editorial
Para tudo aquilo a que atribuímos um centro, constitui-se, por consequência, uma periferia. Para além das definições geométricas e topológicas dessas duas posições relativas, centro e periferia são conceitos culturais, e por isso mesmo se aplicam às cidades, uma das mais longevas criações da cultura. E assim como cidades existem ao redor de todo o mundo, também essa disjunção entre o que são os centros urbanos e as periferias se percebe nos mais diversos contextos.
É verdade que em países menos desiguais essa disjunção tende a ser mais sutil. Em lugares onde o planejamento de cidades é prioridade, como nos Países Baixos, por exemplo, existe mesmo a intenção política de tornar subúrbios e periferias mais parecidos com as áreas centrais, tanto no que toca à infraestrutura como ao desenho urbano.
No Brasil, por outro lado, onde a desigualdade prescinde de apresentações, falar de periferia é inevitavelmente acompanhado de imagens não apenas de menor poder econômico, mas de baixos índices de escolaridade, de segregação racial, violência, insalubridade e lapsos profundos de serviços urbanos básicos, como transporte e acessibilidade, saneamento, coleta de lixo, iluminação das ruas e condições mínimas de segurança e habitabilidade das edificações.
Ainda assim, muito do que reconhecemos como elementos constitutivos da nossa identidade nacional nasceu ou reside muito mais nas periferias do que nos centros ocupados pelas classes mais privilegiadas. Dos vários gêneros de música popular aos mais caros jogadores de futebol, aquilo que nos representa como brasileiros tem origem periférica. E por mais que essa hipótese soe como clichê, tudo leva a crer que a revolução digital de fato tornou mais curtas as distâncias entre os ouvidos do centro e as vozes da periferia. Com mais acesso a canais de divulgação de baixo custo e às redes sociais, pessoas que sempre produziram arte, cultura e conhecimento em regiões pouco favorecidas puderam chegar de modo mais direto ao que se entende por mainstream.
A tendência parece mesmo irreversível, e até o poder público, que historicamente priorizava recursos e projetos de grande visibilidade para os centros das cidades e se referia a todo investimento em regiões periféricas como mero serviço social, hoje incorpora a palavra ‘periferia’ a secretarias específicas nas prefeituras, estados e ministérios. Em resposta, o aumento da militarização aliada a uma moral mais rígida e religiosa parece procurar conter a inevitável conquista de espaços políticos da periferia. Ao mesmo tempo, sujeitos periféricos de diferentes cidades podem trocar informações com mais agilidade e fortalecer redes com vistas aos desafios futuros com mais independência, autonomia e sentido de lugar.
Neste Dossiê, a equipe da Coletiva se debruçou sobre esse processo de reconhecimento de uma nova percepção sobre o que é ser periférico e viver na periferia. No primeiro texto do Especial, de Maria Carolina Santos, passamos a entender melhor como tem se dado esse movimento no eixo das atenções do poder público a partir do que contam os gestores da Secretaria das Periferias do Ministério das Cidades e da Secretaria de Inovação Urbana da Prefeitura do Recife. Já a emergência dessas novas redes de experiências e saberes compartilhados entre várias periferias brasileiras, inclusive em relação à preparação para as mudanças climáticas, é mapeada pela segunda reportagem do Especial assinada por Marcela Aquino e Letícia Barbosa.
Nos artigos, essa percepção histórica e sistematicamente contraditória das periferias brasileiras é logo desvelada por Amaro Mendonça no seu Periferia e identidade urbana brasileira. Já em O trabalho de tecnologia na periferia do capitalismo: apontamentos iniciais, Eduardo Souza lança o debate sobre a nossa condição periférica em escala nacional e mundial e como a tentativa de se tornar centro tecnológico esbarra na nossa cultura de precarização do trabalho. No artigo Mulheres e cidades: desvelando as desigualdades interseccionais na vivência urbana, Mércia Alves discute a relação das mulheres com os espaços das ruas, bairros e comunidades sob o ponto de vista do feminismo materialista decolonial e antirracista. Por sua vez, Martihene Oliveira aponta para outro caminho no Comunicar para transformar: uni-vos, só o letramento racial pode mudar a favela, defendendo a comunicação como ferramenta para o letramento racial necessário à transformação social nas favelas; e em Casa Amarela: reduto de luta, resistência e subversão, Pollyana Calado revolve as experiências de resistência local às pressões do capital para a gentrificação do antigo bairro suburbano-periférico do Recife. Sobre outro bairro resistente e artisticamente incontornável, temos o artigo Sonoridades afrodiaspóricas pernambucanas: breves reflexões acerca do manguebeat e o bairro de Peixinhos, de Artur Onyaiê, tocando em questões nevrálgicas das raízes periféricas do Movimento Mangue. Por fim, Jeder Janotti e Giovanna Carneiro, respectivamente em Os Arrecifes que cercam o Porto Musical: o centro do Recife como o ruído da Cidade da Música e em A música negra e o Recentro: configurações da cidade musical diante da falta de investimento do poder público, falam dos paradoxos da vida noturna do Centro do Recife, socialmente alimentado pela periferia, mas em crescente processo de negação dessa dependência umbilical.
Complementarmente a essas experiências recifenses, o Dossiê ainda traz duas Entrevistas, com os professores Tiaraju D’Andrea, da Unifesp de São Paulo, e Rita Montezuma, da UFF do Rio de Janeiro. O primeiro fala da sua experiência pessoal como morador de Itaquera e como arte e cultura se relacionam com o território na construção dos sujeitos periféricos da maior metrópole do país. Por sua vez, Rita Montezuma fala das suas pesquisas sobre permanência na vida social e espacial das periferias brasileiras de hábitos, saberes e resistências dos povos africanos no Brasil.
Diante de um tema tão vibrante e atual, esperamos que esta edição da Coletiva seja uma contribuição para entendermos melhor onde nós, nordestinos e brasileiros, nos inserimos nessa grande transformação cultural, territorial e social que se impõe sobre as nossas cidades. Uma boa leitura.
Amaro Mendonça
Artur Onyaiê
Cristiano Borba (FUNDAJ)
EXPEDIENTE
Editores temáticos do dossiê: Amaro Mendonça, Artur Onyaiê, Cristiano Borba | Editor-chefe: Cristiano Borba | Editoras executivas: Marcela Aquino, Maria Carolina Santos | Projeto gráfico: Livyan Araújo | Apoio editorial: Letícia Barbosa, Livyan Araújo | Revisão: Bianca Nascimento, Estefany Lima Gomes da Silva | Entrevistas: Amaro Mendonça, Cristiano Borba, Marcela de Aquino, Maria Carolina Santos, Letícia Barbosa | Reportagens: Marcela de Aquino, Maria Carolina Santos, Letícia Barbosa | Artigos: Amaro Mendonça, Artur Onyaiê, Eduardo Souza, Giovanna Carneiro, Jeder Janotti, Martihene Oliveira, Mércia Alves, Pollyana Calado