Negacionismo e conspiracionismo como instrumentos do populismo reacionário
Christian E. C. Lynch
Paulo Henrique P. Cassimiro
Crise, autoritarismo, regressão democrática, fascismo, extremismos. O vocabulário político da última década foi inundado por tentativas de definir e classificar os movimentos que tensionam as democracias liberais, levando a processos mais ou menos bem sucedidos de restrição à cidadania democrática: limites a liberdade de expressão, impeditivos à competição política e ao voto, lawfare, aparelhamento das cortes constitucionais, diminuição de direitos e das condições do exercício da cidadania, para citar os casos mais importantes que testemunhamos no mundo contemporâneo.
O Brasil não ficou imune a esse processo. A eleição do presidente Jair Bolsonaro e seus quatro malfadados anos no poder foram permeados por diversas tentativas de tornar o Brasil mais um caso de desconsolidação democrática e transição para o que Pierre Rosanvallon chamou de “democratura”, um regime em que a competição formal permanece, mas com as condições materiais de sua efetivação comprometidas.
Na tentativa de descrever esse processo, do ponto de vista de suas características ideológicas e entender as origens históricas de seus fundamentos, passamos a utilizar o conceito de Populismo Reacionário, em nosso livro O Populismo Reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. Por “populismo” entendemos um estilo de evocar a representação política em democracias de massa, praticado por uma liderança carismática. O argumento populista, como mostra Ernesto Laclau, está fundado em um antagonismo central: ele reivindica a representação de uma maioria contra o restante da sociedade, que se apresenta como uma ameaça.
Nas democracias liberais, é a competição política que gera o pluralismo, pois é justamente em razão da possibilidade de um conflito entre partidos que representam forças sociais ou preferências eleitorais distintas, no contexto de um sistema político que prevê a reversibilidade das maiorias através das eleições, que a maioria democrática é construída. Nesse sentido, a reivindicação populista pela representação fundada em uma identidade não reversível entre representante e povo - baseada na negação permanente da autonomia de manifestação da oposição, da accountability e da anulação de medidas contramajoritárias - destrói as bases mínimas do funcionamento das democracias: o pluralismo e a liberdade eleitoral.
Para o populista, a competição eleitoral não visa criar um consenso por maioria política, mas revelar a maioria autêntica através de seu intérprete virtuoso: o líder carismático. Esse modelo populista de representação recorre a discursos baseados preferencialmente na linguagem dos afetos ou nas paixões, apelando a um “povo” concebido como um singular coletivo, ou seja, um ente não fictício, formado por indivíduos diferentes, mas como uma entidade homogênea dotada de vontade própria. Com isso, os populistas se apresentam como intérpretes privilegiados dessa vontade, boa e infalível, que vem, entretanto, sendo negligenciada ou obstaculizada por uma minoria ou elite, que à sua revelia, ou contra a sua vontade, monopoliza os recursos de poder. Neste cenário, surge o questionamento: por que o uso da ideia de “reação” para qualificar o tipo de populismo de Jair Bolsonaro?
Imagem criada a partir da inteligência artificial Stable Diffusion.
A palavra reação remete, de imediato, à oposição a algum tipo de processo evolutivo ou transformador no interior de uma sociedade. Em termos políticos, ela pode se referir a ideologias, movimentos e lideranças que buscam fazer regredir processos de democratização, liberalização e secularização que marcaram a modernidade. Tornou-se célebre a frase do filósofo reacionário saboiano Joseph de Maistre, que afirmava ser a contrarrevolução não apenas a negação da Revolução de 1789, mas uma ação política que faria o contrário da revolução. Ou seja, não se tratava apenas de interromper o processo revolucionário, mas de restaurar o mundo que ele havia interrompido.
Nesse sentido, o reacionarismo é, desde suas origens, uma expressão radicalizada do conservadorismo, se distinguindo deste último. No conservadorismo, a sociedade deve preservar suas instituições e valores fundamentais, de modo que se a mudança social for inevitável, ela deve ser produzida e conduzida “dentro da ordem”, preservando as instituições e evitando rupturas. Essa concepção forte de manutenção da ordem orientou a “adaptação” dos conservadores aos sistemas políticos que se democratizaram desde o século XIX. Já o horizonte do reacionarismo aponta para a possibilidade de regeneração de uma ordem perdida por meio de uma aceleração da ruptura com a ordem vigente.
Assim, ao contrário do conservadorismo, o reacionarismo não pode agir no interior das instituições políticas estabelecidas. Ainda que reacionários participem do jogo eleitoral, seu horizonte de ação tem que ser, constantemente, a negação das instituições vigentes e sua superação por um modelo fiel à ordem política legítima, que fora injustamente destruída por “revolucionários” imaginários ou reais.
Deste modo, o reacionarismo pressupõe uma transformação total no modo de existência das sociedades modernas, no sentido de um retorno a formas tradicionais e não secularizadas de conhecimento. Desta maneira, reacionários tendem a apontar a autonomia do campo científico como um duplo processo de crise. Por um lado, essa autonomização reflete o aprofundamento de uma sociedade secularizada e de indivíduos atomizados. Por outro, a independência da racionalidade científica face aos valores morais estabelecidos por tradições torna a ciência, aos olhos do reacionarismo, uma arma potencial para a subversão da ordem social e para o domínio de grupos políticos supostamente capazes de controlar e de financiar a atividade científica.
Com o início da pandemia da covid-19, o termo negacionismo ganhou imensa projeção no debate público global; e a eleição de uma liderança de extrema-direita no Brasil colocou o país no mapa mundial dos discursos negacionistas. Mas a verdade é que a relação entre o populismo reacionário e o negacionismo não é simplesmente circunstancial, ou seja, ela não tem a ver apenas com a forma como os líderes da extrema-direita reagiram à pandemia. O negacionismo é parte estruturante do pensamento reacionário, desde suas origens.
No caso brasileiro, o ex-presidente Jair Bolsonaro baseou, desde sempre, seu discurso na negação das perseguições e mortes promovidas pela ditadura militar de 1964. Suas tentativas de prejudicar os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade ajudaram a projetá-lo, em nível nacional, como um dos principais representantes de um discurso que associava a reparação dos crimes da ditadura a uma tentativa da esquerda de perseguir os “heróis” de 64, que salvaram o país do comunismo.
Entendido como técnica de governo destinada a produzir uma realidade fictícia, o negacionismo dos reacionários é, portanto, estrutural. Esse negacionismo estrutural pretende criar uma realidade paralela onde há a vigência de um sistema diferente de causalidades e responsabilidades daquele do mundo real. Do ponto de vista ideológico, a origem desse negacionismo é tipicamente reacionária, porque almejando recuar para um tempo já desaparecido, começa por ter de negar postulados básicos da racionalidade moderna na descrição do funcionamento do mundo. Para se infiltrar na sociedade, esse discurso precisa atacar a imprensa, a ciência e a academia, que são as instâncias responsáveis pela geração de consensos sociais sobre o que seja a verdade no mundo moderno.
Adotando essa estratégia, o negacionismo estrutural visa precisamente destruir a busca racional do consenso como fundamento da vida coletiva, tornando impossível o diálogo entre partes diferentes e atacando a modernidade política em um de seus valores primordiais: as liberdades públicas para a troca de razões. Desta maneira, ele nega a relativa possibilidade de divergência racional na política e busca dividi-la entre amigos e inimigos inconciliáveis, tendo como horizonte a conquista de maiorias para justamente “regenerar” uma ordem estável perdida com o conflito. Com isso, trata-se de pensar a divergência política não como um antagonismo regulado por procedimentos, mas como guerra aberta, que exige a suspensão da normalidade democrática e recursos excepcionais de Estado.
A partir disso, a produção da verdade passa a ser uma função do líder político – e não mais dos “especialistas”, agentes de produção da verdade, paradigmáticos da experiência moderna -, que responsabiliza tudo o que de mau ocorre ao demônio ou a seus inimigos. Quando articulado a um discurso político cujo objetivo é produzir antagonismo constante no espaço público, o negacionismo estrutural recusa toda explicação que não seja útil para seu projeto de dominação. Para que negacionismos sejam convertidos em ganhos políticos, os líderes negacionistas precisam convencer o público de que eles são os agentes da providência, capazes de revelar a falsidade do mundo aparente e indicar o caminho para acessar as verdades ocultas.
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Para ganhar aderência na sociedade, o negacionismo possui uma “face interna”, que é, por suposto, o conspiracionismo, ou seja, a ideia de que aquilo que explica os fenômenos sociais, econômicos e políticos está sempre oculto. Assim, a “verdade” oculta precisa ser revelada por aqueles capazes de desvendar os segredos do poder e expô-los ao povo autêntico. Daí a sua utilidade para o populismo reacionário, já que a visão de mundo de seus adeptos passaria, assim, a ser integralmente dependente de ser “revelada” por indivíduos excepcionais, capazes de superar os discursos oficiais, comprometidos com os interesses ocultos das ideologias que, de acordo com eles, dominam o mundo contemporâneo: o “globalismo”, a conspiração internacional comunista, a ideologia de gênero ou a propaganda chinesa.
Eis, portanto, a estrutura fundamental do negacionismo: o acesso aos fatos não depende do uso da razão e de seus critérios – a comprovação de uma causalidade -, mas de um suposto compartilhamento de informações não divulgadas pela ciência ou pelos meios correntes de comunicação de massa, somente acessíveis a homens e mulheres que têm a coragem de transpor a falsidade do mundo aparente e acessar o mundo das verdades ocultas.
A difusão de uma cultura política da desconfiança, baseada na mobilização permanente contra um inimigo que conspira dia e noite, favorece a obediência inquestionável ao líder crismado pela providência para representar e proteger o povo. E ela depende, por suposto, de uma estrutura de informação e comunicação que “isola” seus adeptos de outras formas de informação, fornecendo a eles uma visão de mundo verossímil e coerente, que absorve as tensões produzidas pela realidade política em uma “narrativa” em que a vítima acaba sendo, sempre, o líder providencial contra as elites políticas e econômicas do establishment.
Com isso, é importante destacar que a derrota de Bolsonaro não representou um desmonte dessa eficiente estrutura de desinformação e construção de visões de mundo paranoicas. Pensar a democracia em nosso mundo passa, inevitavelmente, por entender como esses veículos do dissenso reacionário podem ser neutralizados ou responsabilizados, anulando a principal forma de recrutamento para os populistas reacionários e seus projetos de destruição da democracia.
PARA SABER MAIS
ROSANVALLON, Pierre. O século do populismo. História, teoria, crítica. Rio de Janeiro: Ateliê de humanidades editorial, 2022.
LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário: ascensão e legado do bolsonarismo. São Paulo: Contracorrente, 2022.
LACLAU, Ernesto. On populist reason. Nova York: Verso, 2005.
ROCHA, João Cezar de Castro. Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-apocalíptico. Goiânia: Caminhos, 2021.
LYNCH, C.; Cassimiro, P. “Negacionismo Estrutural”. In: Szwako; José; Ratton, José Luiz (org.). Dicionário dos negacionismos no Brasil. Recife: Cepe Editora, 2022.
BERMAN, Sheri. Democracy and Dictatorship in Europe. Nova York: Oxford University Press, 2019.
OS AUTORES
Christian E. C. Lynch é professor do Instituto de Estudos Políticos e Sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), pesquisador da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), tendo como foco a área do direito, da ciência política e da história. Também é professor de pós-graduação da Universidade Veiga de Almeida (UVA), além de ser editor da revista Insight Inteligência e colunista do Canal Meio.
Paulo Henrique P. Cassimiro é doutor e mestre em Ciência Política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ), com período sanduíche na Univeristà degli Studi di Pisa (Itália). Graduado em Ciências Sociais pela Universidade Federal Fluminense (2009). Realizou estágio de pós-doutorado no IESP-UERJ, no Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo (USP). Tem experiência nas áreas de Teoria Política, Teoria da Democracia, Ideologias Políticas e Pensamento Político Brasileiro. Co-coordena o Beemote – Grupo de Estudos de Teoria e Pensamento Político Brasileiro e o NUTEPI – Núcleo de Teoria Política e Instituições.
COMO CITAR ESSE TEXTO
LYNCH, Christian; CASIMIRO, Paulo. Negacionismo e conspiracionismo como instrumentos do populismo reacionário. Revista Coletiva, Recife, n. 32, jan.fev.mar.abr.maio. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-negacionismos-e-autoritarismo-n32-artigo-negacionismo-conspiracionismo-populismo-reacion>. ISSN 2179-1287.
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