Este texto tem por objetivo discutir como atos de violência protagonizados por jovens ou dos quais são vítimas vêm sendo configurados e explicados por eles nos diferentes espaços de convivência. Para tanto, apresentaremos inicialmente o que tem sido compreendido por violência e violência na escola para, em seguida, discutirmos fatores que, segundo os jovens, desencadeiam e explicam ações desse tipo.
A discussão feita neste texto baseia-se em afirmações feitas por jovens que temos entrevistado e que frequentam as últimas séries do ensino fundamental e do ensino médio, em escolas localizadas em bairros empobrecidos da periferia das cidades. Muitos desses jovens são considerados, pelos gestores escolares, protagonistas de situações de violência na escola.
As definições de violência são várias: ato irracional que escapa ao controle da razão; ato resultante de uma maldade inerente à natureza do homem; violação dos limites estabelecidos pelas leis, valores e tradições sociais. Em geral, violência é conceituada como um ato de brutalidade física e/ou psíquica contra alguém e caracteriza relações interpessoais que podem ser descritas como de opressão, intimidação, medo e terror. O que define violência é o desrespeito, a coisificação, a negação do outro, em suma, a violação dos direitos humanos.
Porém, o significado do que é violência é social e se transforma socialmente. Ou seja, a tolerância social a um determinado comportamento pode aumentar ou reduzir, passando, nesse caso, a ser significado como violento. Isso implica dizer que o significado do que é violência depende dos códigos sociais, jurídicos e políticos de um lugar, de uma época e de um grupo de referência.
Na escola, quando a referência é o jurídico os incidentes de violência como roubos, agressões, lesões, extorsões, tráfico de drogas e insultos graves, a ocorrência é pouca. Já o desrespeito ao outro, a transgressão aos códigos de boas maneiras e à ordem estabelecida, as ameaças e agressões verbais entre alunos e entre estes e os adultos, as desordens, os empurrões, as grosserias, as palavras ofensivas, a humilhação ao outro, a gozação, a indiferença, o absenteísmo e a não-realização de trabalhos escolares, ou seja, as incivilidades e as transgressões ao regulamento interno da escola ocorrem com frequência.
Essa violência cotidiana praticada por atores da própria escola são constantes, repetem-se sem parar, o que leva a um clima de insegurança e dá a impressão de que não há mais limite, pois tudo pode acontecer na escola a qualquer momento. Assim, os atores da escola vivem em estado de sobressalto, de ameaça permanente. A relação entre eles é marcada pelo desrespeito, pela grosseria, por desacatos e descortesias.
Incivilidade implica a quebra das regras da boa convivência e fere o direito dos professores, funcionários e alunos. O acúmulo de incivilidades cria um clima em que estes se sentem atingidos pessoal e profissionalmente, além de vítimas de violência. O problema na escola são, então, as microagressões e o clima de insegurança gerado por elas.
Comportamentos como ruídos, desafios, lutas, empurrões, grosserias, palavras ofensivas, gozação, desestabilizam a escola e, vistos como insuportáveis, são significados como violência. Deste modo, na escola, as incivilidades deixam de ser significadas como disciplina e viram violência. Dito de outro modo, a questão na escola atual não é mais de disciplina ou de indisciplina, mas de violência manifestada por meio das incivilidades e transgressões ao regulamento escolar.
As explicações para a violência praticada por jovens são também várias: é próprio da natureza humana; é resultante de uma socialização falha; é desencadeada por fatores de risco: baixa autoestima, pertencimento a famílias desestruturadas, ausência do pai, relações familiares não afetuosas, violência intrafamiliar, estilos parentais autoritários ou sem limites, morar em bairros violentos com alto índice de delinquência e presença do narcotráfico, uso de drogas, fracasso escolar, convivência com amigos delinquentes, entre outros.
Quando a referência é a escola, somam-se a estas explicações a exclusão na convivência escolar, o assédio das escolas pelo narcotráfico, as dificuldades de definição e percepção do futuro e a perda da crença na legitimidade da escola, na medida em que os diplomas e os conhecimentos escolares são percebidos como insuficientes para possibilitar uma ascensão social, tornando a frequência à escola desprovida de sentido.
As explicações dadas pelos jovens entrevistados para a violência na escola e fora dela, ou seja, nos diferentes espaços pelos quais circulam, se assemelham ao apontado na literatura da área.
Ao falarem da relação entre eles, isto é, ao se remeterem à cultura juvenil, os jovens evidenciam que as relações que estabelecem com os seus pares são altamente competitivas. Eles competem entre si por prestígio, honra e respeito. As violências das quais às vezes são vítimas e às vezes são protagonistas, estão associadas ao fato de não se deixar ou não querer se submeter ao outro, empregando a violência para se vingar de ofensas e insultos. O princípio que parece reger esse comportamento é: fazer ao outro o que ele lhe fez; quem não reage perde a consideração dos iguais; já quem reage ganha prestígio entre seus pares.
Brigar para defender a honra também está presente quando se age para evitar a traição de namorados ou namoradas ou para defender a honra da mãe. A violência desencadeada por este motivo, que muitas vezes pode começar como uma brincadeira sem importância, invade os espaços de convivência consistindo em um dos vetores que desencadeia e simultaneamente explica a violência entre jovens.
A violência, ainda quando a referência é a cultura juvenil, é também desencadeada pela defesa do grupo de referência, ou seja, dos amigos. O grupo de amigos, aquele do qual você faz parte, com o qual você se identifica e se constitui em uma referência em sua vida, ditando formas de se comportar, estilos de roupa, música, etc., e que se contrapõe a outro que adota estilos diferentes é também pretexto e explicação para a violência.
A defesa daquilo que é considerado certo e que, portanto, deve ser imposto como uma norma a qual não se permite questionamentos ou condutas diferentes constitui-se em outro fator desencadeador de ações violentas. Os jovens, principalmente aqueles considerados protagonistas de violência, parecem estar precocemente seguros do que é certo e do que é errado e de como suas convicções devem ser defendidas. Neste caso, a realidade tende a ser simplificada e polarizada entre bom e mal, certo e errado.
Essas explicações remetem, então, às relações de poder que ocorrem entre os grupos de pares e que têm implicações nas reputações que os jovens constroem para si. Esses vetores, enquanto desencadeantes de violência, estão presentes em todos os espaços pelos quais circulam, inclusive nas escolas.
No entanto, outros elementos legitimadores de violência podem ser mais bem compreendidos se analisados em função da comunidade a que pertencem esses jovens. Por exemplo, quando grupos de bandidos e narcotraficantes estão presentes na comunidade e podem vir a constituírem-se em um grupo de referência. Nesse caso, a violência é legitimada pelo contexto de exclusão social, pela proximidade do narcotráfico e pela pobreza. A violência entre alunos pode, assim, ter por origem a violência social que entra na escola pela exclusão material e simbólica.
Os desencadeantes de violência como os explicitados acima e que estão associados a uma determinada comunidade socioeconômica e/ou a um grupo etário não derivam da lógica escolar, mas adentram a escola por meio das interações estabelecidas entre alunos. São, nesse caso, violências que não estão referidas à condição de aluno, na medida em que não são motivadas pela escola.
Contudo, a violência de jovens na escola não é apenas uma manifestação da violência “de fora” no espaço escolar. A violência, seja aquela manifestada pelas incivilidades constantes, pelo desrespeito para com o outro, seja aquela que se manifesta na quebra de patrimônio escolar, é desencadeada e explicada pelos jovens pela violência que a escola exerce sobre eles.
As micro agressões que ocorrem cotidianamente na escola apontam para o fato de que, na escola, as relações são marcadas por segregações, exclusões e indiferença frente ao outro. Nas escolas, os professores e jovens interagem com outros que são diferentes deles ou de seu grupo de referência, seja em função da cor, da sexualidade, do corpo ou dos gostos. No espaço escolar, essa interação com o diferente, quando não é problematizada, se dá por meio de relações interpessoais pautadas por confrontos e violência.
Em geral, tomamos aquilo que somos como a norma e, por meio dela, descrevemos, avaliamos e discriminamos os outros, sendo que esta intolerância frente ao diferente permite que este possa ser segregado, excluído ou desrespeitado. Avaliar negativamente a diferença permite culpar o outro e tornar um grupo responsável pelos problemas ao mesmo tempo em que se afirma a superioridade do outro, como define o sociólogo polonês Zygmunt Bauman em seu livro “Comunidade: a busca por segurança no mundo atual” (2003).
Embora o postulado social seja o de que as pessoas são diferentes e que as diferenças devem ser respeitadas, visto que na sociedade há uma pluralidade de códigos de conduta, de moral, de estilos de vida, a tolerância e aceitação da diferença dependem de quem os manifesta. O compartilhar e aceitar o diferente tem limites estritos, pois não é com todo mundo que se compartilha. Nas escolas de periferia, alunos, professores e famílias dos alunos não compartilham a vida, o que estabelece uma distância que estimula preconceitos e discriminações, provocando uma difícil convivência, que se manifesta na violência molecular das pequenas agressões.
Em outros casos, a violência no âmbito escolar acontece e é explicada pelo fato dos alunos se sentirem vítimas de uma injustiça – de acusações que consideram falsas – e pela imposição de uma disciplina que não aceitam, demandando relações horizontais, como afirmam os sociólogos franceses Anne Barrère e Danilo Martuccelli no artigo “A escola entre a agonia moral e a renovação ética” (2001). Já outras situações podem ser desencadeadas, como diz o sociólogo também francês François Dubet em seu texto “A escola e a exclusão” (2003), pela tensão que se cria na sala de aula pela necessidade que os alunos têm de mostrar para os seus colegas um descompromisso com a instituição escolar, e pela necessidade de serem reconhecidos por seus pares como desafiadores da autoridade. A escola não é a rua, o bairro, mas, às vezes, se confunde com ele. As normas sociais que devem reger as relações entre alunos e professores, alunos e diretores são esquecidas e tornam-se relações entre iguais, onde impera a regra do mais forte.
Com relação à perda da crença de que os diplomas escolares possibilitam uma ascensão social, observa-se que os jovens tendem a diferenciar as escolas entre si. Para eles, algumas escolas, particularmente aquelas nas quais estudam e que se localizam em bairros periféricos empobrecidos das cidades, oferecem um ensino de má qualidade, que não contribui para o rompimento da situação em que vivem. Porém, mesmo assim, e embora as escolas que eles frequentam dificilmente possibilitem a obtenção de melhores empregos e ascensão social, a expectativa de vida futura está vinculada ao estudo e à obtenção de um diploma. A escola é imprescindível quando se pensa no futuro, mas a relação dos jovens no cotidiano escolar é marcada por conflitos.
Enfim, a escola é o lugar onde se cruzam diferentes desencadeantes de violência, de modo que a violência que acontece no âmbito escolar é multideterminada, decorrente do contexto social, cultural, etário e da violência que a escola exerce sobre os jovens. Quando se trata da violência que a escola exerce sobre os jovens, ela é evitável no sentido proposto pelo professor e pesquisador francês Bernard Charlot, no texto “A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão” (2002), de que se a escola é, em grande medida, impotente com respeito à violência que é reflexo do mundo externo, ela não o é com respeito a sua ação.
Por fim, a escola não é apenas palco de uma manifestação da violência que vem “de fora”. Assim, atos de violência protagonizados por alunos não consistem em um problema individual, causado, quando muito, pelo fato de o jovem pertencer a uma família desestruturada.
PARA SABER MAIS
BOURDIEU, P. Escritos de Educação. 2. ed. Petrópolis: Vozes. 1999.
CHARLOT, B. A violência na escola: como os sociólogos franceses abordam essa questão, Revista Sociologias, Porto Alegre, n. 8, ano 4, p. 432-443, jul./dez. 2002.
CANDAU, V. M, NASCIMENTO, M. G, LUCINDA, M C. Escola e violência. Rio de Janeiro: DP&A, 1999.
DEBARBIEUX, E. A violência na escola francesa: 30 anos de construção social do objeto(1967-1997), Educação e Pesquisa, v. 27, n. 1, p. 163-193, jan./jun. 2001.
DUBET, F. A escola e a exclusão. Cadernos de Pesquisa, n. 119, p. 29-45, 2003.
MARTUCCELLI, D., BARRERE, A. A escola entre a agonia moral e a renovação ética, Educação e Sociedade, Campinas, v. 22, n. 76, p. 258-277, 2001.
SALLES, L. M. F.; SILVA, J. M. A de P. Diferenças, Preconceitos e Violência no âmbito escolar: algumas reflexões. Cadernos de Educação (Ufpel), v. 30, p. 149-166, 2008.
SALLES, L. M. F. Jovens, escola e violência: alguns apontamentos sobre o processo de inclusão e exclusão simbólica de jovens. In: SALLES, L M F; SILVA, J M A P. (Org.). Jovens, violência e escola: um desafio contemporâneo. São Paulo: Cultura Acadêmica, UNESP, 2010.
SILVA, J.M.A.P.; SALLES, L.M.F. VILLANUEVA, C. F.; CASTRO, J. C. R. A violência no cotidiano juvenil: uma análise a partir da escola. Taubaté: Cabral Ed. e Livraria Universitária, 2009.
A AUTORA
Leila Maria Salles é professora livre docente pela UNESP. Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Estadual Paulista “Júlio Mesquita Filgo” - UNESP/Rio Claro e do Mestrado em Desenvolvimento Regional, Universidade Alves Faria - UNIALFA/GO. Suas investigações examinam a adolescência e a juventude na sociedade contemporânea, os processos de inserção social de jovens na comunidade, violência e educação. Investiga os processos educativos em periferias urbanas.
COMO CITAR ESSE TEXTO
SALLES, Leila Maria. Jovens, violência escolar e os diferentes espaços de convivência. Revista Coletiva, Recife, n. 20, set.out.nov.dez. 2016. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-violencia-escolar-n20-jovens-violencia-escolar-e-os-diferentes-espacos-de-convivencia>. ISSN 2179-1287.