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Editorial

DOSSIÊ PLURALISMO RELIGIOSO 

Muita gente confunde pluralidade religiosa com pluralismo religioso. No Brasil, especialmente nas últimas três décadas, acentuou-se a diversificação das crenças e o não pertencimento religioso. Porém, ainda estamos longe de uma situação em que as relações entre as religiões, particularmente entre as pessoas (lideranças e seguidores), sejam pacíficas. Não apenas há um crescimento nos casos de conflito ou de intolerância religiosa, como também há relativamente pouca colaboração explícita entre religiões.

 

E há sinais de que a politização de alguns grupos religiosos tem levado a um preocupante acirramento das tensões, tanto no cotidiano das pessoas e das organizações como no debate público e nas instituições políticas. Temos, então, um problema de pluralismo religioso, em parte, naturalmente, decorrente da natureza recente da pluralização, em parte, pelo autoritarismo entranhado nas relações sociais e no funcionamento das instituições.

 

Não se trata de inexistência do pluralismo, mas de um processo convoluto, incompleto e, ao que parece, mais recentemente, reversível. Temos uma legislação que assegura a laicidade do Estado e a liberdade religiosa (ou seja, nenhuma religião é adotada nem favorecida legalmente, nem pode sofrer interferência ou perseguição em seus assuntos próprios). As religiões, todas elas, oficialmente, afirmam a legitimidade das demais e o seu direito de serem exercidas sem embaraços.

 

No plano demográfico, o catolicismo perdeu muitos adeptos, alimentando grande parte do trânsito religioso observado na sociedade brasileira. No interior do campo cristão, o crescimento do protestantismo, sobretudo o pentecostal, é o dado mais notável, chegando, no último Censo (2010), a atingir mais de 20% da população. Cresceu, também, o espiritismo e, mais ainda, o número de pessoas sem religião (agnósticos, ateus e pessoas que não pertencem a nenhuma organização religiosa, mas que têm alguma “espiritualidade”).

 

Os números do Censo não revelam, entretanto, o quanto as pessoas transitam entre as religiões, seja permanentemente ou em determinados momentos, com ou sem mudança de religião. É comum o múltiplo pertencimento, embora nem sempre assumido às claras. A pastoral de massas católica e neopentecostal, não enfatizando a construção de uma identidade religiosa “pura”, por não se fundarem na formação de vida comunitária entre os fiéis, convive com esse múltiplo pertencimento ou com o trânsito. Por fim, há religiões sincréticas, como a chamada Nova Era, que não enfatizam adesão ou conversão.

 

Com este panorama, tudo pareceria indicar que a crescente pluralidade religiosa reforçaria o pluralismo. No entanto, nas últimas décadas, tendências contrárias ao múltiplo pertencimento e ao trânsito se ampliaram. Os católicos carismáticos têm assumido uma identidade muito mais ativa com sua Igreja, passando a vivenciar a vida eclesial muito mais intensa e regularmente. Os evangélicos, especialmente os pentecostais (cerca de dois terços de todos aqueles), com seu conversionismo, nunca se satisfizeram com adesões parciais, e não somente cobram pertencimento exclusivo como criticam abertamente outras religiões.

Nas religiões afro-brasileiras, principalmente o candomblé, a reafirmação das origens africanas tem levado a uma dessincretização em relação ao catolicismo, uma reafricanização, surgindo uma geração de líderes e adeptos que se demarcam claramente de qualquer identidade cristã. Esses movimentos intensificam a pluralização e aumentam o potencial de tensões nas relações entre pessoas de diferentes religiões. Se somarmos a isso as manifestações mais extremas de algumas correntes religiosas ou de pessoas isoladas, as tendências mencionadas podem dar lugar a manifestações de intolerância. E dão.

 

A passagem da pluralidade ao pluralismo, portanto, não é garantida pela diversidade religiosa em si, nem pela existência de um marco legal que reconhece as diferentes religiões. É preciso que haja pelo menos uma atitude de crer e deixar crer, com que se proíbe cruzar o umbral da agressão, da intimidação, do constrangimento e da violência. Não é preciso que haja aproximação e cooperação. Se isso acontecer – e acontece em muitas situações locais, em atos públicos em momentos específicos e em iniciativas de diálogo inter-religioso –, tanto melhor. Mas é possível haver pluralismo simplesmente no reconhecimento da dignidade da crença do outro, mesmo quando não se concorda em nada com ela. Mesmo que se possa discutir, com respeito e franqueza, essas discordâncias. Essas atitudes levam tempo e muita conversa para se difundirem e enraizarem.

 

Pluralismo religioso não é a aceitação incondicionada do outro, mas a admissão de que a própria liberdade só está assegurada na garantia da liberdade do outro. Pluralismo religioso é também autocontenção: é privar-se de agir para impor ao outro (religioso ou irreligioso) valores, comportamentos e obrigações que só dizem respeito a uma determinada tradição religiosa; é não lançar mão de recursos de poder (político ou jurídico) para sancionar tal imposição ou para restringir direitos de outros que não compartilham da mesma fé. Esse entendimento do pluralismo é resultado de uma longa história, que envolveu debates, lutas e mobilizações para se materializar. E que sempre pode sofrer percalços. 

Hoje, no Brasil, vivenciamos uma vibrante pluralização religiosa, que já produziu um impacto claro na vida cultural e política do país. Vivenciamos alguns aspectos pluralistas, especialmente em termos do marco constitucional e legal em vigor. Mas ainda há muitas dificuldades – culturais e na aplicação da lei – para que o pluralismo religioso se aprofunde. Minorias religiosas, especialmente as religiões de matriz africana, por exemplo, têm sido alvo de repetidas manifestações de desrespeito, inclusive com agressões físicas e profanação de seus lugares de culto.

 

Este número da Coletiva quer contribuir para a compreensão desta complexa relação entre pluralidade e pluralismo religioso, e para realçar a importância da articulação entre elas. Para isso, reúne intelectuais e ativistas de referência no estudo das religiões no Brasil e na promoção do pluralismo religioso, aos quais propôs que explorassem um aspecto dessa problemática, realçando avanços, retrocessos, dilemas e tendências. Também são dadas algumas pistas sobre a trajetória histórica das relações entre as religiões na sociedade brasileira. Não se pretendeu falar sobre tudo, as contribuições aqui publicadas descortinam casos e dimensões a partir das especialidades dos convidados.

 

Na seção Artigos, temos trabalhos sobre a questão da religião no currículo escolar (Amurabi Oliveira); sobre as relações entre peregrinação e turismo (Carlos Steil); sobre as posições historicamente assumidas pelos protestantes face ao pluralismo religioso (Lyndon Santos); sobre as tortuosas relações entre religião e o enfrentamento da violência (Patricia Birman e Rafael Oliveira); sobre a forma como as religiões de matriz africana “territorializam” seu axé em espaços sociais já “ocupados” (Ronaldo Sales); e, ainda, um estudo que resgata a memória da Guerra de Canudos por meio da visão de jornais cristãos da época (Leonildo Campos). 

Temos, também, a Reportagem, que explora algumas experiências de acompanhamento das relações entre as religiões, de articulação inter-religiosa para fins cívicos e para o enfrentamento da intolerância religiosa. Temos a Entrevista, para a qual foi convidado o  estudioso do tema, Alexandre Brasil Fonseca, que participou ativamente de ações governamentais em nível nacional nos últimos anos para a promoção dos direitos humanos e do pluralismo religioso. Na seção Memória, são disponibilizadas algumas imagens que ressaltam a dimensão pública das religiões, que de um lado dão visibilidade à pluralidade e, de outro, por vezes, expressam ações de promoção ou de violação do pluralismo religioso.

 

Esperamos que a leitura e visualização dessas contribuições possam colaborar para manter acesa a chama do diálogo e para atiçar nossa curiosidade em conhecer antes de julgar, em interagir antes de discordar, reforçando os laços entre pluralidade e pluralismo religioso na intenção de promover reconhecimento, dignidade e solidariedade entre diferentes numa sociedade cada vez mais complexa.

Joanildo Burity

EXPEDIENTE

Editor temático: Joanildo Burity | Editores: Pedro Silveira, Marcelo Robalinho, Alexandre Zarias e Allan Monteiro | Apoio editorial: Maria Luiza Alves, Paloma de Castro e Beatriz Jatobá | Capa: Paloma de Castro | Revisão: Hugo Gonçalves | Entrevista: Alexandre Brasil Fonseca | Reportagem: Maria Luiza Alves | Artigos: Amurabi Oliveira, Carlos Alberto Steil, Patricia Birman, Rafael Oliveira, Leonildo Campos, Ronaldo Sales e Lyndon Santos | Memória: Paloma de Castro e Joanildo Burity.

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