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19 de dezembro de 2022

Financiamento do Novo Ensino Médio: o setor privado pega carona

Cassia Domiciano

Theresa Adrião

Após promulgação da Lei 13.415, em 16 de fevereiro de 2017, originada de Medida Provisória (MP 746/2016), editada por Michel Temer no contexto político seguinte ao impeachment da presidente Dilma Vana Rousseff, novos desafios se interpuseram para as redes públicas e privadas para colocar o Novo Ensino Médio em curso.

 

Recebida com muitas críticas por diferentes segmentos da sociedade - movimentos sociais, entidades de classe, comunidade científica, estudantes, professores e professoras - a política, que tem como foco o currículo do Ensino Médio, segue sofrendo muita resistência e descoordenada. 

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Ocupações de escola pública em Brasília em 2016 contra a Reforma do Ensino Médio. Foto: Wilson Dias / Agência Brasil

Desrespeitando toda e qualquer manifestação popular e inúmeros pedidos de prorrogação, o primeiro ano do Novo Ensino Médio teve início em 2022, nos diferentes estados brasileiros, seguindo o Cronograma Nacional de Implementação, instituído pelo Ministério da Educação (Portaria nº 521/2021). Mesmo em meio a pandemia provocada pelo SARS-CoV-2 (Coronavírus), o MEC estipulou o ano de 2020 para elaboração dos referenciais curriculares dos estados e do Distrito Federal, os quais deveriam contemplar “a BNCC [Base Nacional Comum Curricular] e os itinerários formativos” (MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO, 2021). Manter os prazos do calendário em meio à emergência sanitária centralizou a elaboração do documento curricular nas gestões estaduais de educação, desconsiderando e enfraquecendo ainda mais o debate coletivo, secundarizado durante todo processo de elaboração da Reforma do Ensino Médio.

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 Foto: Reprodução/Fiocruz

No aspecto relacionado ao financiamento, a Lei 13.415/2017 incluiu a “formação técnica e profissional” entre as distinções dos fatores de ponderação (multiplicadores que diferenciam os valores aluno-ano a serem repassados a estados, distrito federal e municípios) para distribuição dos recursos do “velho” Fundeb (Inciso XVIII, Art. 10) e trouxe, no Novo Fundeb (Fundeb permanente instituído pela  Emenda Constitucional nº 108/2020 e regulamentado pela Lei 14.113/2021), a partir da alteração da lei regulamentadora (Lei 14.276/2021), a possibilidade de repasse de recursos às entidades paraestatais do chamado sistema S (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial; Serviço Social da Indústria; Serviço Social do Comércio; Serviço Nacional de Aprendizagem do Comércio; Serviço Nacional de Aprendizagem Rural; Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo; Serviço Social do Transporte). Isso foi possível na medida em que permitiu o cômputo das matrículas dessas entidades na modalidade técnica profissional articulada ao Ensino Médio e de aquelas relativas aos itinerários formativos (BRASIL, 2021), dividindo, com isso, os parcos recursos da educação com esses entes privados, além de induzir e estimular a disputa pelo fundo público.

 

Como apoio à implementação do Novo Ensino Médio no Brasil, o MEC lista seis ações: 1) Programa de Apoio ao Novo Ensino Médio; 2) Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral (EMTI); 3) Acordo de Empréstimo nº 8812-BR e 8813-BR; 4) Programa Itinerários Formativos; 5) Estudo Técnico do Novo Ensino Médio e 6) Caderno Técnico Resultado da Análise dos Planos de Implementação do Programa de Fomento às Escolas de Ensino Médio de Tempo Integral.

 

Nas ações elencadas, não se visualiza previsão de aporte financeiro público para implementação do Novo Ensino Médio, para além do que é garantido constitucionalmente (CF, Art. 212). O MEC parece ancorar-se em empréstimo internacional com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para materializar a política. O acordo de U$ 250 milhões firmado em 2018 direciona o investimento para dois “componentes”: US$ 221 milhões para o apoio à implementação dos novos currículos e do ensino médio de tempo integral; e US$ 29 milhões para fortalecer a capacidade técnica do MEC e das Secretarias Estaduais da Educação “para assegurar a correta implementação da Reforma do Ensino Médio”.

 

Fornari e Deitos (2021) chamam atenção para a possibilidade que o acordo com o BID oferece para que o MEC, assim como as Secretarias Estaduais de Educação, firme acordos com o setor privado para assessorar e implementar o currículo e para organizar os itinerários formativos, consideramos ainda que abre portas para a compra de “pacotes” para oferta de ensino profissionalizante, presencial ou na modalidade à distância, sendo este o 5º itinerário formativo previsto na Lei 13.415/2017.

 

O MEC também distribui recurso via Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) para o conjunto de instituições escolares que participam do “projeto piloto” do Ensino Médio de Tempo Integral (EMTI), etapa inicial para implementação do Novo Ensino Médio (Portarias MEC nº 1.023/2018 e 1.024/2018), com valor per capita de R$ 170,00 por aluno matriculado, estipulado em 2018, mais um montante fixo de R$ 20.000,00 (Resolução FNDE nº 21/2018). O site do MEC informa que 4.020 escolas receberam recursos do PDDE nos anos de 2020 e 2021, totalizando 350 milhões de reais.

 

Os repasses “adicionais” ou específicos têm prazo determinado, ou seja, são previstos para este processo inicial de implementação do Novo Ensino Médio, priorizando a extensão do tempo escolar, não sendo, portanto, incorporados como política de financiamento permanente, fator que pode inviabilizar o funcionamento das escolas de Ensino Médio que aderiram à extensão da jornada e de aquelas que têm o Novo Ensino Médio para implementar. A origem da fonte de recursos para o PDDE do Ensino Médio não é explicitada na página, exigindo mapeamento mais aprofundado com vistas a averiguar se os montantes vieram do acordo com o BID, que sempre exige contrapartidas por parte do devedor, ou de recursos próprios do governo federal.

 

Os montantes provisionados para implementação do Novo Ensino Médio, no acordo firmado com o BID e na distribuição via PDDE, concentram-se na extensão da jornada e no apoio aos novos currículos, cuja grande “novidade” está na “flexibilização” trazida pelos itinerários formativos que, de acordo com a lei, devem ser ofertados por meio de diferentes arranjos curriculares, “conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino”.

 

Disponibilizar diferentes arranjos curriculares para o conjunto das/os estudantes do Ensino Médio é um desafio imenso. A “variedade” da oferta, seu espalhamento por todos os estados do Brasil e sua ampliação exigem recursos materiais, profissionais e infra estruturais que não foram contemplados pela lei da reforma. Um dos caminhos preferidos dos gestores públicos é buscar “ajuda” no setor privado, como no caso do governo de São Paulo com o Programa Novotec.

O Novotec é um Programa de Qualificação Profissional e Habilitação Técnica, criado via Decreto pelo então governador João Dória, em 9 de setembro de 2020 (Decreto nº 65.176), voltado aos jovens que tenham 14 anos completos, que estejam matriculados no Ensino Médio da rede pública de ensino ou que tenham concluído esta etapa na rede pública há no máximo dois anos (SÃO PAULO, 2020). A coordenação e fiscalização do Programa está a cargo da Secretaria de Desenvolvimento Econômico, que deve se articular com a Secretaria de Educação para formulação de cursos, de conteúdo geral e específico, em formato presencial ou a distância, respeitando o que dispõe a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) 9394/1996. (SÃO PAULO, 2020).

 

Na página do Novotec, ele é apresentado como o 5º itinerário de formação técnica e profissional das escolas estaduais do estado de São Paulo e das Escolas Técnicas Estaduais Centro Paula Souza (ETECs) , ofertado em três modalidades: Novotec Integrado (cursos técnicos integrados ao Ensino Médio), Novotec Expresso (cursos de qualificação profissional) e Ejatec (cursos profissionalizantes para jovens e adultos). Os cursos de qualificação profissional, voltados para os jovens que cursam ou já concluíram o ensino médio, se realizam de forma presencial ou online e síncrono, com previsão de Bolsa Auxílio (Novotec Expresso), e na opção assíncrono (Novotec Virtual) sem previsão de bolsa.

 

Os cursos divulgados pela Secretaria Estadual de Educação de São Paulo (SEDUC) são: para o Novotec Expresso, 31 cursos, dentre eles Youtuber, Computação na Nuvem, Gestão de Pequenos Negócios, Horticultor Orgânico, Confeitaria, Panificação, Técnica de Vendas e outros; para o Novotec Virtual, identificamos oito opções: Banco de Dados, Desenvolvedor Mobile, Desenvolvimento WEB, Espanhol Básico, Finanças na Empresa, Gestão Administrativa, Logística de Programação e Planejamento Empresarial; no Novotec Integrado, as/os jovens podem escolher habilitação para Técnico em Desenvolvimento de Sistemas; Contabilidade; Informática para internet; Recursos Humanos, dentre outros.  

Para execução do Novotec, identificamos na página da Secretaria Estadual de Educação (SEDUC), e no levantamento realizado no Diário Oficial para os anos de 2020 a 2022, duas instituições privadas envolvidas, a Vetor Brasil e a Associação Sequencial de Ensino Superior, o que não exclui a participação de outras instituições não localizadas.

 

A Vetor Brasil, Organização da Sociedade Civil (OSC), selecionada pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico do estado de São Paulo após Edital de Chamamento Público, realizado entre 22/04/2021 e 21/05/2021, firmou Termo de Colaboração (nº 17/2021) para executar o Programa de Residência em Gestão Pública no âmbito do Programa Novotec. Já a Associação Sequencial de Ensino Superior ganhou pregão eletrônico em 2021 para ofertar 10 mil vagas do Novotec Expresso.

 

A Vetor Brasil tem “colaborado” com a implementação do Novotec nas 15 diretorias regionais de São Paulo. Pelo Plano de Trabalho, anexo ao Termo de Colaboração, sua ação tem-se dado na seleção e formação de “profissionais de alto potencial [...]”, que são incorporados à equipe de servidores públicos na condição de estagiários de pós-graduação para “contribuir de forma transformadora para aumentar a capacidade institucional e técnica das Diretorias Regionais de Ensino, formando uma grande força tarefa para implementação do Novotec no estado de São Paulo” (SÃO PAULO, 2021, p. 4-5).

 

Os candidatos estão na condição de “estagiário de pós-graduação”, pois a seleção lhes garante uma pós-graduação lato sensu com 15 meses de duração (420 horas de formação), com conteúdo sobre direito público administrativo, gestão de pessoas no setor público, “conteúdos específicos sobre o Novotec, que envolvam legislação da educação profissional, até o desenho da matriz de responsabilidades dos atores envolvidos no programa” (SÃO PAULO, 2021, p. 5). Há previsão de bolsa auxílio de quatro mil reais mensais para cada residente. O total de repasse de recursos previstos no Termo de Colaboração, incluindo a compra do curso de pós-graduação e as bolsas, corresponde ao valor de R$ 2.480.857,00 (valores nominais), com prazo para execução de 18 meses.  

O Plano de Trabalho apresentado pela Vetor Brasil sugere que os residentes serão multiplicadores do Novotec, ou seja, formados para formar outros, e que a força de trabalho dos selecionados poderá ser utilizada pela Secretaria de Educação, tanto para gerir o Novotec quanto para operacionalizá-lo, o que pode se dar, na condição de “tutores”, na modalidade EaD para o Novotec Virtual, que ocorre de forma assíncrona. A Associação Sequencial de Ensino Superior, de direito privado, oferta cursos técnicos profissionalizantes nas cidades da Região Metropolitana de São Paulo. Essa entidade arrematou o pregão eletrônico no valor de R$ 7.929.840,00 (valores nominais) somando-se os dois contratos localizados (nº 11/2021 e 26/2021).

 

Os contratos têm prazo para execução de 12 meses, prorrogados recentemente (set./2022) por mais três, garantindo que a oferta chegue até dezembro de 2022. A fonte para pagamento dos contratos provém do tesouro estadual, provisionados para os exercícios financeiros dos anos de 2021 e 2022. Parecer exarado pelo Conselho Estadual de Educação de São Paulo (Parecer nº 45/2021), com relatoria da conselheira Katia Cristina Stocco Smole, consta argumentação favorável à contratação de instituições privadas para oferta dos itinerários formativos integrados, como no formato do Novotec Integrado, em apoio à expansão da oferta do ensino técnico profissional estadual, atendidas as recomendações descritas no parecer. No entanto, o Novotec Expresso, “vendido” para ser ofertado pela Associação Sequencial, não é objeto de apreciação no parecer. O Novotec em São Paulo permite apontamentos iniciais importantes sobre a política do Novo Ensino Médio brasileiro tensionados a seguir.

Para não concluir...

A educação e a formação para o mundo do trabalho é tema historicamente presente no debate brasileiro nessa área. A dualidade entre ensino médio propedêutico (preparatório) e ensino médio profissionalizante é parte da busca pela identidade dessa etapa de escolaridade e das disputas históricas em torno do Ensino Médio.

A Reforma de 2017 insere, fantasiosamente, o elemento da “escolha” da/do jovem na construção de sua trajetória formativa por meio dos itinerários, escolha limitada pela capacidade que os sistemas públicos de ensino têm de disponibilizar os cursos, pela classe social a qual a/o jovem pertence, pela localidade onde reside (que pode obstaculizar a mobilidade para a escola que oferta o curso que deseja realizar), entre outros fatores. A pulverização de cursos pelo estado de São Paulo, nos seus mais variados formatos, presenciais ou à distância, de qualificação ou de habilitação técnica, parece ser a tônica da oferta do Novo Ensino Médio, tônica que conta com braços privados, de qualidade duvidosa, que podem ocorrer por meio de “tutores”, como no caso do formato virtual. Além disso, a lista de cursos ofertados tem como foco Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática (Science, Technology, Egineering and Mathematics - STEM), expulsando as humanidades do currículo.

 

A oferta ganha capilaridade no estado de São Paulo com a atuação do setor privado na oferta do Novotec Expresso, com volume considerável de recurso público (que somam mais de 10 milhões de reais), quando consideramos as duas instituições privadas envolvidas na execução do Programa, a Vetor Brasil e a Associação Sequencial, o que não exclui a existência de outras instituições que estejam executando o Novotec e recebendo recurso do Estado.

 

Colocar 10.000 vagas no pregão eletrônico, como fez o governo de São Paulo, é transformar a receita do estado em lucro privado, mercantilizando a educação. O aprofundamento da privatização a partir da Reforma do Ensino Médio se materializa pela transferência, ou melhor, pela “venda” da execução dos itinerários técnico profissionalizantes às instituições privadas, que se valem do dinheiro público para auferir maiores lucros. Outro ponto relevante está na seleção dos “profissionais” para atuarem nas diretorias regionais de ensino, realizada pela Vetor Brasil. De acordo com Venco e Sousa (2021), tal situação esfacela as carreiras do Estad'o, coloca em risco a função pública do ensino (para a qual os servidores públicos são a “alma” da concretização dos direitos da população, os que operam a política pública), deixando nas mãos de pessoas sem vínculos estáveis e com prazo determinado para atuarem em Programas específicos. Em síntese, o que evidencia o quanto o direito à educação está em risco.

PARA SABER MAIS

FORNARI, D.; DEITOS, R. A. O Banco Mundial e a reforma do Ensino Médio no governo Temer: Uma análise das orientações e do financiamento externo. Trabalho Necessário, v. 19, n. 39, mai.-ago. 2021. Disponível em: https://periodicos.uff.br/trabalhonecessario/article/view/47181 - Acesso em: 25 de set. 2022

RIKOWSKI, Glenn. Privatização em educação e formas de mercadoria. Retratos da Escola, v. 11, n. 21, jul.-dez., 2017. Disponível em: http//www.esforce.org.br – Acesso em 01 de out. de 2022.

VENCO, S.; SOUSA, F. O crepúsculo da função pública: distopia ou realidade? Educación, Política y Sociedade, 2021. Disponível em: https://revistas.uam.es/reps/article/view/reps2021_6_1_006 - Acesso em 10 de out. de 2022.

AS AUTORAS

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Cassia Domiciano é doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Professora Adjunta da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integra o Grupo de Estudos e Pesquisas em Política Educacional (Greppe-Unicamp) e o Núcleo de Políticas Educacionais (Nupe-UFPR). Membro da Rede Latino-Americana e Africana de Pesquisadores em Privatização da Educação (Relaappe). cassia.domiciano@ufpr.br 

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Theresa Adrião é doutora em Educação pela Faculdade de Educação Da Universidade de São Paulo (USP). Professora da Faculdade de Educação da Unicamp. Líder do Greppe e coordenadora da Rede de Pesquisadores Relaappe. Bolsa de Produtividade em Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico Desenvolvimento (CNPq). . theadriao@gmail.com 

COMO CITAR ESSE TEXTO

DOMINICANO, Cassia; ADRIÃO, Theresa. Financiamento do Novo Ensino Médio: o setor privado pega carona. Coletiva, Recife, n. 31 Coletiva. set.out.nov.dez. 2022.  Disponível em <https://www.coletiva.org/dossie-reforma-do-ensino-medio-n31-artigo-financiamento-do-novo-ensino-medio-cassia-e-theresa>. ISSN 2179-1287.

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