A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para a educação básica foi aprovada, depois de um longo processo de elaboração, em dois momentos. O primeiro ocorreu em 2017 e teve por foco as etapas da educação infantil e do ensino fundamental. No segundo, em 2018, foi promulgada a Base para o ensino médio, produzida de forma acelerada e com pouco debate público, resultando em um documento muito menos detalhado do que os das demais etapas. A BNCC do ensino médio está organizada em 4 grandes áreas: Linguagens e suas tecnologias; Matemática e suas tecnologias; Ciências da Natureza e suas tecnologias; e Ciências Humanas e suas tecnologias. Não há indicativos de que tal organização por áreas seja uma aposta em um ensino mais integrado e menos disciplinar.
No documento, cada área é apresentada por um conjunto de competências a serem trabalhadas, cada uma delas desdobrada em habilidades. No caso das duas primeiras áreas, optou-se por um detalhamento dos campos disciplinares língua portuguesa e matemática.
Nesse sentido, a BNCC do ensino médio é muito mais genérica se comparada a das demais etapas, o que é bastante positivo. Ainda que esse menor detalhamento se deva à necessidade de aprová-la de afogadilho, ele abre espaço para a manutenção da tarefa de planejamento curricular e didático; sob a responsabilidade de professores e das escolas.
Em linhas gerais, no entanto, o formato dos documentos para as etapas dos ensinos fundamental e médio é muito semelhante. Ambos utilizam a linguagem das competências subdivididas em habilidades, aspecto que evidencia a tentativa de vincular a ideia de um currículo nacional ao que a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) vem propondo ao longo dos anos 2000. Esta organização multilateral é a responsável por uma avaliação internacional que visa comparar os países no que tange à qualidade de sua educação – Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) – e tem se notabilizado pela governança da educação pública por intermédio de uma propaganda muito bem conduzida da noção de competência. Com isso, muitos países ao redor do mundo têm conduzido reformas curriculares – impondo currículos nacionais – alicerçadas na referida noção, mesmo que, por vezes, seu significado seja pouco claro.
No caso da BNCC, as versões iniciais do documento não traziam esta marca, sendo nucleadas em torno da ideia de direitos de aprendizagem. Na versão finalmente aprovada para o ensino fundamental, os direitos se transformaram em competências, formato que depois foi replicado para a etapa do ensino médio. Mesmo que as alterações substantivas não sejam tão grandes, a opção pela linguagem da competência, em detrimento da ideia de direitos, deixa mais explícita a vinculação da Base com os processos nacionais e internacionais de avaliação. É, portanto, uma mudança com grande impacto simbólico, que denota um direcionamento da política educacional.
Se, de um modo geral, a BNCC do ensino médio se resume a um conjunto de competências desdobradas em habilidades para cada uma das áreas, o que é afinal uma competência? Trata-se de uma pergunta de muito difícil resposta, porque seus sentidos variam nas diferentes tradições pedagógicas. Nos anos 1990, quando a noção voltou a ser mobilizada pelos currículos, ela remetia a um certo esgotamento das formas modernas de ler o mundo.
Por um lado, no mundo do trabalho, a especialização estaria sendo substituída pela capacidade de aprender e de se relacionar, competências que todo trabalhador precisaria desenvolver em um momento em que os mercados encolheram. Por outro, as disciplinas tradicionais, em torno das quais a escolarização se organizava, eram questionadas como forma de organização do conhecimento e pareciam insuficientes para atender às demandas contemporâneas. As competências poderiam, assim, funcionar como um organizador curricular que integraria campos disciplinares distintos ou mesmo que apontaria para habilidades sociais e emocionais a que, no geral, se dava pouca atenção na escola. Uma competência poderia mobilizar aspectos cognitivos e, ao mesmo tempo (ou não), emocionais ou sociais. Nesse sentido, provavelmente substituiriam as disciplinas como organizadores curriculares, o que não tem ocorrido na maior parte dos currículos por competências, como a BNCC.
Do ponto de vista do processo ensino-aprendizagem, também não há um único sentido para competências. Ainda que as visões comportamentais de competência tendam a ser mais fortes, há outras tradições em jogo. Há alguns anos, autores da tradição francesa apontavam para abordagens mais voltadas aos processos de aprendizagem que se davam na interface entre o sujeito e o mundo. Autores como Perrenoud e Piaget, por exemplo, definiam competência como o acionamento de esquemas para fazer frente a um dado problema, permitindo que o sujeito encontrasse saídas para situações absolutamente novas. Não se podia definir de antemão as situações nas quais os sujeitos demonstrariam sua competência.
Enquanto isso, nas hostes comportamentais, as competências surgiam como um desdobramento de uma tecnologia que tinha por meta a gestão de resultados do processo educacional. Nesse sentido, as competências se apresentavam como uma espécie de versão modernizada da noção de objetivos, que dominou a teoria sistêmica de currículos desde as primeiras décadas do século passado. Diferentemente dos objetivos, no entanto, as competências eram definidas como comportamentos complexos necessários para um mundo em que os modos de produção em série – e a especialização que demandavam – perdiam espaço. Nesse sentido, também as competências, mesmo comportamentais, deveriam dizer respeito não apenas ao aprendizado cognitivo, mas a aspectos emocionais e sociais .Esse caráter comportamental era reforçado com a divisão das competências em habilidades, entendidas como comportamentos menores que levariam à competência.
No caso da BNCC, a concepção comportamental de competência é assumida claramente, o que a vincula diretamente ao que é propugnado pela OCDE. Tal opção explicita os vínculos entre a Base e o intuito de sedimentar o sistema de avaliação centralizada no desempenho dos estudantes como política pública educacional.
No caso específico do ensino médio, possivelmente tal intuito só se torna factível para as disciplinas de língua portuguesa e matemática, na medida em que, para as demais áreas, o documento não chega a apresentar habilidades suficientemente definidas a ponto de poderem ser utilizadas para nortear a avaliação. O que poderia ser positivo, no sentido da produção do currículo no cotidiano das escolas, arrisca ser também indicador de um menor compromisso político com os demais campos disciplinares.
Tal hipótese ganha relevo quando se observa o conjunto de políticas públicas para esta etapa do ensino, que se seguiu ao golpe que derrubou a presidenta eleita Dilma Rousseff. Por um lado, grupos conservadores intensificaram a pressão para a modificação da BNCC, reforçando a visão distorcida de um país culturalmente homogêneo e expurgando temas como gênero e sexualidade. Por outro, o Governo Federal propôs alterações substantivas na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) no que tange ao ensino médio, criando o Novo Ensino Médio (NEM).
Sob o argumento do academicismo e da falta de identidade da etapa, a reformulação propôs a criação de itinerários formativos. Tais itinerários guardam simetria com as 4 áreas em que se organiza a BNCC, com o acréscimo de um quinto itinerário, ligado à formação técnica e profissional, o que tornaria menos problemática a integração entre NEM e BNCC.
Em linhas gerais, o currículo passou a ser constituído por duas partes: uma geral, para todos, a BNCC, e outra composta por itinerários à escolha dos estudantes, dentre os oferecidos pelas escolas. Além disso, também houve a redução do tempo destinado à parte comum em relação ao praticado até então. Assim, o texto da BNCC do Ensino Médio incorporou os itinerários formativos do NEM, mas a falta de clareza nos itinerários e a ausência de condições efetivas para sua implantação têm trazido problemas reportados em muitas redes de ensino.
É preciso lembrar que o ensino médio é competência dos estados, com exceção de algumas escolas mantidas no âmbito federal. Dessa forma, são as redes estaduais as responsáveis por levar a cabo as alterações aprovadas na LDBEN. Em linhas gerais, a maioria delas tem concentrado a base comum nos dois primeiros anos, liberando espaço na grade curricular para os itinerários mais ao final do curso. Permanecem, no entanto, as dúvidas sobre os conteúdos a serem trabalhados em cada área no núcleo comum e sua relação com os itinerários. Segundo a proposta de itinerários formativos, eles devem ser compostos de atividades de aprofundamento, eletivas e projeto de vida. A partir disso, surgem diversas questões: Os itinerários nomeados a partir das áreas da BNCC se constituiriam em aprofundamentos dos mesmos blocos de conteúdos? Haveria outros blocos a serem trabalhados nas eletivas? O que é "projeto de vida" e como se relaciona aos itinerários? A ausência dessas respostas na legislação federal põe em questão a própria ideia de uma base comum nacional para o currículo. Se a literatura da área de currículo tem valorizado a instituição dos currículos nas escolas, isso se dá num enquadramento mínimo de objetivos da escolarização e carga horária que garanta a possibilidade de certificação.
No caso do NEM, o que se tem observado na experiência concreta das redes é que as escolas foram criando itinerários a partir das proposições de seus docentes. Nesse sentido, têm sido poucos os itinerários oferecidos, na medida em que eles dependem da existência de carga horária de docentes qualificados nas áreas. Uma grande quantidade das redes têm optado pelo oferecimento dos itinerários a distância, sem preparação efetiva para isso e, portanto, tem se valido de material de baixa qualidade. Os protestos dos estudantes têm lançado luz sobre as muitas dificuldades operacionais na implementação do NEM.
Não bastasse a desarticulação entre a Base e as alterações da LDBEN, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio criaram quatro eixos estruturantes, detalhados em Portaria do MEC, exarada em 2018, já no governo Bolsonaro. O documento propõe que os eixos estruturantes funcionem como uma espécie de organizador dos itinerários formativos. São eles: investigação científica; processos criativos; mediação e intervenção sociocultural; e empreendedorismo.
Para tentar evidenciar as relações entre tais eixos e os itinerários, o documento lista um conjunto de habilidades específicas dos itinerários formativos, associando-as aos eixos estruturantes. Em relação aos dois primeiros eixos, as relações são possivelmente mais facilmente estabelecidas, na medida em que tratam de aspectos tradicionalmente valorizados no ensino médio. Os demais trazem inovações, focando na relação entre escola e sociedade.
Desde a aprovação da Portaria, em 2018, o eixo empreendedorismo tem ganhado destaque nas discussões sobre a implementação do NEM, em especial em articulação com o componente curricular "projeto de vida", que deve perpassar, de forma transversal, os diferentes itinerários formativos. Em conjunto, eles indicam a força da razão neoliberal no NEM, na medida em que apontam para a importância de a escola desenvolver projetos (de vida) individuais, que propiciem aos alunos sucesso e competitividade. Tal sucesso, no entanto, não está relacionado à empregabilidade, antiga promessa da escolarização, mas à felicidade e à recompensa psíquica e socioemocional.
O espírito empreendedor fomentado pelo NEM está ligado ao otimismo, à persistência, tolerância e resiliência, habilidades para seguir vivendo em um contexto extremamente desigual. Com isso, intensifica-se a estratificação social, na medida em que as políticas públicas no Brasil, embora nominalmente para todos, são voltadas aos grupos sociais menos favorecidos.
Como está sobejamente discutido na literatura de currículo, currículos centralizados - e reformas educativas com esse foco - não definem o que acontece nas escolas, ainda que sejam documentos normativos poderosos. Deste modo, a luta por significação segue acontecendo diariamente e, por isso, o exercício de crítica é necessário e ainda mais fundamental em um momento político de acirramento da racionalidade neoliberal conservadora. O currículo é uma ferramenta importante para ampliar as possibilidades múltiplas de existir no mundo, ele é parte da luta política levada a cabo, entre outros, por professores nas diferentes escolas, por profissionais comprometidos com as demandas da diferença e por movimentos sociais.
PARA SABER MAIS
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
A AUTORA
Elizabeth Macedo é professora titular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bolsista do CNPq e da FAPERJ. Pesquisadora na área de currículo com foco em estudos sobre políticas e teoria curriculares. Seus estudos buscam entender como discursos curriculares -- políticas públicas e acadêmicos -- operam para produzir inteligibilidade, a condição para qualquer reconhecimento assim como para distinções ontológicas entre os sujeitos que levam a racismos, sexismos, LGBTQIA+fobia.
COMO CITAR ESSE TEXTO
MACEDO, Elizabeth. BNCC e a Reforma do Ensino Médio. Coletiva, Recife, n. 31 Coletiva. set.out.nov.dez. 2022. Disponível em <https://www.coletiva.org/dossie-reforma-do-ensino-medio-n31-artigo-bncc-ea-reforma-do-ensino-medio-por-elizabeth-macedo>. ISSN 2179-1287.
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