Amurabi Oliveira
A escola tem sido uma das instituições modernas debatidas com mais afinco pelos cientistas sociais de modo geral e pelos sociólogos em particular, o que se deve a uma série de singularidades, o que inclui sua capacidade de contribuir para a manutenção ou mudança da ordem social.
No âmbito da Sociologia da Educação (SE), podemos afirmar que, na segunda metade do século XX, temos a inauguração de novas discussões acerca da escola, o que assentou, sobretudo, numa série de pesquisas realizadas em diversos países, especialmente os Estados Unidos, França e Inglaterra, que indicou a relação entre sucesso/fracasso escolar e a origem social dos alunos, como apontam os pesquisadores Maria Alice Nogueira e Jean-Claude Forquin em seus trabalhos.
Na esteira dessas discussões, os trabalhos de Baudelot e Establet, Bowels e Gintis, Althusser, Bourdieu e Passeron assumiram certa proeminência por destacar os complexos processos através dos quais a produção das desigualdades sociais se relaciona com os sistemas escolares, como afirma o professor Tomaz Tadeu da Silva, em seu livro “O que produz e o que reproduz em educação: ensaios de Sociologia da Educação” (1992).
Todavia, é relevante destacar que, apesar dos avanços trazidos por essas discussões, elas também sofreram duras críticas, especialmente por destacarem a reprodução das desigualdades sociais no âmbito escolar em detrimento de outros fenômenos sociais que também ocorrem na escola, o que inclui a possibilidade de essa instituição colaborar com a mudança social.
Trabalhos como “Produção da Escola/Produção da Sociedade” (1990), do antropólogo André Petitat, apontam nessa direção, apresentando uma crítica incisiva às chamadas “teorias da reprodução”. Do mesmo modo, o sociólogo Bernard Lahire, em seu livro “Sucesso escolar nos meios populares: as razões do improvável” (1995), apresenta a complexidade que envolve a produção das trajetórias escolares no âmbito familiar e individual. No Brasil, pesquisas como a de Maria Lígia Barbosa, “Desigualdade e Desempenho: uma introdução à sociologia da escola brasileira” (2009), indicam como o “efeito escola” e o “efeito professor” podem impactar os destinos escolares, demonstrando resultados que vão à contramão de certo “pessimismo sociológico”.
Novas pesquisas têm emergido, principalmente a partir de uma abordagem mais qualitativa, com destaque para as pesquisas etnográficas, e vêm apontando para a complexidade do sistema escolar, principalmente para a pluralidade de experiências que existe nas diversas escolas. Tais investigações não apenas têm possibilitado que enxerguemos para além da reprodução da condição de classe dos agentes implicados na escola, como também para outras questões relevantes para pensarmos as desigualdades, especialmente no que tangencia as diferenças, seja no que diz respeito ao gênero e à sexualidade, às questões étnico-raciais ou às religiosas.
Nesse texto, buscarei realizar, em diálogo com a Sociologia e Antropologia da Educação, bem como com a Sociologia e Antropologia da Religião, uma breve discussão sobre as possibilidades abertas pelo ensino das Ciências Sociais na escola e a questão do pluralismo religioso. Penso que se trata de uma discussão atual e pertinente, mas que ainda não foi devidamente explorada pela literatura que tem tratado do ensino dessas ciências.
RELIGIÃO, ESCOLA E ESPAÇO PÚBLICO
Na recente coletânea “Diferenças na Educação: outros aprendizados” (2014), os organizadores, na introdução, indicam as mudanças que ocorreram entre as duas últimas edições do curso de especialização em Gênero e Diversidade na Escola (GDE), da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), dentre elas, houve a introdução de um novo módulo voltado para a questão da religiosidade e a educação pública, tendo em vista que esta temática apareceu como algo relevante nas aulas do curso anterior, o que fora trazido principalmente pelos/as cursistas do GDE. Ao que me parece, tem ganhado mais visibilidade a questão da religiosidade no espaço público nos últimos anos, o que inclui a escola. Os docentes, que são aqueles que lidam diretamente com os dilemas e conflitos que surgem na sala de aula, parecem estar cada vez mais sensíveis a estas questões.
Não quero, com isso, defender uma visão otimista e simplista sobre a realidade escolar, afinal, em muitos casos, os docentes também são agentes que reproduzem preconceitos, como aponta a pesquisa de Stela Guedes Caputo, sobre a vivência das crianças candomblecistas no Rio de Janeiro. Porém, creio que há avanços inegáveis lastreados principalmente pelo conjunto de políticas educacionais voltadas para a questão da diversidade na escola, que tem sido elaborado nos últimos anos.
Em que pese todo o debate em torno da laicidade nos espaços públicos no Brasil, que tem ocupado a agenda de pesquisa de inúmeros cientistas sociais nos últimos anos, penso que a questão tem se complexificado quando pensamos a religião no espaço escolar, pois não se trata simplesmente de reduzir a questão a um apartamento entre religião e escola, mas sim compreender os diversos arranjos que têm se colocado no âmbito das transformações sociais, culturais e políticas pelas quais a sociedade brasileira tem passado nas últimas décadas.
Como nos indica o pesquisador Joanildo Burity, no artigo “Religião, política e cultura” (2008), “(…) não é possível conceber democracia sem pleno reconhecimento da pluralidade constitutiva do social”. Acredito que esta questão também se coloca para a escola hoje. Para além de uma separação entre a escola e a esfera religiosa, o desafio que se coloca para os docentes atualmente é, sobretudo, como lidar com a diversidade religiosa na escola.
Os últimos Censos têm apontado continuamente para um crescente dinamismo do campo religioso brasileiro, ainda que possamos questionar em que medida há, de fato, uma diversidade religiosa em nosso país ante ao predomínio do cristianismo, segundo os dados oficiais, como aponta o sociólogo Antonio Pierucci no texto “Ciências sociais e religião: A religião como ruptura” (2006). Esta dimensão certamente se coloca no âmbito das salas de aulas, que passam a contar cada vez mais com alunos que se autodeclaram evangélicos, espíritas, umbandistas, etc., e que passam a demandar o reconhecimento de suas identidades também nesse espaço.
É no bojo dessas questões que o Ensino de Ciências Sociais se coloca, tendo como desafio o acionamento das ferramentas teóricas e metodológicas de tais ciências para atuar em dois níveis: a) na discussão sobre a religiosidade nas sociedades humanas enquanto conteúdo a ser lecionado nas aulas de Sociologia; b) na busca pela ação de tais ferramentas sobre os dilemas que se apresentam na escola, nesse caso ultrapassando o escopo das aulas de Sociologia.
ENSINO DE SOCIOLOGIA E RELIGIÃO
Balanços realizados no âmbito das Ciências Sociais brasileiras apontam para a relevância do debate sobre a religião nesse campo, que se mostra como uma chave analítica relevante para pensarmos a própria nação. Podemos indicar, com isso, a existência de um bom acúmulo de literatura sobre religião no Brasil, tendo em vista que este tema tem sido relevante desde os precursores das ciências sociais brasileiras, possuindo como um dos marcos fundamentais o clássico trabalho de Nina Rodrigues, “O Animismo Fetichista dos Negros da Bahia”, publicado em 1900.
Esse acúmulo de literatura se reflete nos livros didáticos de Sociologia, aprovados pelo Programa Nacional do Livro Didático (2015), bem como, ainda que de forma menos incisiva, na proposta da Base Nacional Comum Curricular – BNCC (2015). Na atual proposta dessa base curricular, como alguns dos conteúdos a serem ensinados pela Sociologia no primeiro ano do Ensino Médio constam:
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Problematizar processos de mudanças de diferentes instituições sociais, tais como família, igrejas e escola.
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Reconhecer os principais marcadores sociais que constituem a diversidade cultural, tais como raça/cor, religião, região do país, entre outros. (grifo meu)
Acredito que a questão da religião poderia figurar como um tópico específico dentro da proposta da BNCC, ainda que, no meu entender, esse não seja um tema a ser tratado exclusivamente pela disciplina de Sociologia. Chama-me a atenção o fato de que, na atual proposta, não há o indicativo de uma discussão mais aprofundada sobre a cultura afro-brasileira, indo na contramão dos avanços institucionais que vêm sendo galgados desde a lei 10.639/03.
Acredito que as aulas de Sociologia poderiam ser um espaço privilegiado para a discussão sobre religiões afro-brasileiras, com destaque para o debate sobre intolerância religiosa. Porém, na atual proposta da BNCC, essa temática continua secundarizada. Há que se destacar, conforme aponta o trabalho “Na escola com os orixás: o ensino das religiões afro-brasileiras na aplicação da lei 10.639” (2010), da pesquisadora Rachel Bakke, que mesmo quando os professores da Educação Básica vêm trabalhando a questão da história e cultura afro-brasileira, a temática religiosa normalmente é olvidada, de modo que racismo e intolerância religiosa associam-se em sala de aula, garantindo o silêncio sobre a realidade dessas religiões.
Obviamente, não há como negar, com isso, que os adeptos das religiões afro-brasileiras são muito poucos se compararmos com outros grupos, como católicos e evangélicos “Entretanto, embora pouco expressivas numericamente, as religiões afro-brasileiras jogam papel importante em debate sobre formação da sociedade brasileira e na política identitária de segmentos dessa sociedade”, de acordo com o trabalho “As religiões afro-brasileiras no Censo de 2010” (2013), de Luciana Duccini e Miriam Rabelo.
É importante destacar, aqui, que o acionamento das ferramentas oriundas das Ciências Sociais tangencia não apenas as questões mais imediatas do Ensino de Sociologia, mas sim dilemas amplos que atingem o corpo escolar de forma mais geral. Nesse sentido, é relevante que o trabalho docente não seja pensado como um fazer isolado, mas sim como uma atividade aberta a possibilidades colaborativas entre docente de diversas áreas, especialmente a partir das Ciências Humanas, cujo eixo de articulação tem sido indicado tanto pela BNCC quanto pelas Novas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
Novamente, aqui, é relevante não cair em um discurso idealizado sobre o fazer docente, tampouco sobre o acúmulo de conhecimento existente nas Ciências Sociais. Como indica o trabalho “O Pentecostalismo Muda o Brasil? Um debate das ciências sociais brasileiras com a antropologia do cristianismo” (2014), das pesquisadoras Cecília Mariz e Roberta Campos, no que diz respeito aos estudos sobre o pentecostalismo. No Brasil, há inúmeros problemas de ordem metodológica, generalizações e mesmo preconceitos que se reproduzem na literatura produzida sobre o tema, de tal modo que o processo de apropriação dessa literatura deve ser realizado de forma crítica, de modo que o professor não caia em reducionismos ao pensar nessa realidade.
Por fim, é importante destacar que tem sido posto, ao menos desde as Orientações Curriculares Nacionais de Sociologia (2006), que o princípio pedagógico do Ensino de Sociologia deve ser a pesquisa. Desse modo, acredito que é possível pensarmos a elaboração de pesquisas, dentro da complexidade possível para o Ensino Médio, como fio condutor que possibilite à Sociologia na escola impactar, de algum modo, o atual cenário de intolerância religiosa, que se apresenta nas escolas, bem como na realidade vivenciada por jovens (e adultos) que estão nos bancos escolares.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesse breve artigo, busquei destacar a potencialidade do Ensino de Sociologia no que tangencia ao trato das questões referentes à intolerância religiosa. Falo em potencial, uma vez que o trabalho pedagógico se realiza ante a determinadas condições objetivas do professor, da escola, dos alunos, da própria disciplina "Sociologia" no currículo escolar etc.
Ao destacar o acúmulo de literatura no âmbito das Ciências Sociais como um fator favorável no trato dessas questões em sala de aula, obviamente que se pressupõe, em algum grau, a presença em sala de aula de um professor com formação inicial nessa área de conhecimento, todavia, como bem sabemos, a realidade nas escolas é substancialmente distinta, e a maior parte das aulas de Sociologia são lecionadas por profissionais de outras áreas, de modo que há de se considerar que o avanço da discussão não se aparta, portanto, do avanço no âmbito das políticas públicas educacionais, bem como da expansão da oferta da formação inicial e continuada no âmbito da formação de professores de Ciências Sociais.
Também destaquei a parca relevância que a temática ganha na atual proposta da BNCC, que, penso eu, pode impactar diretamente a produção de materiais didáticos na área. Penso que, nesse ponto, o papel das entidades científicas mostra-se fundamental, bem como da própria comunidade de pesquisadores que estão engajados na temática do Ensino de Sociologia, assim como no tema da intolerância religiosa nas escolas.
Em resumo, penso que nosso avanço na discussão em sala de aula ainda tem sido tímido, ao menos se considerarmos o cenário institucional. Porém, o potencial para que possamos, de fato, fazer a diferença na realidade escolar encontra-se em aberto. Acredito que a Sociologia pode fazer a diferença nessa discussão, qualificando o debate em sala de aula, o que deve ser realizado em diálogo também com os demais conhecimentos que compõem o currículo das escolas, bem como com o conhecimento dos próprios alunos sobre o mundo social.
PARA SABER MAIS
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O AUTOR
Amurabi Oliveira é doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). É professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do NEJUC (Núcleo de Estudos em Educação e Juventudes Contemporâneas) e do METROPOLIS - Laboratório de Pesquisa Social.
COMO CITAR ESSE TEXTO
OLIVEIRA, Amurabi. Escola, Religião e o Ensino de Ciências Sociais. Revista Coletiva, Recife, n. 21, jan.fev.mar.abr. 2017. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-pluralismo-religioso-n21-escola-religiao-e-o-ensino-das-ciencias-sociais-por-amurabi-oli>. ISSN 2179-1287.