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04 de maio de 2018 

Heranças em um corpo que dança ou sobre dançar imagens e memórias

Gabriela Santana

“Este ensaio reúne fatos biográficos, memórias vividas e outras inventadas, pensamentos encarnados,

notas, ideias e o desejo de habitar o devir existente em minha ancestralidade.” (Gabriela Santana)

“O sino da igrejinha faz belem, blém, blém”

Às sete da matina, em uma precária viela, toda vez que eu passava indo ao trabalho, pontualmente, ela, uma de mim, jogava a água da quartinha para livrar os quebrantus. Uma cinquentona com saia longa e grande presa acima dos peitos fartos, de olhar meio enlouquecido.

 

Eu não pensava em dançar essas lembranças. Foi quando voltei à rua do carvão, no bairro do Santo Antônio Além do Carmo, em Salvador, e, entre a madrugada e o clarão, me refiz em outras tantas formas. Gente de guerra naquela madrugada me habitou. Eles tomaram a mim e eu, a eles!

 

“O sino da igrejinha faz belem, blém blém”

 

Eu achava que não queria falar nem de mim, nem de você, nem de representações sociais, estigmas, estereótipos.

 

Corporalidades emudecidas, um grito implodido, um lamento debaixo d´agua. Águas, águas, águas e um sem fim de barquinhos em mim. Sobre minha cabeça, em forma de manto, tapando minha boca, caídos em meus cotovelos, no meu colo, passeando em minhas costas e no meu lombo.  Eu, cavalo de mim mesma, eu, preta e velha.

 

Vó, vó... a senhora esteve aqui?

Ensaio fotográfico no Açude do Prata, em Recife, agosto de 2016

Corpo manifestado! Antes que eu aprendesse a dançar essas imagens, essas imagens já dançavam em mim. Uma gestação silenciosa construída dia a dia por meio de uma memória coletiva, compartilhada na cidade de meus ancestres. Foram necessárias algumas idas ao longo da minha mocidade até resolver fazer o caminho de volta e partir para Salvador (terra da minha família paterna) em busca de uma formação em danças afro-brasileiras.

Meu descaminho em chão soteropolitano me desviou da dança e me fez adentrar mais ainda na capoeira, até a hora de vir para Pernambuco, quatro anos depois. Nesta terra, cheia de outras pretas e pretos dei nova partida e dancei identidades fragmentadas. Aqui, em Pernambuco, senti banzo; reconheci heranças, perambularei entre corpos até assumir poéticas de rua em um processo criativo em dança. Entremeei signos absolutos: barquinhos, chicote, sonoridades de vento e mar e movimentos codificados: pés aderidos ao chão, joelhos frouxos, coluna e cabeça para baixo e... Uma frase interrompe meu pensamento: Gabí, você desaprendeu a dançar... dançava tão bonito.

Não sei bem qual foi a munganga que fiz quando essa frase pulou da boca de um ente querido ao me ver dançar sem reconhecer nenhum traço dos 17 anos de ballet clássico que, por muito tempo, estiveram colados (e ainda continuam) em minha musculatura. Mas falar desse trajeto realmente não é falar nem de mim nem de você e, sim, uma tentativa de desemaranhar processos colonizantes incutidos diariamente em nossos corpos. Uma tentativa de esgarçar um espaço ainda constrito no campo poético-performativo para repensar a cooptação de tantos outros corpos que, servilmente, correspondem ao projeto geopolítico da modernidade/colonialidade, hoje estudado por autores não ocidentais, debruçados na formulação de teorias decoloniais.

Nesse trajeto, como dançarina e pesquisadora proponho dilatar sensibilidades para (re)descobrir forças capazes de gerar formas de expressão, movimentos e atos de fala suplantados violentamente em culturas que foram e continuam marginais ao pensamento euroacadêmico.

Não me refiro especificamente a uma cultura negra, nem ao corpo de uma negra – no meu caso, que sou mulher –, ao invés disso, penso na expansão de uma percepção social que provoque, a partir da empatia sinestésica, sensibilidades necessárias para que possamos poetizar hábitos sociais plurais, sejam esses cotidianos ou espetaculares. Um caminho que opõe-se à construção estética pautada em códigos, técnicas e métodos codificados na dança.

 

Isto requer certo deslocamento no que tange ao viés reprodutivista com que as matizes negras são comumente encenadas em contexto teatral; fato que me faz pensar na importância de (re)conhecer os relevos dessas práticas artísticas em seus respectivos contextos, uma vez que, ao serem alocadas em espaços formativos e ou artísticos-pedagógicos perdem características próprias que informam o modo como percebem o mundo.

 

Em território “neutro” como em estúdio de dança, aspectos políticos presentes nessas práticas são muitas vezes diluídos para dar vazão a um olhar restritamente técnico que geralmente suprime pontos de tensão capazes de disparar modos diferentes de abordar as danças de tradição afrodiaspóricas.

 

Por isso, minha insistência nos aspectos afetivos e também políticos que balizam as relações presentes em contextos culturais tradicionais, tais como a umbanda, o candomblé, a capoeira e o samba, entre outros.

 

Trata-se de um investimento sobre a investigação estética a partir das sensações adormecidas em nossos corpos, sobretudo, quando consideramos que somente as palavras conseguem discutir as durezas e as complexidades das relações imbricadas entre raça e gênero. Ledo engano, ou engano friamente calculado para alienar muitas e muitos de nós à potência e à pulsão presente nas culturas afrodiaspóricas ).

 

Na contramão de vários movimentos estéticos que inspiram-se na ideia de valorizar o belo que há na cultura afro - inegavelmente estigmatizado por ações hegemônicas - a performance mote desse ensaio, *ERRANÇAS*2, é movida por dores de um corpo-mulher (coletivo), oprimido, vivo e ancorado na força e na resiliência. Uma experiência de mover corporalidades de resistência, buscando descolonizar um pensamento ainda colonizado.

Criação tecida a partir das emoções pulsantes e diárias que manifestam-se em corpos que habitam becos, ruas, quilombos e guetos. Também preenchidos por um tipo de beleza. Apesar do estranhamento que tenho com a  categoria “belo”.

Apresentação no projeto Espetáculos em Cena do Espaço experimental, em Recife, novembro de 2017
 

Corporalidade modelada que se dá na relação paradoxal de sentir-se a partir de tantas outras que vivem em mim, sem tentativas de representação ou teatralização, mas antes de tudo, reconhecendo-se parte integrante de uma ligação ancestral.

 

Nesse “entre” que vivencio, não somente artisticamente, mas também na capoeira e nos espaços que atuo como educadora e, antes mesmo, na condição de um elo entre uma família negra e outra branca, a colonialidade moderna se faz presente ininterruptamente em minha vida, à medida que trânsito por um legado que tensiona cosmovisões e leituras de mundo entre elas borradas.

Porém, além das ideias elaboradas por um pensamento contra-hegemônico e em busca da descolonização de práticas e racionalidades orientadas pelo sistema político neoliberalista vigente, sou da opinião de que ainda é necessário muito CORPO e MOVIMENTO para corporificar novas tessituras. Práticas decoloniais exigem percepção e compreensão não somente da dimensão econômica e política de um povo ou país; exigem, também, o conhecimento de saberes desenvolvidos em territórios artísticos, culturais e, portanto, corporais.

 

Como dinâmicas artísticas e culturais podem retroalimentar nossos saberes corporais frequentemente diminuídos por um modelo de racionalidade eurocentrada? Memórias, estórias e corpo presente são as apostas para ações que venham alinhavar outras redes capazes de nutrir nossa ancestralidade, imbuída de devires.

Fotos: Debora Bittencourt

NOTAS

[1] Verso de um ponto de umbanda cantado para Exu (Domínio Público).

 

[2] Erranças, uma pesquisa em dança e capoeira iniciada em 2013, na cidade de Recife - Pernambuco. Para tanto, foram desenvolvidos processos de subjetivação disparados por sensações encarnadas em mim, desde a minha iniciação na Capoeira Angola. Assim, os sentimentos de devoção, pertencimento e o reconhecimento de uma construção identitária, bem como o reconhecimento de uma memória coletiva, deslocaram-se da margem para o centro das minhas investigações. A referida pesquisa foi contemplada pelo Sistema de Incentivo à Cultura do Estado de Pernambuco SIC/FUNDARPE, no ano de 2015. Atualmente é apresentada no formato como performance, mas já foi veiculada como work in process, gerando intervenções, vídeo-registro e uma exposição com rastros e pistas do processo.

fanpage: @projetoerrancas

                 https://errancaspesquisa.wordpress.com/

PARA SABER MAIS

BALLESTRIN, L. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política. Brasília, n. 11, p. 89-117, maio/ago. 2013. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n11/04.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2018.

 

CASTRO-GÓMEZ, S. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624102434/9_CastroGomez.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2018.

 

MIGNOLO, W. D. A colonialidade de cabo a rabo: o hemisfério ocidental no horizonte conceitual da modernidade. In:  A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/clacso/sur-sur/20100624094657/6_Mignolo.pdf>. Acesso em: 4 abr. 2018.

 

SCHECHNER, R. Between Theater and Antropology. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1985.

 

SCHECHNER, R. O que é performance. In: O Percevejo – Revista de teatro, crítica e estética, Ano 11,  n.12, 2003.


SCHECHNER, R. Performance e antropologia de Richard Schechner. In: LIGIÉRO, Z. (Org.). Rio de Janeiro: Mauad, 2012.

A AUTORA

Gabriela Santana é artista, capoeirista (Angoleira) e pesquisadora. É licenciada em dança pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Professora do Curso de Dança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) desde 2010, desenvolve projetos focados no intercâmbio com artistas e mestres locais, além de ministrar oficinas e cursos focados na improvisação em dança, na capoeira e na interface entre tais linguagens. Realizou entre os anos de 2014 a 2016, os projetos “Erranças: uma pesquisa em dança e capoeira” e o vídeo-documentário “Jogo Aberto: conversas com a capoeira Angola de Recife e Olinda”.
 

COMO CITAR ESSE TEXTO

SANTANA, Gabriela. Heranças em um corpo que dança ou sobre dançar imagens e memórias. Coletiva, Recife, n. 22, Coletiva. jan.fev.mar.abri 2018. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-mulheres-negras-n22-herancas-em-um-corpo-que-danca-ou-sobre-dancar-imagens-e-memorias. ISSN 2179-1287.

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