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Editorial

Dossiê Povos e comunidades tradicionais

A categoria política Povos e Comunidades Tradicionais emergiu no cenário político do Brasil na última década do século XX, a partir das lutas desses grupos para manter seus modos de existência ligados à terra e a territórios e paisagens específicas, compostas por vidas de humanos, plantas, animais, rios, montanhas e outros entes. Essas formas próprias de existir, que se afastam da maneira proprietária, homogeneizadora e destrutiva que caracteriza as formas modernas de produzir seus territórios e exercer seu poder, falam-nos de caminhos, há muito tempo em curso, para a produção de novos mundos, nas ruínas do capitalismo.

 

Nos últimos anos, o Brasil passou por um período em que as políticas públicas, no nível federal, foram direcionadas para o ecocídio e o genocídio de todos os que “não importam”. Assim, a derrota eleitoral do projeto da extrema-direita nas eleições presidenciais de 2022 representou a esperança de retomada da construção de um projeto popular e solidário para o Brasil. Tal projeto é marcado pelo reconhecimento da diversidade que tece nossa história, contra todo projeto colonial de homogeneizar paisagens, gentes e histórias. No entanto, continua muito viva, nos projetos de país de diferentes espectros políticos, a ideia de que o “desenvolvimento” e o “progresso” podem e devem se dar por meio da contaminação das águas e solos, da extinção de espécies e do desenraizamento de pessoas e suas relações ancestrais e ecológicas.

Neste cenário de refazimento de esperanças e de novos e velhos perigos, os Povos e Comunidades Tradicionais se destacam como sujeitos políticos e protagonistas de alternativas e táticas de enfrentamento ao avanço do capital, que agora não apenas produz, mas também se alimenta dos desastres ambientais e humanos que resultam de sua expansão.

 

No momento que este dossiê é finalizado, milhares de pessoas e comunidades vivem uma verdadeira experiência de “fim de mundo” provocada pelas chuvas torrenciais que devastaram o Rio Grande do Sul no primeiro semestre de 2024. Frente a esta dolorosa expressão da crise climática, os Povos e Comunidades Tradicionais de todo o país, por meio de suas mais diversas formas de organização e mobilização, anunciam e reafirmam a certeza de “outros mundos por vir”. 

 

É em resposta a este chamado que nosso dossiê pretende reunir olhares e sentidos mobilizados por essa categoria/condição cosmopolítica, que protagonizou as lutas socioambientais no Brasil nas últimas três décadas.

 

O dossiê traz sete artigos de colaboradores de diferentes regiões geográficas e lugares de fala. No texto Povos e comunidades tradicionais no Brasil, Aderval Costa Filho explica o contexto legal e socioantropológico que envolve o reconhecimento das comunidades tradicionais como sujeitos de direito. De forma complementar, o artigo Territorialidades em movimento, de Emmanuel Duarte Almada e Fernando Soares Gomes, chama a atenção para os tensionamentos dos limites desta categoria política, por meio de dois casos em Minas Gerais. O primeiro é o da Comunidade da Venda, em que a reivindicação de tradicionalidade vem junto com a luta pela Reforma Agrária; o outro é o dos carroceiros em Belo Horizonte, que  reivindicam, a partir do direito de permanecer em atividade utilizando carroças de tração animal, um direito maior, que é o da existência de uma vida multiespécie de características rurais, nos interstícios da metrópole.

 

Trazemos também textos que apresentam ao leitor modos de vida de povos e comunidades específicos, com suas particularidades e as questões que suscitam. Neste sentido, o artigo Alguns apontamentos sobre povos ciganos no contexto brasileiro,  da antropóloga Juliana Miranda Soares Campos, trata dos modos de existir dos povos ciganos, especialmente os ciganos Calon, em Minas Gerais. Já no texto Conceição: uma comunidade pesqueira e quilombola - circulando na academia e outros espaços, a comunidade quilombola pesqueira de Conceição de Salinas, às margens da Baía de Todos os Santos, no estado da Bahia, nos é apresentada por duas de suas lideranças, André Santos e Elionice Sacramento. Eles, além de apresentar as especificidades de seu território e a diversidade dos territórios tradicionais pesqueiros e suas formas de luta, refletem sobre como essa luta política pode ocupar os espaços acadêmicos.

 

Cortar o cosmo, multiplicar o axé é o nome do artigo de Pai Elias, Maurício Santos e Thiago Hoshino. Nele, os autores apresentam as formas pelas quais são realizados os cortes (sacrifícios animais) nas religiões de matriz africana, em suas relações cosmológicas que envolvem os humanos e animais. Já no texto O poder das folhas: cura, cuidado e manejo sustentável de plantas medicinais por raizeiras do cerrado brasileiro, Sabrina D’Almeida e Aparecida Arruda abordam a relação entre as plantas do cerrado nas atividades das mulheres raizeiras, envolvendo práticas de cuidado e respeito numa relação entre humanos e plantas. No caso do primeiro artigo, discute-se a importância das práticas de corte e a violência epistêmica do racismo religioso; enquanto no segundo artigo é apresentado o processo de patrimonialização do ofício das raizeiras e seus limites para salvaguardar tais conhecimentos e práticas, na medida em que o saber biomédico e as normas sanitárias não dão conta de compreender suas especificidades.

 

O último artigo O Encontro de Saberes dos povos tradicionais: um movimento de transformação do currículo das universidades brasileiras é de autoria dos antropólogos José Jorge de Carvalho e Letícia Vianna. Nele, o autor e a autora fazem um balanço das atividades do Encontro de Saberes, iniciativa surgida há 14 anos na Universidade de Brasília, que tem se disseminado por diversas universidades brasileiras. O Encontro de Saberes traz, de forma inédita, mestras e mestres de Povos e Comunidades Tradicionais como professoras e professores de disciplinas curriculares na graduação, em um exercício necessário de inclusão epistêmica no ensino superior.

 

Além do painel diverso, composto pelo conjunto de artigos apresentados acima, nosso dossiê traz ainda mais surpresas. Temos, neste número, dois Especiais produzidos cuidadosamente por nossa equipe. O primeiro deles nos presenteia com duas reportagens sobre o universo da Jurema Sagrada. Na primeira, nomeada de Jurema, uma religião afro-indígena, Maria Carolina Santos nos insere no universo múltiplo e complexo da Jurema como prática religiosa. Na outra reportagem, com o título A Invenção dos Reinos em terras de Jurema Sagrada: a força do catimbó, Marcela de Aquino mostra as incursões da Jurema Sagrada no mundo da arte contemporânea e nos museus, a partir da exposição A Invenção dos Reinos, da Oficina Brennand, e de elementos presentes no acervo do Museu do Homem do Nordeste, ambos localizados na cidade do Recife.

O segundo especial transpõe para o meio digital a exposição fotográfica Cultura marítima pesqueira de Pernambuco, que teve curadoria das pesquisadoras Rita de Cássia Araújo e Edneida Cavalcanti, da Fundação Joaquim Nabuco. Produzido originalmente como exposição de curta duração para o Museu do Homem do Nordeste, o Especial revisita imagens sobre a cultura da pesca artesanal, presentes no acervo da Fundaj, produzindo uma narrativa sobre essa atividade tradicional.

 

O dossiê traz ainda duas entrevistas, uma com Claudia de Pinho e outra com Adriana Lima, duas mulheres de comunidades tradicionais (pantaneira e caiçara, respectivamente) que, de maneiras diferentes, têm trabalhado na interface entre os direitos das comunidades tradicionais e as políticas públicas.

 

Para completar o dossiê, a seção Saiba Mais traz sugestões de filmes, livros, sites da internet e podcasts, para que você se aprofunde no universo dos Povos e Comunidades Tradicionais.

 

Boas leituras!

Pedro Silveira (Fundaj)

Emmanuel Duarte Almada (UEMG)

EXPEDIENTE

Edição temática: Pedro Silveira e Emmanuel Duarte Almada | Editores executivos do dossiê: Pedro Silveira e Emmanuel Duarte Almada | Coordenador editorial: Cristiano Borba | Apoio editorial: Letícia Barbosa, Marcela de Aquino, Maria Carolina Santos e Mylena de Paula | Revisão: Mylena de Paula | Capa: Livyan Araújo | Edição: Cristiano Borba | Entrevistas: Pedro Silveira e Emmanuel Duarte Almada | Seção Especial: Marcela de Aquino, Letícia Barbosa e Maria Carolina Santos | Artigos: Aderval Costa Filho; Emmanuel Duarte Almada e Fernando Soares Gomes; Juliana Miranda Soares Campos; André Santos e Elionice Sacramento; Pai Elias, Maurício Santos e Thiago Hoshino; Sabrina D’Almeida e Aparecida Arruda; José Jorge de Carvalho e Letícia Vianna.

APOIO
LABJOR/UNICAMP
REALIZAÇÃO
FUNDAÇÃO JOAQUIM NABUCO
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