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Desaprender os gêneros para reinventar o cotidiano da escola: experiências de crianças na Educação Infantil

Marcos de Melo e Patrícia Rosalba

Estariam as crianças pequenas fadadas a apenas reproduzirem as lógicas binárias dos gêneros? Seria realmente a escola um espaço somente de inculcação de verdades/saberes sobre o que é ser menino/menina, homem/mulher? Este artigo é um exercício de síntese de ideias e experiências vividas por seus autores/as em algumas incursões no universo infantil, a partir do espaço escolar. As análises aqui contidas se estabelecem através de dois registros que se entrecruzam.

 

O primeiro se configura numa constante relação com uma bibliografia provocativa e questionadora sobre compreensões socialmente cristalizadas acerca das infâncias, em específico, as que a construíram como um período da vida humana repleto de incompletudes, incompetências, docilidades e ausências; o segundo, o do contato direto com as crianças, que se apresenta como um desafio ético e metodológico. Tivemos a oportunidade de contemplar a pluralidade dos modos de viver as infâncias.

Para as Ciências Sociais, só muito recentemente o universo infantil e as crianças passaram a ser considerados interesses de pesquisa. Esse fato se deve ao reconhecimento das crianças como atores sociais e não meros receptáculos em seus processos de captura do funcionamento do mundo social. Esta noção se apresenta como um elemento desconcertante e provocativo no campo pedagógico, pois nele passa-se a ser exigido o reconhecimento das singularidades e alteridades dos pequenos/as em sala de aula. Se por um lado as Psicologias, em específico as de Jean Piaget, Vygostky e de Jerome Bruner, já identificavam, há algum tempo, a posição ativa da criança nos processos de apreensão do mundo; por outro, suas interpretações parecem adultocentradas e terminam por representar o universo infantil como ilógico, universal e mergulhado na eterna perseguição da vida adulta como meta.

Pondo em questão essas análises, a Sociologia da Infância, em específico, tem contribuído para a percepção da infância como construção social, categoria geracional e as crianças como coprodutoras de culturas, mas submetidas a relações assimétricas de poder com os adultos. Deste modo, as práticas pedagógicas ficam convidadas a se repensarem tendo como base a infância por ela mesma, não mais como um “vir-a-ser” adulto. De certo modo, esses novos olhares sobre as vidas das crianças apontam-nas como seres inquietos, criativos e imersos numa constante luta de compreensão ativa das lógicas arbitrárias do mundo adulto.

Entre estas lógicas arbitrárias encontram-se os gêneros ou, em outras palavras, formas de controle e constrangimento social, naturalizadas e imperceptíveis, sobre os corpos e as subjetividades humanas que enquadram, rotulam e dividem o universo humano em posições estanques do masculino e do feminino, a partir de uma matriz heteronormativa. Como os mundos infantil e adulto se cruzam e se estabelecem numa interdependência, desde quando desejadas por seus pais, as crianças já se encontram submetidas às relações de poder constituídas nas relações de gênero.

Mães e pais idealizam suas crianças a partir de seus lugares sociais como meninos ou meninas, inscrevendo-os/as numa ordem generificada. Planejam seus futuros, brinquedos, escolas, profissões, preferências esportivas, os maneirismos de seus corpos, entre outras possibilidades de se sonhar e, também, de se controlar. Esses sonhos, portanto, não são livres. Eles estão parcialmente limitados por um ordenamento social arbitrário, em que corpos e subjetividades devem estar regulados a partir de uma correspondência entre genitais, gêneros e desejos. Um corpo de uma criança reconhecido como uma menina, a partir de seu genital, por exemplo, deveria ser frágil, delicado e contido, vestir vestidos e brincar com bonecas. Enquanto o de um menino poderia ser mais agressivo e agitado, subir em árvores, jogar futebol e não se encantar com as histórias de princesa.

Como o gênero é um mecanismo de regulação constante, outras instituições sociais tentam garantir que crianças e os adultos não se percam dos roteiros preestabelecidos. A escola talvez seja a principal instituição de manutenção destas regulações, a partir da ampliação de inserção social das crianças para além de seus lares. É na escola e no seu currículo generificado, muito distante de uma pretensa neutralidade sobre esta temática, que as crianças continuam a aprender e internalizar os gêneros, naturalizando suas posições como meninos e meninas.

Os diferentes tons de voz da professora, o material escolar, as atividades dentro e fora da sala de aulas, os brinquedos, o recreio, as brincadeiras, a hora do banho e do lanche, as histórias nos livros, todos são elementos que compõem os espaços e tempos de aprendizagem do gênero para as crianças pequenas. É interessante também notarmos que as próprias crianças terminam por regular os gêneros entre si. Não é raro perceber que determinadas brincadeiras parecem ser exclusivas dos meninos ou das meninas e que, tais limites do sistema de gênero binário são apenas atravessados em determinadas circunstâncias.

Na pesquisa que realizamos numa creche pública, no agreste sergipano, entre os anos de 2014 e 2015, com crianças entre 2 e 4 anos de idade, os brinquedos eram praticamente raridade, mas isso não impedia que as crianças brincassem. Não raro os meninos se envolviam em inúmeras brincadeiras turbulentas. Chutes, socos e golpes de voadora faziam parte do repertório lúdico dos pequenos. Curiosamente, ou melhor, acreditamos que propositalmente, as meninas não se envolviam.

 

As lutas eram “brincadeira de menino” e, apenas quando eram atingidas por algum dos golpes, elas se juntavam aos garotos. Na maioria das vezes ficavam como espectadoras pelos cantos da sala. Não havia um diálogo para se estabelecer tal regra, até porque, como eram muito pequenos, pouco falavam. Mas seus corpos já haviam aprendido e expressavam pelo movimento ou falta dele, uma organização implícita. Aliás, esse é um desafio para quem estuda crianças pequenas, o lidar com seus silêncios que tanto falam sobre si mesmas e o experimentar outras formas de conexão com suas culturas: olhares, gestos e movimentos.

Silenciosamente, mas de maneira incisiva, o sistema binário de gênero fazia parte das experiências daquelas crianças e do currículo escolar. A professora e a cuidadora, até sem se darem conta, contribuíam para isso. A fila do banho na creche era divida entre meninos e meninas, mas muitas crianças “desobedeciam” tal controle. Corriam umas para a fila das outras, mas não sem a interferência e a “correção” da professora. Essa interferência consistia em retorná-las para seus lugares com a lembrança de seus gêneros e dos limites que não podiam ser ultrapassados. Mesmo numa realidade tão limitada materialmente, em que praticamente as atividades diárias consistiam no desenho livre, as cuidadoras tinham o cuidado de distribuir os lápis de cor em cores mais escuras para os meninos, e as mais claras para as meninas.

Apesar disso, as crianças não se submetiam completamente ao sistema binário e, em muitos momentos, reinventam suas brincadeiras e as relações com os amigos na sala de aula, a partir da não-binaridade. Os brinquedos eram trocados e, principalmente, as meninas, brincavam de carrinho ou outros brinquedos considerados masculinos. Os meninos, por outro lado, eram mais vigiados, mas não o tempo todo. Gabriel (nome fictício), 3 anos, adorava calçar a sapatilha cor de rosa de uma de suas amiguinhas. Todas as manhãs, após colocarem as fardas da creche, os sapatinhos e roupas com as quais vinham de casa ficavam disponíveis no armário de metal aberto. Em alguns dias, Gabriel calçava seus pés descalços e circulava tranquilo e alegremente entre os colegas e a cuidadora, sem qualquer tipo de interdição.

Em situações com crianças mais velhas, no entanto, essa pluralidade de masculinidades e feminilidades não era vivida tranquilamente. Num outro trabalho realizado na mesma região, com crianças entre 8 e 13 anos, os xingamentos, zombarias e as críticas das próprias crianças davam o tom dos limites impostos aos corpos infantis. O silêncio geralmente imperava como estratégia de intervenção da professora. As crianças pequenas, ao menos as quais estabelecemos contato em nossa pesquisa, viviam menos intimidações diretas sobre seus corpos. Talvez por serem consideradas frágeis e incompletas, quase selvagens, sua não submissão ao discurso binário fosse mais aceita e menos repreendida, mas não completamente.

Desta feita, percebemos que a escola pode ser vista também como espaço de questionamentos e insubordinações das crianças às lógicas do gênero, e não apenas um lugar de inculcação. Aquilo que, normalmente, interpretamos como desobediência e é enquadrado como uma manifestação imatura das crianças, em verdade, releva a força e o poder desestabilizador da infância. As crianças são portadoras de uma potência que nos faz questionar aquilo que nos parece óbvio, dado e estabelecido numa improvável estabilidade de nossas existências. As infâncias borram o sistema binário do gênero e incomodam a escola com seus modos de viver e existir desarticulados do engessamento da vida adulta, ainda que estejam em relação direta com esta.

O trabalho a que nos referimos é a monografia “Desenhos infantis e regulações de gênero na sala de aula”, escrita por Eliene Santos Fernandes no ano de 2014 e orientada por Marcos Ribeiro de Melo no Departamento de Educação da Universidade Federal de Sergipe, Campus de Itabaiana.

PARA SABER MAIS

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003.

CORSARO, Willian. Sociologia da infância. Porto Alegre: Artmed, 2011.

CRUZ, Silvia Helena Vieira (org.). A criança fala: a escuta de crianças em pesquisas. São Paulo: Cortez, 2008.

SARMENTO, Manuel; GOUVEA, Maria Cristina Soares (orgs). Estudos da infância: educação e práticas sociais. Petrópolis: Vozes, 2009.

SILVA, Tomaz Tadeu. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

THORNE, Barrie. Gender play: girls and boys in school. New Jersey: Rutgers University Press, 2010.

O AUTOR

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Marcos Ribeiro de Melo é doutor em Sociologia (PPGS/UFS) e professor do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cinema (PPGCINE), ambos da Universidade Federal de Sergipe (UFS).

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Patrícia Rosalba Salvador Moura Costa é doutora em Ciências Humanas (UFSC) e professora do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Sergipe.

COMO CITAR ESSE TEXTO

MELO, Marcos Ribeiro de; COSTA, Patrícia Rosalba S.M. Desaprender os gêneros para reinventar o cotidiano da escola: experiências de crianças na Educação Infantil Revista Coletiva, Recife, n. 18, jan.fev.mar.abr. 2016. Disponível em: <>. ISSN 2179-1287.

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