OS "DESASTRES AMBIENTAIS" E A MÁQUINA DE MORTE DO OCIDENTE: DIÁLOGOS ENTRE AILTON KRENAK E MARIMBA ANI
Karine L. Narahara
[…] tem uma camada mais bruta, rústica, orgânica, uma sub-humanidade, uma gente que fica agarrada na terra. […] A organicidade dessa gente é uma coisa que incomoda, tanto que as corporações têm criado cada vez mais mecanismos para separar esses filhotes da terra de sua mãe.
Ailton Krenak
Foto: Agência AFP.
Nos últimos meses de 2019 vivemos o maior vazamento de petróleo já ocorrido no país e no mundo – tanto em extensão, com quase mil localidades atingidas, quanto por quantidade de óleo: cerca de quatro toneladas e meia de óleo foram recolhidos ao longo da costa. As cenas que inundaram jornais e redes sociais eram impressionantes: gigantescas manchas de um denso petróleo atingiram os principais destinos turísticos no nordeste do país, enquanto a população local se unia à tarefa de tentar “limpar” as praias. Até hoje a origem do óleo que começou a atingir o litoral brasileiro no final de agosto do ano passado é, segundo informações oficiais do governo brasileiro, desconhecida[1].
O vazamento relembra outros “desastres” relacionados à indústria petroleira. Em 2000, mais de um milhão de litros de petróleo provenientes da Refinaria Duque de Caxias (REDUC) atingiu a Baía de Guanabara, impactando em especial os pescadores artesanais, que ainda hoje aguardam indenização. Em 2010, três mil barris de petróleo vazaram após a explosão de uma plataforma da empresa British Petroleum (BP), no Golfo do México, Estados Unidos.
Por mais que esses eventos de grandes proporções chamem mais a atenção da mídia e da sociedade em geral, a extração de petróleo e de gás natural tem criado verdadeiras “zonas de sacrifício”, mesmo onde não ocorrem eventos pontuais de grande escala. Na amazônia equatoriana, povos indígenas convivem com a contaminação gerada ao longo de décadas pela norte-americana Texaco/Chevron. Na Nigéria, a população local também sofre com graves problemas de saúde decorrentes da presença da holandesa Shell, enquanto na Patagônia argentina um acordo entre a estatal argentina – YPF – e a Chevron tem trazido uma nova e grave onda de impactos sobre o território do povo Mapuche.
O que a indústria petroleira tem gerado, ao redor do mundo, não são “acidentes”: situações imprevisíveis e inesperadas. Afinal, como afirma Marcelo Calazans, da Campanha Nem Um Poço a Mais, “não existe exploração petroleira segura”. Diferentes cenários petroleiros ao redor do mundo demonstram que tirar petróleo e gás do subsolo – seja ele terrestre ou marítimo – produz contaminação não de forma extraordinária, mas sim de forma ordinária[2]. A presença de empresas de petróleo num determinado território implica a atualização do maquinário de morte[3] que move e constitui o Ocidente[4].
Esta maquinaria tem em sua base estrutural a ideia de que os humanos são distintos das demais formas de existência no mundo. Colocando em outros termos: tem como premissa fundamental a distinção entre natureza de um lado e cultura de outro. É isso que a obra de Marimba Ani, autora africana – nascida na América do Norte – nos aponta. Ela produziu uma densa etnografia sobre o Ocidente, a partir da criação de conceitos com palavras swahili, o idioma bantu falado pelo maior número de pessoas no continente africano na atualidade. Dentre eles está o conceito de Asili, que é utilizado em paralelo ao clássico conceito antropológico de cultura: o Asili é a semente de uma determinada cultura, direcionando-a em seu desenvolvimento ao longo do tempo. Ligado ao Asili estão os conceitos utamaroho, que aponta para os padrões comportamentais, e utamawazo, que está relacionado aos padrões de pensamento. Cada Asili possui um utamaroho e um utamawazo próprios. A autora explorou distintos aspectos do Asili Ocidental a partir dos seus utamaroho e utamawazo característicos, demonstrando fundamentalmente que a maneira de produzir conhecimento pelo Ocidente está diretamente vinculada a sua expansão colonial e imperialista.
Um dos aspectos centrais do Asili Ocidental, como demonstra Marimba Ani, é que o poder é necessariamente entendido como uma forma de controle. E na base desta concepção e prática de poder está uma separação fundamental: aquela entre sujeito e objeto. É esta distinção que permite que se produza o que se considera conhecimento “verdadeiro”, logo “racional”: para que o sujeito conheça o mundo é preciso se distanciar dele. Daí desdobra, ainda segundo a autora, a distinção entre humanos e natureza, e, consequentemente, a ideia de que os humanos, superiores por serem capazes de controlar suas emoções para produzir um conhecimento racional, devem controlar a natureza – sempre “hostil” e “caótica”.
Este distanciamento entre humanos e natureza desdobra na distinção natureza e cultura, base de toda produção científica do Ocidente. A natureza seria a “realidade lá fora”, como bem definiu o antropólogo Bruno Latour, sobre a qual repousa a cultura, de maneira que diferentes culturas possuiriam diferentes perspectivas ou “cosmovisões” sobre a natureza. Enquanto a natureza seria única e homogênea, as culturas seriam múltiplas, o que nos levaria a um mundo “multicultural”. Porém, como também alerta Bruno Latour, é uma dessas culturas que possui o acesso privilegiado à natureza tal como ela é: o Ocidente, ao produzir uma ciência racional, é o único capaz conhecer e desvendar verdadeiramente a natureza.
É fundamental destacar a quem se refere o humano nesta equação. Os escritos de Marimba Ani deixam claro que, historicamente, o Ocidente associa humanidade à branquitude. Decorre daí que nós, não brancos, fomos e, de diversas maneiras, seguimos sendo considerados sub-humanos ou mesmo não humanos. Basta ver os dados mais recentes sobre genocídio da população negra no país: existe uma hierarquia de corpos matáveis, marcada principalmente pela cor da pele. Sem contar que o genocídio da população indígena segue em curso no país.
No Asili Ocidental a alteridade é necessariamente hierarquizada e valorada, o que gera, segundo Marimba Ani, um padrão de comportamento que se relaciona com a diferença de maneira xenofóbica e agressiva. O “Outro” não Ocidental, não branco, é não somente inferior – por ser incapaz de produzir um conhecimento racional – como é também uma ameaça. Ele estaria mais próximo do estado natural, ou pode ser considerado até mesmo parte da natureza[5].
Ao tratar da articulação entre o padrão de pensamento (utamawazo) e o padrão de comportamento (utamaroho) relacionado ao Asili Ocidental, Marimba Ani demonstra que o controle sobre a natureza está em continuidade com o controle sobre outros povos: a maneira que o Ocidente domina (ou tenta dominar) o que considera como natureza está intrinsecamente vinculada a como se dá a invasão de diferentes territórios. A “missão civilizatória” do Ocidente domina, de uma só vez, os distintos povos, as demais formas de vida, bem como outros elementos do território tido como objetos inertes – como, por exemplo, o petróleo e o gás natural presentes no subsolo.
Não por acaso em diferentes “desastres ambientais” as populações mais afetadas são aquelas consideradas como o “Outro” do Ocidente: aquelas que no passado e ainda hoje são tidas como “atrasadas” ou “tradicionais”, “primitivas” e “selvagens”. No vazamento de óleo que atinge a costa brasileira desde o ano passado, os principais afetados são os pescadores artesanais, que tiveram tanto sua segurança alimentar quanto sua fonte de renda gravemente comprometidas.
Ailton Krenak (2019) mostra que seu povo, que vive atualmente entre as regiões Sudeste e Centro-Oeste do país, entende a humanidade como profundamente vinculada ao que o Ocidente considera como natureza. Para os Krenak, duramente atingidos pelo rompimento da barragem de rejeitos de mineração das empresas Vale e BHP Billiton, em Mariana (Minas Gerais), o “rio [Doce] que está em coma é também o nosso avô”. Para os Mapuche um rio ou uma montanha não chegam a ser considerados como parte de um sistema de parentesco ampliado, como o é para os Krenak. Mas, ainda sim, em território Mapuche os ce – as pessoas – estão inseridas nos fluxos de forças (newen) que atravessam os diferentes planos do cosmos, de tal maneira que minerar uma cadeia montanhosa implica uma profunda desestabilização desta malha. A contaminação produzida pela produção petroleira gera, para além de uma contaminação físico-química, uma desordem na harmonia das forças do território.
Tanto os Krenak quanto os Mapuche colocam em cheque o humanismo apregoado pelo Ocidente. É a separação entre sujeito e objeto que gera o processo de objetificação da natureza, e consequentemente possibilita a suposta supremacia humana sobre o que se considera não humano, como bem coloca Marimba Ani. Afinal, para Ailton Krenak, “[q]uando despersonalizamos o rio, a montanha, quanto tiramos deles os seus sentidos, considerando que isso é atributo exclusivo dos humanos, nós liberamos esses lugares para que se tornem resíduos da atividade industrial e extrativa”. É a compreensão restritiva de humanidade do Asili Ocidental que gera, em última instância, os “problemas ambientais”.
Os desastres ambientais – como aqueles mencionados no início do texto – estão longe de serem desastres. Mas não apenas por serem recorrentes. Esses desastres são parte inerente do Asili Ocidental justamente porque tanto o padrão de comportamento (utamaroho) quanto o padrão de pensamento (utamawazo) associados a este Asili têm como base a distinção entre sujeito e objeto, que implica um afastamento humano do restante do mundo, e o consequente processo que tenta transformar tudo em “recursos naturais” disponíveis às necessidades humanas. Vemos então que a “crise ambiental” está longe de ser uma crise propriamente dita: ela é intrínseca ao Asili Ocidental. Como nos aponta Marina Ani, a “questão ambiental” só deixará de ser uma questão quando o Asili Ocidental alterar suas premissas fundamentais; e aí a “cultura [Ocidental] deixaria de existir como ela é agora conhecida”. O Ocidente só resolverá seus “problemas ambientais” quando deixar de ser Ocidente. E neste processo, os que historicamente foram e seguem sendo subjugados pelas engrenagens de morte do Asili Ocidental tem muito a ensinar.
NOTAS
[1] Por mais que o assunto já não esteja mais “em pauta” na mídia, vestígios de óleo ainda estão sendo encontrados em algumas praias do Nordeste do país (IBAMA, 2020).
[2] Ao se referir aos episódios mais graves de contaminação enquanto acidentes, a indústria petroleira explicita o que Lesley Green (2014) chama de “cosmologia do cimento”: a perspectiva de que a cimentação dos poços de onde se extraem petróleo e gás garante, sem qualquer tipo de falha, que não haverão fluxos de substâncias contaminantes pelo subsolo (incluindo aí os diversos corpos d´água), de maneira que o cimento seria, segunda a autora, uma importante “substância mágica” (p. 11) no mundo Ocidental. Como demonstra Green, a cosmologia do cimento está diretamente relacionada à premissa moderna de que humanos estão separados da natureza.
[3] Uma maquinaria que implica, como afirmam Aza Njeri e Katiúscia Ribeiro (2019), não apenas morte, mas também roubo e destruição.
[4] Quando falo em Ocidente, não falo em termos de uma localização geográfica, mas sim no sentido em que Marimba Ani (2014[1994]) utiliza este e outros termos correlatos: enquanto um conjunto complexo de coisas que, reunidas, costumam ser reivindicadas pelo Ocidente como sendo emblemas do Ocidente.
[5] Vide o racismo científico que pairava sobre as teorias de evolucionismo social, origem da formação do campo antropológico, que de maneira geral consideram negros e indígenas como o primeiro estágio da “evolução humana”.
PARA SABER MAIS
ANI, M. Yurugu: an afrikan-centered critique of European cultural thought and behavior. Baltimore: Afrikan World Books, 2014 (1994).
GREEN, L. Fracking, oikos and omics in the Karoo: reimagining South Africa’s reparative energy politics. Os mil nomes de gaia: do antropoceno à idade da terra, 2014. Disponível em: https://osmilnomesdegaia.files.wordpress.com/2014/11/lesley-green.pdf Acesso em: 25 set 2019.
KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Cia. Das Letras, 2019. 85 p.
INSTITUTO BRASILEIRO DO MEIO AMBIENTE E DOS RECURSOS NATURAIS RENOVÁVEIS. Manchas de óleo: litoral brasileiro. S/d. Disponível em: https://www.ibama.gov.br/manchasdeoleo. Acesso em: 10 jan. 2020.
LATOUR, B. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. 2. ed. Rio de
Janeiro: 34, 1994[1991]. 152 p.
NJERI, A.; RIBEIRO, K. Mulherismo africana: práticas na diáspora brasileira. Currículo sem fronteiras, v. 19, n. 2, 2019, p. 595-608.
A AUTORA
Karine L. Narahara é Bacharel em Ciências Biológicas e Doutora em Sociologia e Antropologia pela UFRJ. Coordenadora do Núcleo de Estudos Ameríndios do Laboratório Geru Maa de Africologia e Filosofia Ameríndia, também da UFRJ. Pesquisadora associada da Universidad Nacional del Comahue (Argentina).