A implementação da (Contra) Reforma do Ensino Médio em questão: a reação da comunidade acadêmica
Marcia Ângela S. Aguiar
É deveras reconhecida no campo educacional a contestação das associações científicas e entidades acadêmicas e sindicais à (contra) Reforma do Ensino Médio, instituída de forma autoritária, através da Medida Provisória 746/2016, convertida na Lei 13.415/2017, pelo presidente Michel Temer, após afastamento da presidenta eleita Dilma Rousseff, decorrente do impeachment efetivado pelo Congresso Nacional, sem que fosse comprovado crime de responsabilidade fiscal.
Considerando esse contexto, bem como o direito constitucional à educação, este texto aborda o movimento em defesa do ensino médio, última etapa da educação básica, capitaneado pelos movimentos sociais, associações e entidades que propõem a revogação da Reforma do Ensino Médio em curso no Brasil, com destaque para a CARTA ABERTA PELA REVOGAÇÃO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO (LEI 13.415/2017), produzida neste cenário.
Fonte: Carta Aberta assinada por entidades e movimentos ligados ao direito à educação
A correlação de forças que conseguiu empreender tão fortemente a afirmação de direitos universais e a exigência de políticas públicas responsáveis na sua garantia, não foi capaz de reservar recursos públicos exclusivamente para instituições públicas, nem assegurar uma formulação mais clara do sistema nacional de educação (p.12).
A correlação de forças que conseguiu empreender tão fortemente a afirmação de direitos universais e a exigência de políticas públicas responsáveis na sua garantia, não foi capaz de reservar recursos públicos exclusivamente para instituições públicas, nem assegurar uma formulação mais clara do sistema nacional de educação (p.12).
Tais constatações indicam as tensões que, ao longo dos anos, permeiam as políticas públicas e que chegaram ao ápice em 2016, no contexto do processo de impeachment da presidenta eleita Dilma Rousseff, substituída pelo vice-presidente Michel Temer. Foi ele quem iniciou o desmonte de direitos sociais e de políticas públicas, inclusive educacionais, que tinham sido implementados até então e que foi aprofundado no governo subsequente de Jair Bolsonaro.
A primeira medida do governo Temer que causou impacto foi a Proposta de Emenda Constitucional 241, posteriormente Projeto de Lei 55/2016, e, finalmente, PEC 95, que instituiu o Novo Regime Fiscal que estabelece um teto de gastos por vinte anos. Outra medida que impactou fortemente o campo educacional foi a Medida Provisória 746/2016, posteriormente transformada na Lei 13.415, de 16 de fevereiro de 2017, que instituiu a Reforma do Ensino Médio. Devido ao caráter autoritário e ao seu conteúdo, a MP provocou protestos no meio educacional, inclusive com ocupações de escolas públicas pelos estudantes.
Fonte: Escola Barbosa Lima ocupada em novembro de 2016 no bairro do Cabanga, Recife. Foto: Facebook/Reprodução
Considerada de cunho autoritário, por desconsiderar, dentre outros aspectos, projetos em tramitação no Congresso Nacional, a MP instituiu a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Tempo Integral, alterou a Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelecia as diretrizes e bases da educação nacional e a Lei 11.494, de 20 de junho de 2007, que regulamentava o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação.
A Lei 13.415/2017 atingiu profundamente o processo democrático de incorporação do ensino médio na educação básica que estava em consolidação no país, no período dos governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta Dilma Rousseff. Como cita o documento, em termos curriculares, havia adquirido centralidade o eixo ciência, cultura, trabalho e tecnologia, como dimensões da vida em sociedade e da formação humana.
As iniciativas concernentes à reformulação curricular emergiram nas novas diretrizes curriculares nacionais, exaradas pelo Conselho Nacional de Educação (Resolução CNE nº. 02/2012), no Programa Ensino Médio Inovador, no Pacto Nacional pelo Fortalecimento do Ensino Médio, dentre outras ações. Tais iniciativas buscavam superar a perspectiva de um ensino secundário elitista e propedêutico, inclusive com a garantia do ensino noturno, compatível com as condições do estudante trabalhador e da oferta da modalidade de Educação de Jovens e Adultos, negligenciados na nova lei.
O impacto mais profundo dessa mudança de rumos no sistema educacional, sem dúvida, diz respeito ao currículo, tendo em vista que passa a ser constituído pela Base Nacional Comum Curricular – BNCC e por itinerários específicos que serão estabelecidos em cada sistema de ensino, com ênfase nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas e formação técnica e profissional. Além disso, atribui autonomia aos sistemas de ensino para estabelecer a organização das áreas de conhecimento, as competências, habilidades e expectativas de aprendizagem definidas na BNCC.
A Lei 13.415/2017 altera, portanto, a estrutura do ensino médio então vigente, com consequências para a organização da educação básica; ainda amplia a carga horária mínima anual do ensino médio, progressivamente, para 1.400 horas; determina a obrigatoriedade do ensino de língua portuguesa e matemática nos três anos do curso; restringe a obrigatoriedade do ensino da arte e da educação física à educação infantil e ao ensino fundamental, tornando-as facultativas no ensino médio. Neste caso, faculta a oferta de outros idiomas, preferencialmente o espanhol.
Sancionada a lei, rapidamente, foram implementadas ações pelos governos subnacionais para empreender as mudanças curriculares prescritas, a despeito das inúmeras contestações de segmentos da sociedade contrários à reforma de ensino proposta.
Para essa mudança acontecer, seria necessário imprimir materialidade à Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, considerada pelas entidades educacionais um retrocesso na agenda educacional e, especialmente, do ensino médio. Ainda em 2017, foi publicado o edital do novo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), observando a Lei 13.415/2017, bem como aprovadas a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, em 2018 .
Contudo, a despeito da forte reação de movimentos sociais; instituições universitárias; entidades acadêmicas; sindicais; estudantis; dentre outras, os estados, o Distrito Federal e municípios foram instados pelo MEC a promover as modificações curriculares estabelecidas no novo marco legal. Ao editar a MP 746/2016, o governo Temer alegou que a Reforma visava: 1) tornar o ensino médio mais atrativo aos jovens ao permitir que estes possam escolher itinerários formativos diferenciados; 2) ampliar a oferta de ensino em tempo integral; e 3) aumentar o aspecto profissionalizante do ensino médio.
Decorridos, todavia, quatro anos de aprovação da citada Lei, a implementação da Reforma do Ensino Médio, que não foi interrompida sequer durante a pandemia da covid-19, não cumpre os objetivos anunciados e é objeto de críticas da parte de diversos setores, sobretudo do campo educacional, que apontam os graves problemas enfrentados pela maioria dos estudantes da educação básica pública e propõem a sua revogação. Não é outro, senão este, o sentido do MOVIMENTO REVOGA JÁ, instituído pela sociedade civil organizada e que expressa as posições unificadas das mais prestigiadas entidades do campo, com relação à necessidade de revogação da lei da Reforma do Ensino Médio.
Esse Movimento tem ampliado suas ações e tem recebido inúmeras adesões a um documento de análise e proposições sobre o ensino médio intitulado CARTA ABERTA PELA REVOGAÇÃO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO (Lei 13.415/2017), cujo lançamento ocorreu na II Conferência Nacional Popular de Educação (CONAPE2022), que foi realizada entre os dias 15 e 17 de julho de 2022, em Natal - RN, tendo como tema central: “Construção de um projeto de nação soberana e de Estado democrático, em defesa da democracia, da vida, dos direitos sociais, da educação e do PNE”.
A Carta subscrita por mais de 100 entidades nacionais apresenta um histórico dos antecedentes da reforma, mostrando o processo de reconhecimento das juventudes no cenário nacional, a construção de propostas e políticas atinentes ao ensino médio e a busca de afirmação de ações que materializassem os princípios constitucionais, até a ruptura desse processo, com a mudança abrupta do governo em 2016. Afirma o documento que “a Lei 13.415/2017 demonstra compromisso umbilical com um projeto de educação avesso à democracia, à equidade e ao combate das desigualdades educacionais”, e elenca vários argumentos que reforçam esta posição.
O documento mostra que a Lei 13.415/2017 fragiliza o conceito de ensino médio como educação básica, assegurado na LDB 9394/1996, na medida em que esta etapa deixa de ser uma formação geral para todos; amplia a adoção do modelo de Ensino Médio em Tempo Integral sem que se assegurem investimentos suficientes e sem garantir condições de acesso e permanência dos estudantes; induz jovens de escolas públicas ao itinerário da formação técnica e profissional, o qual, por meio da reforma, tende a ter uma forma precarizada; põe sob risco o modelo de ensino médio público mais bem sucedido e democrático do país: o Ensino Médio Integrado praticado pelos Institutos Federais; aumenta consideravelmente o número de componentes curriculares e acentua a fragmentação curricular, além de delegar aos sistemas de ensino as formas e até a opção pelo cumprimento dos objetivos, tornando ainda mais distante os ditames de um Sistema Nacional de Educação, como preconiza o PNE 2014-2024.
A carta chama a atenção, também, para o fato de que a lei desregulamenta a profissão docente, tendo em vista a construção de itinerários formativos que objetivam a aquisição de competências instrumentais, desenraizando a formação da atuação profissional, como também pela oferta das disciplinas da educação profissional por não docentes, contratados precariamente para lidar com jovens em ambiente escolar; amplia e acentua o processo de desescolarização, terceirizando partes da formação escolar para agentes exógenos ao sistema de educação e às escolas (como empresas; institutos empresariais; organizações sociais; associações e pessoas sem formação profissional para as atividades de ensino).
Adianta ainda que compromete a qualidade do ensino, através da oferta na modalidade da educação a distância, segmenta e aprofunda as desigualdades educacionais e, por extensão, as desigualdades sociais, ao instituir uma diversificação curricular por meio de itinerários formativos que privam estudantes do acesso a conhecimentos básicos necessários à sua formação.
Alegadas essas razões para solicitar a revogação da Reforma do Ensino Médio, os signatários da CARTA ABERTA PELA REVOGAÇÃO DA REFORMA DO ENSINO MÉDIO (Lei 13.415/2017) reivindicam que o próximo governo, (quiçá) do campo democrático, revogue a referida lei e desencadeie um processo de debate qualificado e participativo sobre esta etapa da educação básica, fundamentado nos princípios constitucionais e na LDB de 1996, para dar legitimidade às mudanças necessárias aos processos formativos que atendam as gerações de jovens e adultos que têm direito a uma educação republicana e de qualidade, referenciada pelo social.
PARA SABER MAIS
ABICALIL, C. Entrevista - A Conae e o novo PNE Novos marcos para a educação. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 4, n. 6, p. 12, jan./jun. 2010. Disponível em: https://www.cnte.org.br/index.php/publicacoes/retratos-da-escola/61725-retratos-da-escola-volume-4-numero-6-janeiro-a-junho-de-2010
AGUIAR, M. A. S.; DOURADO, L. F. (orgs.). A BNCC na contramão do PNE 2014- 2024: avaliação e perspectivas. Recife: ANPAE, 2018. Revista Retratos da Escola, Brasília, v. 11, n. 20, p. 19-31, jan./jun. 2017. Disponível em: A BNCC na contramão do PNE 2014-2024: avaliação e perspectivas. | Semantic Scholar
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas. Brasília, DF, 2008.
BRASIL. Emenda Constitucional Nº 95, de 15/12/2016. Altera o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), para instituir o Novo Regime Fiscal, e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 2016.
FERRETTI, C. A reforma do Ensino Médio e sua questionável concepção de qualidade da educação. Estudos Avançados, 32 (93), 2018a.
FERRETTI, C. ENTREVISTA- A BNCC e a reforma do ensino médio conduzem a um empobrecimento da formação. EPSJV/Fiocruz, 13/04/2018b. Disponível em: https://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/entrevista/a-bncc-e-a-reforma-do-ensino-medio-conduzem-a-um-empobrecimento-da-formacao
SILVA, M. R. A BNCC da Reforma do Ensino Médio: o resgate de um empoeirado discurso. Educação em Revista, Belo Horizonte , v.34 , e214130, 2018. Disponível em: https://www.scielo.br/j/edur/a/V3cqZ8tBtT3Jvts7JdhxxZk/abstract/?lang=pt
SILVA, M. R.; SCHEIBE, L. (2017). Reforma do ensino médio: Pragmatismo e lógica mercantil. Retratos da Escola, 11(20), 19–31. https://doi.org/10.22420/rde.v11i20.769 Disponível em: https://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/769
A AUTORA
Márcia Ângela da Silva Aguiar é professora titular da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Curso de Pedagogia e coordena o Observatório de Política e Gestão da Educação (OBSERVA). Foi professora da Educação Básica e Diretora de Planejamento da Secretaria de Educação de Pernambuco.
COMO CITAR ESSE TEXTO
AGUIAR, Márcia Ângela da Silva. A implementação da (Contra) Reforma do Ensino Médio em questão: a reação da comunidade acadêmica. Coletiva, Recife, n. 31 Coletiva. set.out.nov.dez. 2022. Disponível em <https://www.coletiva.org/dossie-reforma-do-ensino-medio-n31-artigo-implementacao-da-contra-reforma-do-ensino-medio-marci>. ISSN 2179-1287.
Conteúdos relacionados
Coluna Política e Cidadania | nº 21
Márcia Angela Aguiar
Coluna Educação e Diversidade e... | nº 15
Sandro Prado Santos e Matheus Moura Martins
Coluna Educação e Diversidade e... | nº 8
Thiago Ranniery