O Especial Reforma do Ensino Médio e BNCC: educação sob o princípio da flexibilidade convida o(a) leitor(a) para debater o novo projeto de educação e seus principais fundamentos sob os olhares de quem está no chão da escola, vivenciando o primeiro ano da implementação obrigatória em 2022. Com o estabelecimento das mudanças educacionais nas escolas públicas brasileiras, cabe investigar o que pensam os docentes sobre o Novo Ensino Médio, resgatando os primórdios dessa discussão até os impactos já sentidos na vida escolar.
É com essa perspectiva que a Coletiva conversou com mestrandos e egressos do programa de formação continuada do Mestrado Profissional de Sociologia em Rede Nacional (ProfSocio), os quais atuam como professores de Ensino Médio em distintas regiões do país, para elucidar os principais pontos de embate e discordância com a nova versão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e da Reforma do Ensino Médio, e o que tem significado para a categoria docente essa nova definição curricular que já iniciou na maioria dos estados brasileiros.
Nesta primeira reportagem, vamos compreender os principais desafios enfrentados com a atual modificação do ensino básico, atentando para as diferentes realidades educacionais neste país de dimensões continentais e o que está em jogo na disputa por uma determinada concepção de educação. Na continuação desse Especial, abordamos também o posicionamento dos docentes diante do modelo educacional que está sendo gestado nas escolas públicas do país e quais as resistências e propostas alternativas para a defesa ampla de outro projeto, no qual as Humanidades, e, em especial, o ensino de Sociologia têm muito a contribuir.
A BNCC e o Novo Ensino Médio: desafios e dilemas no chão da escola
As mudanças educacionais que estão sendo implementadas a partir deste ano são resultados de um turbulento período da política brasileira, no qual emergiu a Medida Provisória 746/2016, que impôs a reformulação da última etapa da educação básica com o pretensioso discurso de torná-la atraente aos jovens, no atendimento de suas demandas por autonomia, protagonismo e exercício da cidadania, encaminhado no governo de Michel Temer, após a destituição de Dilma Rousseff da presidência da República. A reforma terminou por atropelar todo o processo anterior de construção de uma proposta para o Ensino Médio e a BNCC com a participação das entidades ligadas à educação e junto à sociedade civil.
O discurso que vem sustentando a Reforma do Ensino Médio através do Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), com papel de destaque em sua elaboração e implementação pelas instituições privadas, são os baixos índices de desempenho nos processos de avaliação nacional e alta evasão escolar. O Governo Federal também aprovou a Lei nº 13.415/2017, que modificou as normas que estabeleciam as diretrizes e bases da educação nacional regidas pela BNCC. A partir da aprovação dessa nova versão, uma série de modificações foi estabelecida para a educação básica, dentre elas a ampliação da carga horária anual; a divisão do ensino em quatro áreas de conhecimento; o foco no projeto de vida, educação técnica e profissional; a inclusão de profissionais com “notório saber” e a inserção de itinerários formativos, com o objetivo de organizar o currículo a partir do princípio da flexibilidade.
Mas será que a reforma vem cumprir com os preceitos pelos quais afirma se respaldar na efetivação dos direitos das juventudes? O professor José Wilton Ramos, que leciona Sociologia na Escola de Tempo Integral em Campina Grande (PB) aponta que tanto os documentos como as recomendações deixam claro que não é realmente a autonomia do estudante que está em questão. “A necessidade de que ele vai ter que terminar o ensino médio e fazer alguma coisa, e há uma certa inclinação para que isso seja ligado ao empreendedorismo, a uma certa conformação”, é um dos eixos centrais na formulação do projeto de educação dos novos tempos.
Desde que assumiu a docência em 2012, José Wilton acompanhou de perto os primeiros passos do Programa Ensino Médio Inovador, transplantado do modelo referência de Pernambuco “Escola da Escolha”, idealizado pelo Instituto de Corresponsabilidade pela Educação (ICE), que se transformaria, em 2016, nas primeiras escolas cidadãs integrais do estado paraibano, bem alinhado ao projeto federal do Novo Ensino Médio que vêm sendo implementado no restante do país.
O docente comenta que a concepção de protagonismo juvenil foi apropriada e ressignificada da Constituição Cidadã, em termos e práticas condizentes com o modelo atualmente vigente, muito distante do contexto de suas origens no qual os docentes tiveram papel central. “Eu participei dessa ideia em uma escola e eu estava incomodado, porque eles também trabalham com a ideia de líderes estudantis e eu não percebia a representação estudantil”, enfatiza essa ausência no espaço escolar. Na tentativa de viabilizar uma formação política para os estudantes participarem das decisões escolares, conforme preceitos da Constituição Federal de 1988, o docente declara que não houve acolhida da gestão escolar, que tinha como prática recorrente a seleção dos alunos para a entidade estudantil, após sua criação ter sido realizada pela própria direção da escola. “Isso condiz com autonomia, com protagonismo estudantil? Então, eu vejo muito que esse protagonismo é um protagonismo que mais ceifa e mais impede do que proporciona autonomia para o estudante”, conclui.
O professor José Wilton afirma que a condução da nova BNCC e do currículo para a modalidade do ensino médio não respeitou o devido processo de escuta e consulta à comunidade escolar, se distanciando dos preceitos de autonomia tão propagados. “Tanto o governo federal quanto o estadual desrespeitaram os maiores interessados na Reforma do Ensino Médio e no modelo de escola, que são professores, estudantes e pais. Esses são os maiores interessados e foram pouco ouvidos.”
A professora Ana Beatriz Maia Neves, do Colégio Estadual Antônio Prado Júnior, localizado na região da Tijuca, e do Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho, primeira instituição pública secundarista na América Latina, situada em Niterói, concorda com o posicionamento de seu colega ao destacar as condições em que o programa passou a vigorar em 2017. “O Novo Ensino Médio foi implementado com uma medida provisória, isso é extremamente autoritário. A [versão] que foi aprovada está muito longe do que seria uma coisa minimamente democrática”, argumenta.
Desde 2005 exercendo a docência na Rede Estadual do Rio de Janeiro, Ana Beatriz comenta que a implementação do Novo Ensino Médio no estado vem ocorrendo em um contexto politicamente instável, após a prisão de quatro ex-governadores e o impeachment de Wilson Witzel, assumindo o vice Cláudio Castro. Como o atual mandatário não está a par dos assuntos educacionais, ela esclarece que está havendo um atraso para a implementação da BNCC em seu estado. “O que a gente percebe é o que chega para gente enquanto professores, é o que chega para direção enquanto direção de escola: é o que vem de cima para baixo, sem nenhuma discussão [...] essa história de referendar a escolha”.
Sob protesto, os docentes do Colégio Estadual Antônio Prado Júnior decidiram não escolher nenhum itinerário formativo ao longo de duas reuniões realizadas neste semestre, mesmo com a ameaça da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro (Seeduc) em escolher a parte diversificada a ser enviada para a aprovação dos alunos. “Quando têm experiências mais democráticas, são experiências muito individuais, muito específicas, muito fora do padrão. O padrão é chicote da Seeduc para as direções de escolas, das direções para os professores e dos professores e da direção em cima dos estudantes, é essa a sensação”, desabafa Beatriz.
O professor Wilton Ramos confirma o mesmo direcionamento realizado no estado da Paraíba a respeito da anuência com o documento de orientação educacional, a BNCC. “Discutir a BNCC foi basicamente o seguinte: um dia de encontro chamaram vários professores da Rede. A gente poderia se inscrever, nos dividimos por disciplinas, entregaram o documento e a gente tinha que dizer se concordava ou não com aquele texto. Isso para você debater em um dia, sem um debate mais amplo, sem nem saber se os professores tinham lido os outros documentos”, atesta. A elaboração do currículo paraibano também não contou com ampla consulta. “A gente tinha que dizer apenas se concordava, se tinha alguma opinião. Depois disso, foi só o evento de lançamento, que também nós não ficamos sabendo. Então, assim, foi algo muito fechado”, relembra.
Novo currículo e formação docente
Na realidade do estado de Pernambuco, a professora de língua portuguesa da EREM Professor Cândido Duarte, Mônia Cavalcanti de Souza, relata que houve consulta aos professores, mas visando apenas esclarecimentos, sem o devido acolhimento das modificações sugeridas pela categoria à Secretaria de Educação do Estado. A docente comenta que o início da implementação está sendo bastante confuso e tem estado receosa com certas lacunas que poderão ser só perceptíveis no segundo ano.“A gente percebe que, pelo menos aqui na Secretaria [de Educação] de Pernambuco, as pessoas não sabem ainda como as coisas vão acontecer. Elas estão acontecendo, estão sendo pensadas no momento de seu impacto.”
Na Rede Pública desde 2006, a docente tem percebido que, no atual momento, os conteúdos têm sido pré-determinados no portal do Sistema de Informações da Educação de Pernambuco (SIEPE) para o planejamento docente, no seu caso, em razão de maior monitoramento das disciplinas obrigatórias do currículo, Língua Portuguesa e Matemática. “O professor precisa ter autonomia. Não pode vir o material pronto e acabado para ser executado. Isso não é educação”, argumenta a docente, que afirma que as formações também vêm sendo alinhadas com esse propósito.
Em disciplinas do novo currículo, como “Novas Escolhas”, a Secretaria de Pernambuco já definiu um material que estrutura como será lecionada, sem a devida formação específica aos professores, algo que já vinha sendo realizado com a disciplina “Socioemocional”, que nem material didático havia sido disponibilizado. A professora Mônia Cavalcanti comenta que tem se questionado como acontecerá a formação para todas as possibilidades previstas de trilhas formativas, e deixa claro que a categoria docente não foi consultada para opinar sobre essa parte do currículo. “Essa formação precisa ser uma formação que faça com que o professor reflita sobre as questões do Novo Ensino Médio, para que possa fazer um trabalho na escola e não uma formação no sentido de reproduzir conteúdos”, defendendo, assim, a importância da reflexão docente sobre as práticas pedagógicas relacionadas a essas novas mudanças.
Para ela, o Novo Ensino Médio está baseado no empreendedorismo, para o “viés de instrumentalizar, de preparar esses estudantes para o mercado de trabalho”. Uma forma de resistir a essa concepção é a aposta num dos projetos da Erem Professor Cândido Duarte, que está presente em mais de 203 instituições da Rede Estadual de Ensino do estado, com o apoio da Secretaria da Mulher, que é o Núcleo de Gênero que homenageia em sua escola a ativista Malala Yousafzai. “Lá na escola, a saída que eu achei para que o Núcleo de Gênero se mantivesse e pudesse ter uma importância dentro da grade curricular foi transformá-lo em uma disciplina eletiva”.
Uma de suas preocupações associada à diminuição da carga horária disciplinar para a parte diversificada do currículo é a acentuação das desigualdades entre as Redes Pública e Particular que pode impactar o desempenho das avaliações. “Na rede particular, eu vou ter esses itinerários formativos voltados às disciplinas e aos conteúdos. No momento em que esses estudantes forem fazer o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio], que não foi modificado, a gente vai perceber, sem dúvida, uma discrepância na bagagem de conhecimento de cada um desses estudantes.”
Itinerários formativos e as dificuldades de implementação
Com a experiência de oito anos no chão da escola, alternando entre a coordenação pedagógica e a de grupo de escolas no interior paulista, o docente alerta que a BNCC propagandeia a garantia do direito de aprendizagem aos estudantes e da regionalidade dos conteúdos, mas ignora a viabilidade de implementação em cada estado. Para ele, “a BNCC não é só uma base, mas uma proposta de currículo único”, pois “impõe um currículo único, em que cada estado vai ter condições muito diferentes de cumprir, logo, vai naturalizar o fato de que cada sistema de ensino estadual vai formar alunos com condições desiguais, que vão concorrer de forma desigual na vida e no mundo do trabalho”, alerta. Assim, o professor William Dias termina por apontar para uma das principais contradições do discurso de promoção da BNCC contra o engessamento e a homogeneização dos currículos locais.
Enquanto pedagogo, William Dias também cita que, com a diminuição de 600 horas do currículo comum para a implementação de aprofundamentos curriculares decididos por suas turmas ainda no ano passado, muitos estudantes que optarem por determinada trilha de aprendizagem não terão acesso ao conhecimento básico. “No fundo, o que eu estou tendo com esses itinerários, com essas possibilidades de escolha, é a desconfiguração da obrigatoriedade dos direitos de aprendizagem do aluno aos conceitos básicos”.
Mesmo com o atraso na implementação do Novo Ensino Médio no estado do Pará, o professor Darlan Gardunho, que leciona na Escola Municipal de Ensino Fundamental Professora Oscarina Santos, na Ilha de Marajó e na Escola Municipal Vereador Cândido Lopes de Oliveira, em São Domingos do Capim, na modalidade EJA, verifica que, na reforma do currículo do ensino fundamental, a parte diversificada da BNCC suprimiu a carga horária da disciplina Estudos Amazônicos e retirou o Ensino da Cultura Afrobrasileira para estudantes quilombolas. Assim, observa com desconfiança o discurso de adequação do currículo aos contextos regionais quando o perfil dos estudantes não é levado em consideração desde a mais tenra formação.
Na visão do professor de Sociologia com 10 anos de magistério, a formulação dos itinerários no Ensino Médio irá prejudicar os professores de Humanidades, já que as disciplinas dessa área deixaram de ser obrigatórias e suas ofertas ficam a cargo das escolas.
Por isso, muitos professores de Humanidades vêm liderando a discussão sobre a parte diversificada na modalidade integral em seu estado, a fim de não perder espaço nem carga horária no currículo. “É isso que a gente está questionando no campo de Humanidades: Por que a gente vai estar precisando criar cardápios semestralmente para ter alunos fazendo a nossa disciplina?”, salientando o esforço do grupo para atrair os alunos a essa área de conhecimentos.
Nesse sentido, Darlan Gardunho argumenta que “o itinerário formativo nada mais é do que um cardápio. A gente vai oferecer um cardápio para o aluno vir fazer a disciplina”, relembrando que a depender da estrutura física de cada escola, nem essa escolha poderá ser possível em um estado que abarca 144 municípios com geografias e condições estruturais diferenciadas. “A BNCC e o Novo Ensino Médio dizem que você vai escolher o que você quer estudar, na base a grande história é essa. É mentira. Tu não vai ter esse cardápio de opções para estudar o que quer. Você vai acabar escolhendo e fazendo o que aquela única escola do município vai ter para te oferecer. Então, eu estou vendendo uma Base, um Novo Ensino Médio que já nasce como uma mentira,” complementa.
Para que a população paraense tenha acesso ao Ensino Médio em diversas regiões interioranas, o docente comenta que há a política educacional do Sistema Modular de Ensino (SOME) para garantir três meses de aula de determinada disciplina. “São Domingos do Capim, que é um outro município em que eu trabalho, no Nordeste do Estado, não tem uma escola do Estado para atender alunos ribeirinhos, trabalhadores rurais e alunos urbanos. Você termina o seu fundamental embaixo do rio Capim - olha a geografia da Amazônia - e aí tu vens terminar o Ensino Médio na cidade, nessa única escola do estado de barco uma hora e meia”, exemplificando as dificuldades para a implementação do Novo Ensino Médio naquela região do Pará.
Outra das insatisfações do docente diante da reforma diz respeito à interdisciplinaridade. Ele questiona a maneira como a interdisciplinaridade foi elaborada para a integração do currículo. “Até que ponto, a interdisciplinaridade nega uma disciplinaridade quando conceitos e saberes de determinadas disciplinas são entrelaçados e diluídos em uma área de conhecimento" E reforça que “As nossas interdisciplinaridades, que é o que todo mundo defende, que eu sou a favor, precisam estar acompanhadas de uma disciplinaridade. Eu só vou ser um bom professor interdisciplinar se eu domino a minha área de conhecimento”.
A liberdade de escolha dos estudantes e a interdisciplinaridade como vêm sendo trabalhadas na atual reforma, que as apresentam como uma das conquistas centrais da BNCC diante de um ensino tido como obsoleto e conteudista, pode significar um retrocesso nos direitos das juventudes à educação, sobretudo periféricas, e uma acentuação das desigualdades regionais para as atuais e futuras gerações, de acordo com o relato do professor William Marques Dias, professor de Sociologia e coordenador de área na Rede Pública de Ensino de São Paulo, na região de Presidente Prudente.
Material didático e a pedagogia das competências
O professor William informa que a formação docente para os itinerários formativos na região paulista têm acontecido através do Centro de Mídias da Educação de São Paulo. O repositório de vídeos tem servido para reorientar o novo papel do professor dentro da pedagogia das competências, em uma formação completamente guiada na ideia de aplicação de material do qual o professor não participou da construção. “É a ideia de um professor para aplicar material e não um professor que pensa o processo pedagógico”, reitera.
Neste sentido, ele retoma os princípios que despontaram na década de 1990 com a ênfase na autonomia e no protagonismo da aprendizagem pelos estudantes, em um contexto neoliberal, que desvaloriza o trabalho docente a partir da flexibilização do mundo do trabalho como um todo. “Em raiz, a pedagogia das competências nos diz que estando o currículo bem organizado, a escola bem organizada, o aluno aprende sozinho. O professor, então, precisa organizar a aplicação dessas competências e habilidades. Isso é uma coisa muito perigosa, isso é retirar do professor o poder sobre seu próprio ofício, o conhecimento de seu ofício”.
Nessa nova constituição do processo ensino-aprendizagem, William Dias alerta para as implicações e a abertura de novos precedentes na educação. “A BNCC significou, no fundo, uma descaracterização de saber específico do professor; até porque a lei da Reforma do Ensino Médio cita que para os itinerários formativos é possível a parceria com instituições privadas. É possível a parceria com professores reconhecidos por essa instituição privada, que é o tal "notório saber,” exemplifica. Somado aos efeitos desse desembarque de instituições privadas na educação pública, há a preocupação do entrevistado com a formação desse “profissional que não sabe teoria pedagógica, não teve essa reflexão sobre o que é o ato pedagógico do ensinar e do construir, que possibilidade de defesa tem ele ao assédio do currículo?”
O professor resume a ideia central desse projeto de educação que ganhou força na última década. “A ideia é que essa reforma, que foi aprovada via medida provisória, ignorava todo o debate de educação que já tinha sido construído e, no fundo, o que ela legitimou foi uma reforma de educação empresarial [...]. O pensamento que está se tendo dentro da educação é o que está acontecendo com as políticas curriculares, é uma tentativa de construir estudantes que sejam mão de obra barata. E com mão de obra barata, nós precisamos conceituar isso, estamos querendo dizer um trabalhador flexível”, certifica.
Para a professora e coordenadora pedagógica da Rede Pública da periferia de Londrina (PR) há seis anos, Fabiana Miyuki Yamamoto, os impactos já estão sendo sentidos em seu estado, porque a reforma não levou em consideração todo o contexto educacional, inclusive, o perfil dos estudantes de escolas públicas. “Essa reforma é inclusiva ou ela está sendo excludente? Com esse aumento da carga horária para esses estudantes daqui a gente tem uma realidade peculiar, porque eles precisam, sim, trabalhar. Eles estão sendo prejudicados quando saem para procurar vaga em escolas noturnas, e não se têm.”
Projeto de Vida e perspectiva empresarial
Com o avanço do Novo Ensino Médio interligado ao modelo integral no estado, o governador e também empresário Renato Feder impôs o fechamento das turmas do Ensino Médio Noturno em escolas públicas de Curitiba e da Região Metropolitana desde 2020. As desigualdades entre as modalidades de ensino preocupam a pedagoga. “Eu tenho essa visão de exclusão e não de inclusão. Quem vai mais ser prejudicado são os alunos do ensino regular”, ressalta ao apontar que esta modalidade é bastante presente em regiões periféricas.
Segundo a docente, os alunos ainda não têm claro os impactos dessa nova reestruturação nas escolas, que possivelmente serão sentidos por eles no próximo ano, mas àqueles que estão na modalidade integral já os intuem com a perda progressiva da Sociologia para as disciplinas “Projeto de Vida”, “Educação Profissional e Financeira”, por exemplo. “No ensino integral, eles já têm uma visão mais crítica da disciplina, até tinha muitas brincadeiras deles de que a ‘Educação Financeira’ é para pobre aprender a viver com um salário mínimo”. Enquanto pedagoga, Fabiana Yamamoto enxerga problemas em como a reforma foi estruturada. “Tinha, sim, que fazer algo contra o ensino tradicional. Por outro lado, não poderia fazer a reforma desta forma que foi feita, prejudicando algumas disciplinas”, avalia também enquanto socióloga.
Atuando desde 2009 em defesa da escola e educação pública, o professor e dirigente sindical de Londrina, Rogério Nunes reafirma o desmonte da educação que afetará uma parcela significativa dos estudantes, sobretudo, com a mudança do sentido educacional, fruto de uma intensificação no estado, em 2018, de uma lógica empresarial no chão da escola, que reorganiza o currículo dentro da perspectiva do projeto de vida. “Eu vou tendo um aprofundamento desse viés empresarial substituindo as disciplinas que têm uma tradição científica e concretizando, por meio do currículo, essa perspectiva empresarial dentro das escolas públicas paranaenses [...] vai precarizar o acesso, principalmente, das juventudes mais pobres ao conhecimento socialmente acumulado”, como uma das atribuições da escola em nossa sociedade.
Para o professor, que leciona em duas escolas da segunda maior cidade do estado do Paraná, na região mais central no Colégio Estadual José de Anchieta e na periferia da cidade, no Colégio Estadual Bedulha Correia Oliveira, onde estudou 20 anos, as entidades empresariais têm adentrado nas escolas estaduais paranaenses para aplicar metodologias direcionadas a competências e habilidades, a exemplo do financiamento à entidade privada ICE, que dominou o modelo de educação em Pernambuco e na Paraíba, apontado no início da reportagem, para gerenciar o Projeto de Vida focado nas juventudes. “Quando você analisa o contexto das juventudes do Paraná e no Brasil inteiro como um todo, você percebe que esse discurso, que é um discurso ideológico, esconde a dificuldade de inserção que os jovens e as jovens têm no Mundo do Trabalho”, avalia criticamente o docente.
Autonomia negada e ataque à Sociologia no modelo neoliberal
A situação da Rede Pública do Paraná dentro dessa ampla reforma na educação é preocupante, segundo os professores. As escolas do estado estão fechando o Ensino Médio Noturno ao mesmo tempo em que o governo estadual promove o maior programa de escola cívico-militares do Brasil. Dados do Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP - Sindicato) do qual Rogério é um dos dirigentes - apontam que em 2020 - 200 instituições educativas aderiram ao modelo de escolas cívico-militares, totalizando dez por cento da Rede. “Tem um projeto em curso que nega direitos, esvazia o acesso ao conhecimento e, de alguma forma, expulsa os jovens do direito à educação. Esse movimento não atinge só os jovens, mas a sociedade como um todo”, observa o professor Rogério Nunes.
A pedagoga Fabiana Yamamoto ainda destaca que a busca pelo disciplinamento dos estudantes no modelo cívico-militar de escolas, que tem como bandeira a diminuição da violência em um dos colégios em que atua, não têm produzido este efeito. “Falar para você que a disciplina Cidadania e Civismo ‘nossa, agora vai ser destaque’, foi irrisório, digamos assim. Um gasto a mais que o governo está tendo colocando funcionários extras na escola, que poderia ser um pedagogo, poderia ser professor de apoio, por exemplo, porque se a intenção era resolver qualquer coisa relacionada à violência, não resolveu”, pontua.
De forma unânime, os professores deixam evidente suas insatisfações desde a forma como foi aprovada e estão sendo implementadas as atuais modificações na última etapa da educação básica, dos quais não foram chamados a colaborar como artífices das propostas pelos quais ansiavam e pelo qual esperavam envolver toda a comunidade escolar nesse debate.
Parece, assim, haver um esvaziamento completo dos principais aspectos que fundamentam a elaboração do Novo Ensino Médio, expresso pelas dificuldades quase intransponíveis em sua efetiva implementação nas especificidades do chão da escola, do qual o projeto federal apenas se articula com os modelos estaduais hegemônicos de cada estado. Contudo, as posições críticas defendidas pelos e pelas docentes apontam um quadro ainda mais grave: os pressupostos que estruturam o modelo de educação desenvolvidos dentro de um contexto social específico do avanço do neoliberalismo ignoram deliberadamente as mudanças necessárias para a melhoria efetiva da qualidade de ensino.
As necessidades estruturais e locais das diversas redes de ensino das escolas públicas, o perfil das juventudes e a valorização da carreira docente são um dos aspectos mencionados por eles e elas, que não foram levados em consideração nesta reforma. Resta aprofundar os motivos do porquê as demandas mais urgentes dos principais atores sociais da escola não estão sendo devidamente observadas, nem diagnosticadas pelos agentes públicos do Estado Brasileiro e Institutos privados de Educação, os quais afirmam representar a sociedade civil e que estão à frente da estruturação da BNCC e do Novo Ensino Médio.
A cultura empresarial e gerencialista inserida na escola
O modelo educacional gestado na última década, com a proposta de uma formação autônoma e democrática, tem se apresentado em uma base não tão nova na sociedade contemporânea, conforme afirma o professor Rogério Nunes. “O modelo empresarial traz para a educação uma característica que a gente encontra lá na fábrica, porque eu separo a gerência de quem executa. Então, isso se dá dentro da escola”, traduzido em uma hierarquização na elaboração da concepção de modelo, até a sua imposição aos professores e estudantes pela Secretaria e pela gestão.
O docente reitera essas estratégias na tomada de decisões importantes no contexto da implementação da Reforma que vem solapando a construção de uma cultura democrática pelas categorias que vivenciam o dia a dia na escola e são impactadas diretamente por essas escolhas. “Há um discurso de que houve consulta, mas é esse modelo de consulta individualizada que mais legitima o processo, do que, de fato, consulta às comunidades escolares, como têm sido a implementação da reforma, a partir de 2022. [Ela] tem se dado nesses moldes.”
Para o professor da rede pública da Paraíba, Wilton Freitas, há a conformação de um ensino público integral que visa à formação para o mercado de trabalho atual, e isso significa “ser seu próprio patrão”, com a ocultação de outras possibilidades de futuro para as juventudes atuais. “O quanto a Reforma do Ensino Médio e esse modelo que estamos trabalhando aqui está impregnado dessa concepção neoliberal, de que o estudante da escola pública só garante o sucesso após o Ensino Médio se ele ingressar em um determinado trabalho, se ele criar seu próprio negócio,” enfatiza Wilton, acompanhado pela professora pernambucana Mônia Cavalcanti, que defende que “a ideia de você ter uma disciplina de Empreendedorismo já demonstra qual é o viés desse Novo Ensino Médio. É o viés de instrumentalizar, de preparar esses estudantes para o mercado de trabalho”.
O docente de Sociologia William Dias concorda com o posicionamento dos colegas e reforça quais os fundamentos e compromissos promovidos pelas atuais mudanças educacionais. “Não é de hoje, mas essa BNCC e a Reforma do Ensino Médio é a expressão mais atual dessa premissa. Formar uma mão de obra flexível, que já tenha como natural um mundo do trabalho desregulamentado, competitivo e predatório”, assevera.
Com a integração da Pedagogia das Competências na elaboração do modelo gerencial de educação, William considera que “esse saber de saber organizar, saber relacionar, aprender a aprender, no fundo, é um saber da prática que é individual, específico do ofício que eles vão desenvolver, das condições psíquicas, sociais e culturais desses jovens dentro do mundo do trabalho”. E é com a ênfase em um autogerenciamento dos projetos pessoais e profissionais desses jovens que surgem as disciplinas Projeto de Vida e Educação Socioemocional , para que os estudantes possam adquirir habilidades como flexibilidade, resiliência e certa acriticidade para lidarem com essa natureza do mercado de trabalho atual.
As disputas e desafios no campo curricular
Em sua obra Currículo, território em disputa, da editora Vozes, o pesquisador Miguel Gonzalez Arroyo compreende o currículo como um campo de disputas entre saberes e práticas, marcado por assimetrias entre os sujeitos e suas posições em um campo de interesses desiguais. Segundo o professor Willian, é nesse sentido que a definição curricular da BNCC já vêm inicialmente predefinida, com a reprodução de certos valores do sistema político e econômico atual: “Ela [BNCC] significa currículo único e adequação da construção do Ensino Médio não mais a uma ideia de emancipação humana, de autonomia, mas é uma ideia de empregabilidade dentro de um mundo do trabalho flexível que não nos garante direitos”, pontua o docente.
Para o professor paraense Darlan Gardunho, há um ciclo perverso que alinha o protagonismo juvenil a um autogerenciamento da vida imposto cada vez mais cedo aos jovens, que desresponsabiliza o Estado de seu papel social na garantia de direitos. “Eu estarei dizendo para o aluno (com esse currículo): você vai ser empreendedor.Você é seu protagonista! E reforçando, mais uma vez, que, desde muito cedo, [esse aluno] crie a sua lógica de projeto de vida, isentando o Estado das suas responsabilidades de políticas sociais, e jogando inteiramente nas costas desse indivíduo a responsabilidade do seu sucesso”.
Nesse sentido, os valores da competitividade, da meritocracia e da produtividade, pertencentes ao sistema neoliberal enquanto ordem social hegemônica, disputam espaço no currículo com outra concepção de sociedade e, portanto, de educação, que foi gestada ainda no período da redemocratização, pela comunidade docente. “Porque eu estou romantizando uma situação em que percebemos uma falta de presença do Estado, a falta de políticas públicas do Estado e estou levantando a bandeira da meritocracia. Que absurdo é esse?”, reflete Darlan, apontando também para uma concorrência entre os próprios docentes do campo de Humanidades, que foi um dos mais afetados com o espaço curricular fornecido aos itinerários formativos.
"Vamos fazer uma disputa entre nós para construir a melhor eletiva para atrair os alunos. Já estamos notando essa lógica empresarial florescendo ao redor da escola.” A professora Beatriz Maia, do Rio de Janeiro, também acrescenta que “falar de protagonismo da juventude em um contexto de exclusão cada vez maior, de aprofundamento das desigualdades sociais, não faz o menor sentido (...) Isso é uma grande falácia”, afirma.
Resistir enquanto esporte de combate sociológico
O professor Darlan é incisivo quanto à não aceitação desse novo currículo a partir de uma outra concepção educativa e de uma perspetiva crítica da Sociologia. “Se eu acredito numa educação, numa Sociologia enquanto esporte de combate, eu nego toda essa BNCC que está sendo imposta na educação pública do Pará, porque eu não defendo essa prática, esse tipo de educação que nega essa autonomia do aluno”, salienta.
Para pensar em novas formas de resistências e alternativas, os docentes de Sociologia acreditam que a disciplina pode cumprir um papel significativo na reflexão das realidades socioeconômicas em que a escola está inserida, e em suas potencialidades na vida do estudante.
Darlan se posiciona firmemente contra todas as contradições e os interesses hegemônicos que esvazia o papel do Estado e da escola no acolhimento das diversidades. “Eu me coloco como uma forma de resistência, numa forma de ainda pensar em uma educação para além do Capital, defendendo o que querem tirar de nós, que é essa política de Estado de Bem Estar Social, que é uma política que nós queremos que reduza essas desigualdades, que são históricas em nosso país” (...) Eu [e outros] professores acreditamos em uma educação mais humanitária, numa educação que atenda a essas camadas mais pobres, que atenda o meu aluno amazônico, meu aluno ribeirinho, meu aluno quilombola, o meu aluno LGBTQIA+, e atenda a uma educação antifascista, anticapitalista e antisexista. Então, por isso que a gente refuta toda essa política da Base Nacional Comum Curricular que está sendo imposta sem conversa, sem diálogo no Estado do Pará”, complementa.
A docente Beatriz Maia também confere aos professores de Sociologia, apesar da redução da carga horária dessa disciplina no Novo Ensino Médio, sua importância para um pensamento crítico e científico diante de outras esferas da vida social. “Eles [estudantes] terem acesso a uma reflexão que se não for nós com nosso instrumental - não vamos lá fazer discurso político, nós vamos lá instrumentalizar cientificamente - eles provavelmente teriam dificuldade de ouvir isso na própria escola, no contexto da família, na mídia, nas religiões que participam, nos discursos políticos, e essa não é uma tarefa pequena”, acrescenta.
O questionamento pressuposto pelos docentes entrevistados ao longo das discussões sobre o modelo educacional se dirigem a uma mesma constatação: os princípios norteadores do protagonismo e da autonomia juvenil em uma cultura democrática e participativa, do qual os documentos da BNCC e da Reforma dizem se basear, não são mobilizados pelos idealizadores da Reforma na garantia do direito à educação, uma vez que esses princípios vêm distorcidos pelos interesses de fundações e entidades privadas, que controlam a discussão e os parâmetros definidores das mudanças vigentes sem o acolhimento das experiências coletivas já construídas por jovens e professores da rede pública de ensino; seja nas ocupações secundaristas realizadas em meados de 2016, nos coletivos de entidades como a Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), a Sociedade Brasileira de Sociologia (SBS), seja nas intervenções pedagógicas de uma formação continuada como o Mestrado Profissional de Ensino de Sociologia (Rede ProfSocio). Eis uma questão para se refletir sobre o que aparenta, no modelo hegemônico, uma feição democrática, mas que, na realidade, está em concorrência com outros valores predominantes, que reproduzem o gerencialismo e a agenda transnacional neoliberal.