tempo da natureza. Respeitar este tempo é oferecer ao corpo tudo o que ele precisa para viver com equilíbrio. Assim, o corpo segue o tempo de suas necessidades, obedecendo a circularidade que a própria natureza lhe desperta. Vale lembrar que ao refletirmos sobre isso, nos colocamos dentro da natureza como parte dela. É assim que os indígenas se sentem em suas diferentes formas de humanidade.
Outra particularidade do meu povo: nós não temos em nosso repertório linguístico a palavra futuro. Em nossa compreensão de tempo, temos apenas o passado – o tempo da memória – e o presente, o tempo do agora. A palavra "futuro” não foi inventada por nós porque, vocês sabem, o “futuro” não existe. Ele é pura especulação da mente humana, que o criou com o objetivo de nos iludir e nos fazer aceitar a condição de eternos dependentes do tempo.
Para os povos indígenas, a língua manifesta a realidade conhecida, experimentada, compartilhada e isso tudo só é possível quando vivemos o presente. Sim, meu avô, quando desejava nos lembrar desta verdade, nos dizia: se o momento atual não fosse bom, não se chamaria presente. Ele nos fazia pensar que o momento vivido era um presente que recebíamos do universo para que pudéssemos ser plenamente felizes. Ao amanhecer o dia, éramos sempre lembrados que aquele era um momento único, uma roupa que nos era oferecida para ser usada única e exclusivamente naquele dia. Tudo o que já havíamos vivido antes deveria ser guardado em nossa memória para que nada nos distraísse e nos tirasse da vida vivida.
Essa compreensão de tempo sempre deixou a sociedade envolvente um tanto boquiaberta, porque ela vai frontalmente contra a visão linear e quadrada que sempre a norteou. A propósito, gostaria de dizer que, quando criança, o que mais me deixava perplexo na cidade grande era a sua constituição em formato de caixas. Sim, eu sempre achei estranho o fato de as pessoas morarem dentro de caixas amontoadas umas sobre as outras. Eu as via ouvir música que saía de dentro de uma caixa; assistir a uma programação que saía de dentro de uma caixa; tirar dinheiro ou andar sobre caixas com rodas; morar em caixas divididas em outras caixinhas, para as quais se subia em uma caixa menor, que as levava para cima e para baixo, porque era muito longe para subir ou descer as escadas.
Eu me impressionei ao descobrir que havia uma caixa onde as pessoas entravam para ficar embaixo de uma chuva particular que já descia quente sobre suas cabeças. Então eu pensava: é claro que esta gente não compreende nosso modo de viver. O tempo deles é quadrado e o nosso é circular. Eles gostam de cantos, de esquina, nós gostamos do infinito; eles querem segurança, nós liberdade; eles querem controlar a vida, nós queremos vivê-la. Foi assim que compreendi o motivo por que nos chamavam de preguiçosos: nós não temos um lugar quadrado para guardar a produção que exige espaço, nós preferimos reter na memória a ideia de que somos seres em trânsito, em passagem, nômades. O nômade sabe que não pode acumular bens materiais, por isso desenvolve um modo de racionar seguindo a lógica da natureza, respeitando ciclos, alimentando rituais, obedecendo aos ensinamentos da tradição, que garante que somos apenas fios na teia e que é preciso aceitar uma única verdade: somos seres do presente. Por que devemos nos manter numa caixa que aprisiona nossa liberdade? Por que aceitar um tempo que não nos pertence? Um tempo que é pura ficção? Um tempo que promete felicidade, riqueza, paz, descanso, aposentadoria, enfim, o paraíso? Um tempo que nos oferece "futuro”?
Digam-me: qual a pergunta que não se faz para uma criança indígena? “O que você vai ser quando crescer”, certo? Não é esta a pergunta que mais se faz para uma criança que vive no mundo quadrado? Por que não se pergunta isso a uma indígena? Muito simples: ela não há de ser nada. Ela já é tudo o que precisa ser. Ela é um ser humano completo enquanto criança. A única coisa que ela precisa é brincar, brincar e brincar. Cabe aos adultos proporcionarem todas as condições para que seja plenamente criança. Isso está dentro de nossa cosmovisão de tempo e compreensão do que é ser humano em sua totalidade.
Repetimos vezes sem fim um modelo educativo que tem dado certo nos últimos dez mil anos (para não ser tão vaidoso). Dessa forma, dividimos nossa formação em etapas, a que chamamos ritos de passagem, isto é, rupturas temporais que permitem marcar nossa mudança física e nosso comprometimento social. Em outras palavras: criança tem que ser criança. Passada esta fase, ela precisa guardar na memória tudo o que foi vivido, porque na fase seguinte – a adolescência – ela precisará ser plenamente adolescente e tem que viver esta fase sem desejar ser novamente criança e sem almejar desesperadamente a vida adulta. A cada fase, seu tempo. Depois será adulto e, para isso, terá que se comprometer com sua vida adulta, formar família, construir sua casa, educar seus filhos. Mais para frente, será avô e avó e já não poderá mais se preocupar em ser pai e mãe.
Aliás, cabe aos pais educarem o corpo da criança. Cabe a eles ensinar a subir nas árvores, nadar no rio, cuidar da roça, coletar frutos e sementes, construir brinquedos, tecer cestos, fabricar tintas, conhecer o ambiente, entre outras coisas. Isso tudo faz parte da educação do corpo e da mente, porque envolve um processo educativo delicado que inclui valores individuais e coletivos; inserção na vida comunitária, pequenas responsabilidades no cuidado com o cotidiano social. No entanto, se há algo que um Munduruku deseja é ser avô/avó. Velho, como os chamamos.
Cabe aos avós a educação do espírito. São eles os responsáveis diretos pela transmissão dos valores espirituais, valores que dão sentido à nossa existência. Eles nos dizem de onde viemos, quem somos e qual o sentido de nossa vida. Fazem isso contando histórias, trazendo para o momento atual a memória ancestral que foi organizando o mundo de modo a nos sentirmos partes dele e não seus donos ou proprietários. Como parte da transmissão desses saberes, os velhos têm papel importante, são referências vitais para as crianças e jovens. Sem os avós, as crianças perdem seu ponto de equilíbrio. Por esta razão os velhos são tão valorizados e não abrem mão de seu papel de avós. Não desejam ser outra coisa a não ser serem avós. Não ficam com vergonha de envelhecerem e nem andam nas academias buscando a perfeição física ou adiando suas existências. Sabem do seu papel na atualização dos saberes ancestrais. Sabem que são seres do presente, para o presente.
Educamos, portanto, nossas crianças para serem pessoas presentes. Não lhes oferecemos "futuro” ou as imaginamos "investimentos”. Queremos que sejam felizes hoje, agora, para que não fiquem frustradas caso não vivam uma longa vida. Infelizmente, quando olho para o que as escolas oferecem hoje em dia fico abismado: elas oferecem “futuro”. As crianças são convidadas a terem um futuro brilhante e para isso participarão de muitas atividades extracurriculares como natação, judô, Karatê, futebol, balé, capoeira, entre outras, para que sejam "alguém de verdade” quando crescerem. As instituições garantem e os pais “compram” o futuro dos filhos tirando deles as experimentações necessárias para serem humanos enquanto ainda crianças. Quase nunca percebem que seus filhos estão virando escravos e robôs, simplesmente porque não estão sendo verdadeiramente crianças. Crianças que precisam de presença (estar presente) e de referências (sentidos de existência).
A escola quase sempre entorta o pensamento das crianças. Pode parecer estranho, mas as crianças nascem com o pensamento circular. Basta que os pais percebam como elas gostam de ouvir histórias. Quase sempre as mesmas histórias, por noites sem fim. Se o adulto tenta convencê-las a trocar de histórias, elas se sentem ofendidas pela mudança. Isso acontece porque o pensamento elíptico das crianças precisa ir construindo a história narrada dentro de si. Elas vão “amarrando” os sentidos a cada nova narração, até que a história esteja completa dentro do seu círculo de aprendizado. Nesse momento, a criança não precisa mais ouvir a história, porque ela já está “tatuada” em sua memória ancestral. Pensando assim, talvez possamos entender os “amigos invisíveis” com os quais nossos filhos conversam quando crianças; os jogos e brincadeiras que inventam a partir dos objetos espalhados na casa; os estranhos sonhos que lhes visitam à noite e os quais contam sem afetação. Esse é o pensar circular delas, que lhes oferece a possibilidade de sentir-se um com o universo.
A escola, no entanto, lhes arranca isso. Ela oferece um pensamento linear, orgânico, manipulável, previsível, planejável. Deve ser por isso que as crianças choram quando percebem que terão que abrir mão da circularidade para adentrarem num mundo absolutamente vazio de liberdade.
Para finalizar, gostaria de recorrer à memória do meu avô Apolinário. Ele era um velho muito sábio que cumpriu sua tarefa ancestral de nos oferecer sentidos. Quando se assentava para contar histórias, sempre nos lembrava que “se o momento atual não fosse bom não se chamava presente”; sempre que pressentia que eu estava triste, frustrado, decepcionado com meus caminhos na cidade me levava até o rio que corria pela aldeia e dizia: “Temos que ser como o rio, meu neto. O rio tem uma voz dentro dele que o lembra que ele não pode nunca desistir quando encontra um obstáculo à sua frente. Se o fizer, jamais irá cumprir seu destino de encontrar-se com o mar. Rio que desiste apodrece e nele não será mais possível encontrar vida, alegria. Rio podre é aquele que desistiu de seguir adiante. Nós temos que ser como o rio, meu neto. Não podemos desistir jamais”. Ele falava essas coisas como se eu, criança ainda, pudesse compreender a profundidade de suas palavras. Para coroar sua fala, vovô dizia: “Só existem duas coisas importantes a gente saber na vida: (1) Nunca se preocupe com coisas pequenas; (2) Todas as coisas são pequenas”.
Era assim que eu aprendia a ser do presente. Por conta dessa pedagogia ancestral, posso dizer que o hoje é o único dia que disponho para ser plenamente humano em todas as dimensões que isso implica: social, política, lúdica e espiritual. O kairós é meu tempo. Só hoje posso ser. Só o presente me compromete com o meu tempo, com minha gente, com minha crença, comigo mesmo.
Ah! E para aqueles que ainda não conseguem se livrar da ideia do "índio” como ser do passado, lembro que por sermos seres do presente, somos seus contemporâneos. Em outras palavras: temos direito de ser e estar aqui e agora usufruindo de tudo aquilo que a natureza humana inventou. Se negarmos isso, negaremos nossa capacidade de nos reinventar. Isso seria uma afronta à memória dos ancestrais.
O AUTOR
Daniel Munduruku é escritor indígena, graduado em Filosofia e licenciado em História e Psicologia. Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo, realizou pós-doutorado em Literatura na Universidade Federal de São Carlos - UFSCar. Diretor presidente do Instituto UKA - Casa dos Saberes Ancestrais. Autor de mais de 50 livros para crianças, jovens e educadores, com diversos prêmios no Brasil e exterior entre eles o Prêmio Jabuti e Prêmio da Academia Brasileira de Letras. Atualmente é Professor Visitante da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas. Mais informações no blog: http://danielmunduruku.blogspot.com.br.
COMO CITAR ESSE TEXTO
MUNDURUKU, Daniel. Tempo, tempo, tempo. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e.... nº 1. Publicado em 13 junho 2018. Disponível em: https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-n1-tempo-tempo-tempo-por-daniel-munduruku. ISSN 2179-1287.