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Editorial

DOSSIÊ NEGACIONISMOS E AUTORITARISMOS

“Nunca se mentiu tanto quanto nos dias de hoje. E nunca se mentiu de maneira tão despudorada, sistemática e constante”. 

Para as leitoras e leitores dos nossos dias, essa frase não é nada novo sob o front. Em outras palavras, tal afirmação poderia estampar qualquer artigo de opinião publicado no dia de hoje ou fazer parte de algum livro dedicado a pensar os tempos atuais. No entanto, trata-se de uma frase escrita em 1943, pelo filósofo francês Alexander Koyré, em seu artigo Reflexões sobre a mentira. Em meio a uma Europa em guerra, marcada por genocídios e nazifascismos, Koyré refletia acerca da “função política da mentira moderna”.

 

Referia-se, no caso, aos regimes totalitários que a utilizavam como arma. O que chamava atenção do filósofo francês era o fato de a mentira, tão comum em tantas épocas e sociedades, ter sido adotada de forma sistemática e massiva por esses regimes. E mais: não se tratava de considerar a mentira, nesse caso específico, como negação de uma verdade, mas para esses regimes totalitários modernos, a verdade objetiva “não faz sentido algum”. Não havia, portanto, pretensão de construir uma narrativa com o intuito de revelar o real, mesmo que equivocado. A ideia consistiria em modificar, transformar, distorcer e contorcer o real em “direção àquilo que não é”.

Esse é um aspecto que deixou pensadoras como Hannah Arendt ou mesmo o escritor George Orwell e outros, em alerta. Elas não estavam diante de diferentes construções sobre a verdade pois, neste caso, ela sequer estava em pauta. O desprezo pela verdade, pela comprovação dos fatos, assustou o autor de A revolução dos bichos1984. Em um artigo escrito em 1943, no qual comentava as mentiras publicadas em jornais durante a Guerra Espanhola, o escritor britânico desabafava: “Para mim, isso é assustador, pois com frequência me dá a sensação de que o próprio conceito de verdade objetiva está desaparecendo do mundo.” O solo da veracidade atestada por fatos parecia um terreno instável, movediço. 

 

Hannah Arendt, no livro Entre o passado e o futuro, compartilhava preocupação com esse novo fenômeno na qual a mentira deliberada, em sua faceta moderna e totalitária, implicaria não apenas uma ocultação da verdade factual, objetiva, mas visava a sua destruição.

 

Nos anos 1980, o historiador Henri Rousso, no seu livro A síndrome de Vichy, utilizou o termo negacionismo para se referir a grupos e indivíduos que negavam a existência e os horrores do Holocausto. No caso específico, ele se referia a uma prática de manipulação de fatos e distorção da realidade, que estabelece falácias e apregoa teses infundadas e inverídicas, afirmações injustificáveis. Rousso usava esse termo para desmascarar grupos que se intitulavam revisionistas, mas que de fato não estavam comprometidos com provas e evidências científicas, e sim com motivações de cunho ideológico. Não se tratava, portanto, de uma disputa de interpretações. Rousso deixava claro que o negacionismo abala a estrutura da argumentação científica e factual, pois é deliberadamente orquestrada para invalidar a verdade.

 

Em 1993, a historiadora Deborah Lipstadt teve que provar nos tribunais a existência do Holocausto. Na época, ela havia publicado um livro chamado Negando o Holocausto - O Crescente Ataque à Verdade e à Memória, no qual acusava o escritor britânico David Irving de ser negacionista. Afinal, o referido escritor negava que as câmaras de gás tinham sido usadas para matar os judeus, entre outras negações de atrocidades. Sentindo-se lesado ao ser chamado de "um dos mais perigosos porta-vozes da negação do Holocausto", pela professora da universidade de Emory (Atlanta), o escritor entrou com um processo jurídico contra a docente e a editora Penguin Books.

A professora ganhou o processo no ano 2000, após muita midiatização em torno do tema. Desde essa época, muitos estudiosos começaram a definir melhor e ampliar os sentidos do termo negacionismo. Não se tratava apenas de negação de fatos do passado, como o genocídio armênio praticado pelos turcos, ou o holocausto judeu praticado pelos nazistas; tratava-se de um fenômeno que evocava um modus operandi no modo como determinados grupos orquestravam, inventavam e difundiam inverdades. Para Rousso, em suas reflexões mais recentes, o negacionismo poder ser compreendido como uma modalidade discursiva, ou mesmo um modo de representação do passado e de percepção do presente.

Na primeira década do século XXI, em especial, essa prática sistematizada passou a ser incorporada em campanhas políticas de candidaturas com perfis autoritários e antidemocráticos. Em outros termos, os negacionismos deixavam de ser situações pontuais para serem reproduzidos como tática de desconstrução da verdade sobre temas sensíveis do passado e do presente, além de serem instrumentalizadas para fins políticos antidemocráticos.

Mas, do que estamos falando quando falamos de negacionismo? 

Uma primeira forma de pensar o negacionismo talvez deva referir-se às tentativas intencionais de recusar ou negar argumentos, realidades ou verdades consensuadas e provisórias, endossadas pela ciência ou soluções convencionais produzidas no âmbito daquilo que se entende como Estado Democrático de Direito. Tais práticas coletivas de negação (ou de recusa) não somente negam a ciência, a democracia, o Estado de direito, a possibilidade de reconhecimento do outro, mas buscam estabelecer formas completamente diferentes de ver o mundo, com pretensão de superioridade e relacionadas a desejos inconfessos de recusa à diferença e à alteridade. Deste modo, o negacionismo constituiria um fenômeno pós-iluminista e retardatário de reação às inconveniências (para alguns grupos sociais) da ciência moderna e dos  emergentes consensos morais inclusivos no que pode ser chamado de “alta modernidade” ou “capitalismo tardio”.

 

São vários os objetos dos negacionismos contemporâneos: o holocausto; a ditadura militar brasileira; o racismo; a mudança climática; a AIDS e a pandemia da covid-19, entre muitos outros. Em todos estes casos, para além da dúvida cética e sistemática - inerente à lógica da ciência – e de déficits cognitivos e informacionais, o que está em jogo, em todos os casos citados é, por um lado, a busca deliberada, relacionada a interesses extra científicos, de natureza política ou econômica, de produzir desinformação, facilitada e amplificada pelas novas capacidades e possibilidades de comunicação que a tecnologia trouxe nos últimos 30 anos.

 

Mas algo ainda precisa ser explicado: por que a retórica negacionista atrai tantas pessoas? Talvez possamos dizer que as mudanças sociais intensas e de grande escala das últimas décadas, acompanhadas pela perda de status de grupos sociais tradicionais, e pela incapacidade de grupos emergentes de vislumbrarem oportunidades em um mundo cada vez mais desigual, forneçam os fundamentos emocionais e morais do fenômeno negacionista. O desespero, a desesperança e a desorientação diante de tudo aquilo que não conseguem mais explicar e interpretar com as categorias morais hostis à diferença, agora inaceitáveis, são o combustível para a adesão de amplos contingentes populacionais aos discursos e práticas negacionistas.

 

De certa forma, tais coletividades buscariam proteção, reconhecimento e segurança junto àqueles líderes e grupos que propagam um discurso autoritário, hierárquico e excludente, capazes de dar sentido e ordem a um mundo transformado pelas incertezas produzidas pelas descobertas científicas e pelos emergentes consensos morais inclusivos que contrariam os desejos inconfessos de manutenção do status quo

 

Como foi colocado por um dos autores deste dossiê, José Szwako, chamar algo ou alguém de negacionista virou uma febre tanto na vida política quanto no cotidiano da população, desde a pandemia da covid-19. Desse modo, diante da centralidade que o negacionismo vem ocupando nos últimos anos, além de seus impactos nas vidas de milhões de brasileiras e brasileiros, escolhemos o tema para compor este dossiê da revista Coletiva. 

Empenhar-se em discutir e difundir reflexões sobre esta temática é um desafio: principalmente para que professoras e professores, em todos os níveis da educação, possam compreender e discutir esse fenômeno em sala de aula. O desafio não é simples.

Em primeiro lugar, porque não há uma definição rígida e fechada sobre negacionismo. Como bem afirmou José Szwako, no primeiro artigo do dossiê, trata-se de uma rotulação que não é assumida por seus agentes, ou seja, que não é autodeterminada. Em geral a(o) negacionista é identificada(o) por outras(os) que a(o) denunciam. Desse modo, não há uma forma única que permita identificar os negacionismos, porém, há consensos e pesquisas que mostram padrões e aspectos em comum que podem oferecer formas de compreensão sobre o tema.

 

Na entrevista concedida para o nosso dossiê, a historiadora Lilia Schwarcz diferencia negação e negacionismo. Negacionismo, para a professora de antropologia da USP, é “a passagem desse estado de negação, que é um conceito mais da ordem do indivíduo, da pessoa, para uma política de Estado” .O governo anterior de Jair Bolsonaro, como bem sabemos, adotou o negacionismo como política de Estado e, nesse sentido, a inspiração autoritária de seu governo foi um prato cheio para a adoção do negacionismo como ferramenta de ação política. Por essas e outras razões, o título do dossiê não poderia ser outro que Negacionismos e autoritarismos. Outro ponto a não perder de vista e que é defendido pelos autores Christian Lynch e Paulo Cassimiro, trata da relação direta entre negacionismos e o populismo reacionário, relação que não está circunscrita apenas ao governo Bolsonaro, mas possui raízes mais remotas e situadas para além do caso brasileiro. Como bem pontuam os autores: “O negacionismo é parte estruturante do pensamento reacionário, desde suas origens”.

 

As leitoras e os leitores desta revista devem ter notado que adotamos o termo “negacionismos” no plural. A opção se deve, de modo geral, à complexidade e capilaridade desse fenômeno, que não se resume à negação de algo, mas a um conjunto de estratégias de invalidação de conquistas sociais, científicas e políticas. Deste modo, os artigos presentes neste dossiê pautam algumas nuances e desdobramentos do negacionismo em diferentes aspectos, a exemplo da questão indígena, em texto escrito pelas professoras Mércia Batista e Ana Flávia Moreira; no tratamento do tema das desigualdades no Brasil, discutido no texto de Vitor Bahia e na falácia do racismo “reverso”, conforme analisado por Andreia de Jesus em seu artigo. O dossiê também conta com uma matéria especial assinada por Aline Cavalcanti e Mylena de Paula, acerca das fake news e as estratégias possíveis para que sejam enfrentadas.  Por fim, as(os) leitoras(es) encontrarão uma série de sugestões de conteúdos para ler, assistir e ouvir, na seção Saiba mais.

Certamente os textos presentes neste dossiê não esgotam a pluralidade e amplitude do tema, porém traçam caminhos para que se conheça um pouco mais sobre o fenômeno. É, também, um convite à imersão em leituras sobre o tema, de modo a melhor preparar as(os) leitoras (es) a identificarem e enfrentarem os efeitos e desdobramentos cotidianos dos negacionismos nos diversos espaços sociais, em especial, na sala de aula.

Cibele Barbosa

José Luiz Ratton

OS EDITORES 

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Cibele Barbosa é doutora e mestra em História pela Universidade Paris IV/Sorbonne, possui graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco, é pesquisadora titular da Fundação Joaquim Nabuco e professora do ProfSocio/Fundaj.

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José Luiz Ratton é doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco e professor/pesquisador do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFPE. Em 2022, foi um dos organizadores do Dicionário dos Negacionismos no Brasil, publicado pela Companhia Editora de Pernambuco (CEPE).

Expediente

Edição temática: Cibele Barbosa e José Luiz Ratton | Editores executivos do dossiê: Cibele Barbosa e José Luiz Ratton Editor-chefe: Allan Monteiro | Apoio editorial: Aline Cavalcanti, Marcela de Aquino e Mylena de Paula | Revisão: Mylena de Paula | Capa: Marcela de Aquino | Edição: Cibele Barbosa, José Luiz Ratton, Darcilene Gomes e Allan Monteiro | Entrevista: Cibele Barbosa | Seção Especial: Aline Marcela Cavalcanti | Artigos: José Szwako, Vitor Bahia, Andreia de Jesus, Mércia Rangel e Ana Flávia Santos, Christian Lynch e Paulo Henrique Cassimiro.

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