A (In)Consciência Racial na Psicologia
Thiago Laurentino
A Psicologia é um campo científico e uma profissão relativamente recente. Um evento considerado como marco da sua criação enquanto ciência, embora conhecimentos sobre Psicologia já fossem construídos anteriormente, muito atrelados aos conhecimentos populares, à filosofia e às ciências médicas, foi a criação do laboratório de Psicologia Experimental, por Wilhelm Wundt, em 1879, na Alemanha. No Brasil, apenas em 1962 foi regulamentada a profissão de psicóloga(o) e os cursos de graduação em Psicologia. Temos então, um campo científico definido há cerca de 140 anos e uma profissão regulamentada no país há 58 anos.
Há uma ampla discussão sobre qual seria, ou quais seriam os objetos de estudo da Psicologia. De maneira simplificada, considera-se como a área de conhecimento científico que investiga os comportamentos e os processos mentais, de indivíduos e grupos. Longe de fazer uma apresentação aprofundada a respeito da história e da definição de objeto de estudo da Psicologia, a intenção da apresentação dessas informações é fomentar uma discussão sobre o lugar das questões raciais na ciência e na profissão psicológica, principalmente no Brasil.
No livro Racismo Estrutural, Silvio Almeida explica que o racismo é uma forma de discriminação que tem como fundamento a raça, se manifestando em práticas conscientes e inconscientes, provocando desvantagens e privilégios para as pessoas, a depender do grupo racial que façam parte. Embora o racismo seja um fato concreto, constatado nas relações e em números que evidenciam as desigualdades entre a população branca e as populações não-brancas, essa concepção de racismo apresenta elementos de processos mentais e comportamentais, de indivíduos, grupos e da organização social. Dessa forma, a Psicologia teria sim muito a contribuir na compreensão das relações raciais em nossa sociedade.
Embora não seja difícil tal constatação, na prática não é tão simples verificar os sentidos das contribuições da Psicologia no que diz respeito às relações raciais. Se por um lado, mais recentemente, é possível verificar estudos e posicionamentos a respeito do racismo, que o apontam como um elemento danoso às sociedades, por outro lado, verificamos no decorrer da história da Psicologia uma omissão na produção de conhecimento sobre relações raciais, ou até mesmo a produção de conhecimento que naturaliza, justifica ou nega as desigualdades e desvantagens que as populações não brancas vivenciam.
Sobre os movimentos mais recentes da Psicologia brasileira, no combate às desigualdades, preconceito e discriminação racial, podemos destacar alguns eventos que certamente não contemplam totalmente as lutas travadas por tantas(os) profissionais psicólogas(os), ativistas e pesquisadoras(es), mas que precisam ser mencionados, sem a intenção de invisibilizar tantos outros eventos e personagens importantes. Esses eventos são mencionados no texto, dos psicólogos Hildelberto Martis e Lia Schucman: 1) a publicação em 1983 do livro Torna-se Negro – as vicissitudes da identidade do negro brasileiro em ascensão social, da psiquiatra e psicanalista Neusa Santos Souza; 2) a criação na década de 90, no estado de São Paulo, do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) e do Instituto Amma Psiquê e Negritude; 3) a publicação em 2002 do livro, organizado pelas psicólogas Iray Carone e Maria Aparecida Silva Bento; 4) a publicação da do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que estabelece normas para atuação de psicólogas(os) em relação ao preconceito e à discriminação racial; e 5) a criação em 2010 da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (Anpsinep).
Tais eventos precisam ser evidenciados e comemorados, pois representam avanços em nosso campo de investigação científica e atuação profissional, mas precisam ser contrastados com a realidade da formação e atuação em Psicologia em tempos recentes e nos tempos atuais. Para tanto, gostaria de mencionar eventos da minha experiência, enquanto psicólogo negro, que ingressou na graduação em Psicologia em 2007 e concluiu o curso em 2012 e que atua profissionalmente na área, somente há pouco mais de 3 anos, justamente pela dificuldade de inserção das pessoas negras, em trabalhos com vínculos formais.
Durante a graduação, que tem duração mínima de 5 anos, não cursei nenhuma disciplina nem tive nenhum conteúdo de disciplina abordando a questão racial no mundo ou no Brasil. Também não tive acesso e não fui apresentado às obras de autoras(es) negras(os), as quais discutem sobre o racismo na Psicologia, como a Neusa Santos Souza, o Frantz Fanon ou a Aparecida Bento. Também não fui comunicado sobre o movimento da Black Psychology que já era expressivo nos Estados Unidos desde a década de 60 e uma abordagem psicológica desenvolvida numa perspectiva afrocêntrica. Todas essas descobertas aconteceram apenas a partir do ano de 2017, quando passei a ter contato com o Movimento Negro e com as discussões teóricas das ciências sociais sobre racismo. Então passei a buscar na Psicologia as produções a respeito das relações raciais. Descobri muitos autores e autoras com textos disponíveis em português, mas também muitas obras, principalmente estadunidenses, que nunca foram traduzidas para o português, como as dos autores Na’im Akbar e Wade Nobles, por exemplo.
Desde então tenho sabido de notícias a respeito da inclusão de conteúdos sobre relações raciais, na formação em Psicologia. Algumas(ns) professoras(es), geralmente negras(os), estão propondo a inclusão de algum componente curricular que discuta raça na formação em nível de graduação e pós graduação, ou abordam a temática ao ministrarem componentes curriculares de áreas específicas. Também tem sido ampliado o número de pesquisas a respeito de racismo, relações raciais, negritude, branquitude, etc., desenvolvidas na área da Psicologia.
É inegável que a ampliação da discussão da questão racial no meio acadêmico dá-se principalmente pelas ações afirmativas que possibilitaram o acesso das populações negra e indígenas na Universidade. São notícias que animam, mas ao mesmo tempo, não é raro perceber profissionais que não possuem nenhuma aproximação com as temáticas raciais e que, apesar de afirmarem a importância da superação do racismo, nunca se ocuparam em estudar autoras(es) que dissertem sobre ele. E não que a aproximação com a temática seja suficiente para o desenvolvimento de uma postura profissional e de investigação científica antirracista, mas certamente essa aproximação é o primeiro passo necessário, tendo em vista que as expressões do racismo tendem a ser naturalizadas em nossa sociedade.
Quando pensamos as possibilidades de inserção das(os) profissionais psicólogas(os) nos diversos campos de atuação, conseguimos vislumbrar o potencial da ciência e da profissão na luta de combate ao racismo e de construção de uma sociedade mais justa. Psicólogas(os) estão inseridas nas equipes de saúde, na educação, na política de assistência social, nas clínicas, nas organizações, no sistema judiciário, no esporte e em tantos outros campos que compõem nossa sociedade. Nossa profissão envolve, sobretudo, o ato de apreciar o funcionamento de indivíduos, grupos e instituições, fazendo reflexões, questionamentos e indagações, a partir das nossas perspectivas teóricas, técnicas, éticas e políticas. Temos tudo a ver com o enfrentamento do racismo, do machismo, do sexismo, do capacitismo, da LGBTfobia.
O Código de Ética da(o) Profissional Psicóloga(o) aponta, dentre os seus princípios fundamentais, que o nosso trabalho contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de discriminação, violência, crueldade e opressão e que atuaremos com responsabilidade, por meio do contínuo aprimoramento profissional. Nesse sentido é fundamental que compreendamos o racismo como elemento estruturador da nossa sociedade, que nos desapeguemos dos universalismos que muitas das nossas teorias nos indicam e que conheçamos especificidades dos grupos populacionais com os quais trabalhamos. Uma atuação profissional antirracista na Psicologia depende do processo de conscientização racial das(os) psicólogas(os), sejam negras(os), indígenas, orientais ou brancas(os). Tal consciência pode ser adquirida a partir do diálogo e do estudo.
PARA SABER MAIS
ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Pólen, 2019.
CFP – Conselho Federal de Psicologia. Código de Ética Profissional do Psicólogo. Brasília: CFP, 2005.
SCHUCMAN, Lia Vainer; MARTINS, Hildeberto Vieira. A Psicologia e o Discurso Racial Sobre o Negro: do objeto da ciência ao sujeito político. Psicologia: ciência e profissão, Brasília, V. 37, n. especial, p. 172-185, 2017.
O AUTOR
Thiago da Silva Laurentino é psicólogo da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. É graduado em Psicologia (2012) pelo Centro Universitário do Rio Grande do Norte – UNIRN. Possui Especialização em Gestão Pública (2014) pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Norte – IFRN. É Mestre em Gestão Pública (2017) pela UFRN e Doutorando em Psicologia também na UFRN. Atualmente tem pesquisado sobre Racismo Institucional nas Políticas Sociais.
COMO CITAR ESSE TEXTO
LAURENTINO, Thiago da Silva. A (In)consciência racial na Psicologia. Coletiva, Recife, n. 28, Coletiva. mai.jun.jul.ago 2020. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-racismo-n28-artigo-inconsciencia-racial-na-psicologia. ISSN 2179-1287.