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Educação e 

Diferenças e...

Editores Temáticos: Alik Wunder e

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

nº 27 | 03 de abril de 2024

Mapaisagem: quando as imagens nos contam histórias. Construindo trajetos entre arte, migração e as diferenças 

Luís Cláudio Mendes

Em 2022, o Museu de Artes Visuais (MAV) completou 10 anos de existência. O MAV é um museu universitário, mantido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que articula a produção artística produzida pela comunidade universitária e externa, possibilitando um encontro entre pessoas, arte e pesquisa. Por esse motivo, para comemorar uma década de atividade do museu, mas também com o objetivo de democratizar e ampliar o acesso das pessoas a esse espaço, o MAV deu vida à exposição “Paisagem Sob Inventário” [1], que ficou exposta no Museu de Arte Contemporânea de Campinas (MACC), localizado no centro da cidade, de 09 de agosto a 30 de setembro. 

Nesse tempo, fazendo parte do projeto “Imagens, palavras e as representações dos e sobre os refugiados na cidade de Campinas”, orientado pelo professor da Faculdade de Educação, Antônio Carlos Amorim (Unicamp), fui um dos mediadores da exposição. Com uma proposta educativa de imersão, recebemos um total de 1.243 alunos, do nível fundamental ao superior. 
 

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Figura 1: Mapaisagem, 2013-2022, de Amilcar Packer. Foto: Luís Cláudio Mendes.

Essa, de longe, foi a obra que mais chamou a atenção do público nas visitações. Talvez isso tenha ocorrido pela gama de elementos apresentados pelo artista, autor da obra, que chama a atenção. Amilcar Packer é um artista chileno que vive atualmente em São Paulo. Conforme Isabela Jaha [2]:

A atenção dispensada pelo artista para procedimentos de deslocamento, continuidade e decolonização permite compreender sua obra a partir da subversão e (re)contextualização da economia simbólica de objetos do cotidiano normalizados pela cultura de massa, de aspectos ou elementos da paisagem urbana ou da arquitetura [3]. 

Partindo desse ponto, das inúmeras possibilidades de olhares sobre a obra, minhas interpretações a respeito desses elementos se moldaram a partir do próprio nome da exposição “Paisagem Sob Inventário”. Há vários alimentos espalhados pela obra, alguns em sua forma natural, como as batatas, e outros em embalagens, prontos para serem comercializados, assim como há também nomes de países, continentes, etnias e línguas indígenas. Desse fato, pensei muito sobre o processo de deslocamento que os alimentos fazem até se tornarem industrializados: são retirados da paisagem natural e encaminhados para um processo industrial, até virarem produtos nos supermercados. 

Da matéria prima às embalagens de plástico, há um longo processo de transição dos alimentos, desde o plantio até a definitiva compra da mercadoria. É possível, a partir disso, analisar aspectos ligados à paisagem que foi destruída, reconstruída e que será destruída e reconstruída inúmeras outras vezes, para que a cultura de massa continue a funcionar. Portanto, é interessante observar como um alimento – ou seja qual for a matéria – transformado em mercadoria pode contar a história de um lugar, ou até mesmo denunciar aspectos políticos ligados ao território. Sobre isso, Ailton Krenak, importante líder indígena, filósofo e escritor brasileiro, em sua obra “A vida não é útil”[4], ao refletir sobre o assunto, diz: 

Eu ganhei uma plantinha maravilhosa que produz umas folhinhas que você pode colher, lavar, botar um azeite ou limão em cima e comer. Ela é cheia de proteínas, se chama moringa (Moringa oleifera). Então, minha planta de moringa estava crescendo lá no quintal, e um dia, do meio para o final da tarde, as formigas a acharam. Quando eu olhei, não tinha mais nenhuma folha: tinham comido todas, ficou só o talo. Aquilo me deu uma chateação com aquelas formigas… Pois nós estamos fazendo a mesma coisa com o planeta, do meio-dia para o fim da tarde a gente termina de comê-lo. A ecologia nasceu da preocupação com o fato de que o que buscamos na natureza é finito, mas o nosso desejo é infinito, e, se o nosso desejo não tem limite, então vamos comer este planeta todo [5]

No Brasil, há um grande problema nisso, a respeito dos territórios indígenas, por exemplo, que sofrem com a grilagem de terras, com o desmatamento e, infelizmente, de forma recorrente, com o genocídio de povos indígenas, que acabam sendo “apagados do mapa”. Dados do Censo Demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2010, o Brasil convivia com mais de 274 línguas e mais de 300 etnias indígenas [6]. Em contraponto a isso, levando-se em conta o processo de colonização do Brasil, esses números eram muito maiores, tendo em vista que muitas etnias indígenas foram extintas, apagadas. Krenak, com isso, não chama a atenção somente para as questões ambientais, mas também para a urgente necessidade de preservação desse restante da população indígena que está, há tempos, sob risco de mais apagamentos. 

 

Dialogando com essa questão, um episódio no mínimo intrigante que ocorreu no final da exposição foi um perceptível apagamento de algumas palavras indígenas desse mapa. Pela obra ter sido feita de giz e de tinta fosca, criando uma espécie de lousa, ainda que não propositalmente, essas palavras foram sendo apagadas com o tempo, talvez por descuido – ou não – dos espectadores, ao se aproximarem da obra. A partir da concepção imagética, a arte acaba representando muito a realidade.

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Figura 2: Obra Mapaisagem, de Amilcar Packer, em um dos últimos dias da exposição. Foto: Luís Cláudio Mendes.

Nessa perspectiva, a questão do refúgio e da migração fica muito evidente na realidade indígena. Normalmente, quando pensamos em migrações forçadas, é comum que a primeira imagem que venha à mente seja de pessoas advindas de outros países, em contextos de guerra por território. Entretanto, olhando para o cenário nacional, é possível observar as nossas guerras internas, dado que as culturas indígenas, de forma violenta, estão a todo tempo sob risco, ainda mais as poucas que vivem de forma isolada no Brasil atualmente. 

Ao observarmos as dificuldades burocráticas para a criação – e execução – de políticas públicas, ou a falta de participação em massa nos movimentos sociais em prol dos direitos indígenas, fica visível que as autoridades responsáveis, e grande parte da população, não enxergam a urgência dessa questão. Sendo assim, me questiono: onde a população indígena encontraria refúgio senão na luta diária pela sobrevivência? 

Há, assim, uma dupla violência: a física, pelas mortes e distratos sofridos, e também a moral, pela normalização dessa violência e injustiça, tanto da população quanto das autoridades políticas. Isso dialoga muito com outra obra, do artista e ativista paraense Bené Fonteles, da série de obras “Ninhos” que abria a rota da exposição.

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Figura 3: Ninhos, Bené Fonteles, 1998. Foto: Bené Fonteles.

Essa fotografia, além de homenagear os povos originários do Brasil, ao meu ver, apresenta também um tom de denúncia. Vendo-a através da ótica nacional, com um cocar [7] ao centro, embrulhado em fios – que parecem ser de barbante – forma a imagem de um ninho. O ninho representaria o passado do Brasil, pré-1500, no qual o berço dessa nação foi constituído por inúmeras etnias indígenas (é estimado que mais de 5 milhões de pessoas indígenas viviam aqui antes da colonização portuguesa). Ao mesmo tempo, esse ninho parece uma ilha, ou talvez uma navegação (imagem constante nas obras artísticas, inclusive nas outras presentes nessa mesma exposição, quando o assunto é migração e refúgio) perdida em meio ao oceano. Sendo assim, me apoiando no pensamento de Krenak, afirmo que os povos indígenas estão “ilhados” pelos interesses econômicos, capitalistas e brancos. É como se fossem refugiados [8] sem refúgio, em seu próprio território. 

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Figura 4: Trabalho educativo produzido em uma das visitações escolares à exposição [9]. Foto: Luís Cláudio Mendes.

Voltando à obra de Amilcar, para além da questão indígena, as linhas espalhadas pela obra podem simbolizar, além dos deslocamentos de exportação desses produtos pelo mundo afora, os movimentos de idas e vindas dos colonizadores e da própria mão de obra, isto é, os trabalhadores escravizados nos navios negreiros ao longo da formação da história do país, que é fortemente marcado pelo período escravocrata. Isso se torna um aspecto interessante da obra, pelo destaque do nome de Zumbi dos Palmares, um dos mais importantes líderes quilombolas [10] desse período. 

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Figura 5: Mapaisagem, Amilcar Packer. Foto: Luís Cláudio Mendes.

Por fim, Ailton Krenak [11],  em meio a pandemia da covid-19, em sua obra “A vida não é útil”, refletiu sobre o período de isolamento como possibilidade de repensarmos as relações humanas, principalmente no convívio com as diferenças, mostrando, na prática, os efeitos devastadores do etnocentrismo branco, pontuando que:

Vivemos hoje esta experiência de isolamento social, como está sendo definido o confinamento, e que todas as pessoas têm de se recolher. Se durante um tempo éramos nós, os povos indígenas, que estávamos ameaçados da ruptura ou da extinção do sentido da nossa vida, hoje estamos todos diante da iminência de a Terra não suportar a nossa demanda. Assistimos a uma tragédia de gente morrendo em diferentes lugares do planeta, a ponto de na Itália os corpos serem transportados para a incineração em caminhões. Essa dor talvez ajude as pessoas a responder se somos de fato uma humanidade [12].

Finalizo este ensaio com o objetivo, mesmo que singelo, de provocar a reflexão sobre os assuntos brevemente aqui iniciados, reiterando a importância de também aliar a teoria à prática, visando novas possibilidades de futuro. Digo ainda que a educação e a arte – que por si só já são poderosas – se aliadas, podem se transformar em um revolucionário meio de transformação social. Para mim, isso ficou visível em muitos momentos das visitas à exposição. Os olhos, às vezes desinteressados, que entravam, saíam pela mesma porta mais atentos, curiosos e brilhantes. As crianças, principalmente após as atividades educativas e as provocações, ao olharem criticamente para as obras, conectando-as com a paisagem urbana cotidiana, animavam-se ao perceber o real sentido de estarmos ali, presentes naquele momento. 

P.S: Gostaria de fazer um agradecimento especial às minhas queridas amigas Wanessa Gabrieli Pedrosa Ventura, da etnia Dessana, e Tatiane Gonçalves da Silva, da etnia Baré, ambas estudantes da Unicamp, dos cursos de Pedagogia e Letras, respectivamente, por terem contribuído com sugestões para a escrita deste ensaio, pois foi de grande ajuda! 

NOTAS

[1]  Ao fim da exposição, o MAV publicou um livro sobre ela, levando o mesmo nome da mostra “Paisagem sob Inventário”, e está disponível gratuitamente em versão e-book. Disponível em: <https://www.bibliotecadigital.unicamp.br/bd/index.php/detalhes-material/?code=113125>. Acesso em 29 mar. 2024.

[2] (2022).

 

[3] (Jaha, Isabela, 2022, p. 91).

 

[4] (2020).

 

[5] (Krenak, Ailton, 2020, p. 97).

 

[6] Dados disponíveis em: <https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2022-02/brasil-registra-274-linguas-indigenas-diferentes-faladas-por-305-etnias>. Acesso em 29 mar. 2024.

[7] Adereço indígena utilizado em diferentes momentos, a depender da etnia, mas que carrega inúmeros
significados. Em uma matéria da “Tapajós de Fato”, conforme o Pajé Nato Tupinambá, o cocar representa “a
força sagrada de um guerreiro, a força sagrada de um pajé... que tu foste enviado com uma missão”. Por isso, ele
é utilizado por lideranças da aldeia: caciques – líderes políticos –, pajés – líderes espirituais – e também por
qualquer outro membro da aldeia”. Informações disponíveis em:
<https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/530/cultura-indigena-de-cantos-a-objetos-e-rituais-sagrados>;.
Acesso em 29 mar. 2024.

[8] Utilizei essa analogia apenas como tom de reflexão. É importante frisar que “refugiado” se refere aos indivíduos que estão fora de seu país de origem, em situação de refúgio, por haver riscos à sua integridade física. Nesse caso, o mais correto aqui seria utilizar o termo “refugiado interno”, no qual a pessoa não cruzou fronteiras internacionais, mas está em situação de refúgio por motivos similares.

[9] Alinhando-se à proposta de Amilcar Packer, os alunos reuniram objetos encontrados no pátio do museu: penas, galhos, além de imagens de revistas, e construíram uma reflexão. As penas apontando para o adereço utilizado pela pessoa da foto e os galhos formando um tipo de ninho se assemelham à reflexão que apresentei no texto sobre a obra de Bené Fonteles. 

[10] Os quilombos foram espaços de resistência negra, criados por negros escravizados fugidos, que não aceitaram
a dominação colonial e viviam de forma autônoma, sem o domínio dos senhores de engenho e, por isso, corriam
risco de morte o tempo todo. Zumbi dos Palmares foi líder do maior quilombo – o Quilombo dos Palmares –
nesse período, que foi, em determinado momento, totalmente destruído, tendo como ato final a morte do líder
em 1695.

[11] (2020).

[12] (Krenak, Ailton, 2020, p. 79).

PARA SABER MAIS

Brasil registra 274 línguas indígenas diferentes faladas por 305 etnias. Fundação Nacional dos Povos Indígenas, 2022. Disponível em: <https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2022-02/brasil-registra-274-linguas-indigenas-diferentes-faladas-por-305-etnias>. Acesso em 29/03/2024.

Cultura indígena: de cantos a objetos e rituais sagrados. Tapajós de Fato, 2021. Disponível em: <https://www.tapajosdefato.com.br/noticia/530/cultura-indigena-de-cantos-a-objetos-e-rituais-sagrados>. Acesso em: 29/03/2024.

FUREGATTI, Sylvia. Paisagem sob Inventário. 1ª edição. 1 recurso online (144 p.) Publicação digital: Sistema de Bibliotecas da Unicamp - Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Artes, Campinas, SP, 2022.

Disponível em: <https://www.bibliotecadigital.unicamp.br/bd/index.php/detalhes-material/?code=113125>.  Acesso em: 29/03/2024.

KRENAK, Ailton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
 

O AUTOR

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Luís Cláudio Mendes é graduando em Ciências Sociais, com ênfase em Antropologia, na Universidade Estadual de Campinas. Tem interesse de pesquisa em relações raciais no Brasil, cultura afro e teatro negro. Atualmente, faz parte do projeto "Imagens, palavras e as representações dos e sobre refugiados na cidade de Campinas", orientado pelo professor Antônio Carlos Amorim, da Faculdade de Educação da Unicamp.

COMO CITAR ESSE TEXTO

MENDES, Luís Cláudio. Mapaisagem: quando as imagens nos contam histórias. Construindo trajetos entre arte, migração e as diferenças. (Artigo). In: Coletiva - Educação e Diferenças e… nº 27. Publicado em 03 abr. 2024. Disponível em: <https://www.coletiva.org/educacao-e-diferencas-e-mapaisagem-quando-as-imagens-nos-contam-historias-construindo-trajetos>. ISSN 2179-1287.

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