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Como mensurar a fome?

Darcilene Gomes

A fome, ou em sentido mais amplo, a insegurança alimentar, é um fenômeno de múltiplas determinações e que implica em carências de diversos tipos. De uma maneira geral, em sua identificação, é comum a utilização da renda como determinante do bem-estar das famílias, ou seja, a avaliação de sua dimensão tem como ponto de partida a associação da fome à insuficiência de renda monetária. 

Nesse sentido, a fome é compreendida como uma privação absoluta de uma necessidade humana básica, e seu cálculo leva em consideração requisitos mínimos de necessidades nutricionais. Do ponto de vista energético, segundo a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO), deve-se ingerir entre 1.900 e 2.400 Kcal por dia. Do ponto de vista nutricional, é importante que a alimentação seja balanceada, com o consumo de carboidratos, proteínas, gorduras, vitaminas e minerais. 

A forma mais comum de contabilizar os indivíduos que passam fome consiste em comparar a renda de que dispõem estes indivíduos ou núcleo familiar (a renda familiar ou domiciliar per capita) ao valor mínimo necessário para satisfazer as necessidades alimentares. Esse valor mínimo, também denominado “linha de extrema pobreza” ou “de indigência”, pode ser referenciado no salário-mínimo (algum múltiplo) ou pode buscar refletir o custo real de vida das populações de baixa renda. 

Esse custo é calculado após a confecção de cestas de alimentos, as quais são derivadas de pesquisas de orçamento familiares. Idealmente, as necessidades alimentares devem considerar o padrão regional de consumo das famílias e os requerimentos nutricionais médios a serem atendidos. 

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Roteiro simplificado para confecção de linhas de pobreza extrema. Fonte: Elaboração própria.

Calculadas as linhas de pobreza extrema, o passo seguinte é adotar indicadores agregados para expressar as características da população que passa fome. Indicadores são informações que permitem revelar aspectos da realidade e são cada vez mais utilizados para a formulação, monitoramento e avaliação das políticas públicas. Nos estudos sobre fome, o indicador mais conhecido é o de “proporção de pessoas em extrema pobreza”, que consiste no número de indivíduos cuja renda familiar per capita é inferior à linha de extrema pobreza, em relação ao total da população. Em outras palavras, indica o percentual de pessoas que não aufere renda suficiente para adquirir uma cesta de alimentos. 

Linhas diferentes produzem números igualmente distintos. O Banco Mundial, por exemplo, considera para o Brasil uma linha de extrema pobreza de US$ 2,15 por pessoa/dia (equivalente a R$200,00 em 2022) e calculou a taxa de extrema pobreza em 5,9% em 2022. Para a linha de R$210,00 em 2022, o percentual de pobreza extrema seria 6,5% da população. 

Esse tipo de abordagem, também conhecida como “pobreza monetária” ou de “insuficiência de renda”, associou-se a uma geração de novas políticas de combate à pobreza, os denominados “programas focalizados de transferência de renda”, que tem no Bolsa Família um dos exemplos mais conhecidos.

Não obstante, como as necessidades humanas são obviamente muito maiores do que apenas sobreviver, definir linhas de corte pode ser considerado uma primeira aproximação de um fenômeno que é complexo, como apontado anteriormente. Mesmo no campo das necessidades alimentares, outras perspectivas e distintos olhares foram desenvolvidos nas últimas décadas, incluindo pesquisas específicas e feitas diretamente com indivíduos que relataram experiências de fome.  

O indicador de Cornell merece destaque, pois inspirou o desenvolvimento da Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA). Ambos mostram que a fome é um processo que começa com a perda de qualidade da alimentação até alcançar sua privação plena. Em âmbito familiar, geralmente se inicia com os adultos e, por fim, alcança as crianças. A EBIA mensura diretamente a percepção e a vivência da insegurança alimentar e da fome por meio de perguntas realizadas em entrevistas domiciliares, que foram validadas em comunidades pobres urbanas e rurais. 

Reflete, assim, o acesso da população aos alimentos, considerando sua quantidade e qualidade. Em seu grau mais severo, em uma escala de quatro níveis, a EBIA se entrelaça com a fome. O cálculo mais recente da EBIA pode ser encontrado no II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar (Penssan, 2022), que ganhou destaque na imprensa brasileira recentemente. A investigação mostrou que 15,5% dos domicílios, que abrange 33 milhões de pessoas, viviam em insegurança alimentar grave, ou seja, em situação de fome, no período de 2021/2022.   

Vale mencionar que as diferenças metodológicas no cálculo de indicadores sobre a carência alimentar desvelam interpretações específicas sobre sua natureza e determinantes. Por conseguinte, influenciam o receituário de políticas indicadas para seu enfrentamento.

 

De todo modo, o debate sobre os indicadores mostra que o tema da fome e da segurança alimentar está na agenda de qualquer sociedade, trata-se de um direito contemplado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e um direito social inscrito na Constituição Federal brasileira. E a segurança alimentar diz respeito à realização desse direito, que é o de ter acesso regular e permanente a alimentos de qualidade e em quantidade suficiente para garantir uma nutrição adequada. 

NOTAS

[1] Como a Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). 

[2]  Durante muitos anos o Estudo Nacional de Despesa Familiar (ENDEF, de 1974/75) do IBGE serviu de base para fixar os padrões de consumo e em seguida estabelecer a linha de extrema pobreza.

[3]  A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do IBGE já investigou o tema em suas edições de 2004, 2009 e 2013. E na POF/IBGE foi investigado em 2017/2018.

PARA SABER MAIS 

IBGE. Síntese de indicadores sociais: uma análise das condições de vida da população brasileira: 2023, Rio de Janeiro, IBGE, 2023. Disponível em: <https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/trabalho/9221-sintese-de-indicadores-sociais.html>. 

PENSSAN. II Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da COVID-19 no Brasil - II VIGISAN: relatório final/Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (PENSSAN). São Paulo, Fundação Friedrich Ebert/Rede PENSSAN, 2022. Disponível em: <https://olheparaafome.com.br/>. 

ROCHA, Sônia. Pobreza no Brasil: afinal, do que se trata? Rio de Janeiro, Editora da FGV, 2006.

A AUTORA

Darcilene

Darcilene Cláudio Gomes é doutora em Economia pela Unicamp, pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco, docente do Programa de Mestrado Profissional de Sociologia em Rede (ProfSocio/Fundaj) e atualmente é coordenadora do Centro de Estudos de Cultura, Identidade e Memória - CECIM/Fundaj. 

COMO CITAR ESSE TEXTO

GOMES, Darcilene C. Como mensurar a fome? Revista Coletiva, Recife, n.33, set.out.nov.dez. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-fome-e-a-inseguranca-alimentar-no-brasil-n33-como-mensurar-a-fome>. ISSN 2179-1287.

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