DA FÚRIA DAS ÁGUAS AO CHÃO EM BRASA: NOTAS SOBRE MUDANÇAS CLIMÁTICAS E LITERATURA EM MOÇAMBIQUE E NO BRASIL
José Welton
CENA 1: Na madrugada de 15 de março de 2019, após uma forte tempestade, o ciclone Idai atingia o sudeste da África e a costa de Moçambique, principalmente a região da Beira, devastando a cidade, provocando milhares de mortes e deixando um rastro de destruição. As imagens divulgadas pela imprensa revelavam uma cidade tomada pela água, pessoas abrigadas em telhados de casas, na copa de árvores em meio a um cenário dramático, no qual os sobreviventes se aglomeravam em busca de água, de comida e conviviam com aumento de doenças como a cólera. Eram lançados apelos à ajuda internacional ao passo que intelectuais e cientistas moçambicanos falavam a vulnerabilidade histórica da cidade, construída em um terreno alagadiço e, portanto, suscetível ao avanço da maré. Intelectuais moçambicanos falavam da inviabilidade geofísica da Beira e reiteravam matizes de uma desgraça anunciada, cujo risco se agudizava em virtude da elevação dos oceanos, tangenciando relações entre o extremo climático e as consequências do aquecimento global, bem com seus efeitos numa região marcada por uma história de oscilações entre enchentes e secas, como é o caso de Moçambique. Fenômenos como El Niño e La Niña eram indicados como fatores que contribuíam para a instabilidade climática que vem se radicalizando no contexto moçambicano, em uma complexa articulação entre efeitos da desigualdade socioeconômica e da permanência de problemas socioambientais.
CENA 2: Em setembro de 2019, eram denunciados os incêndios e queimadas na Amazônia. Dados do Inpe divulgavam o aumento considerável de tais episódios. Lideranças indígenas emergiram como principais porta-vozes do cenário de destruição em curso. As causas dos incêndios quase sempre apareciam associados à ação humana, tendo em vista os interesses de pecuaristas e agricultores no desmatamento para iniciar o cultivo ou a criação de gado. O governo brasileiro, por sua vez, ocupava o espaço público para atenuar o alcance da tragédia, negligenciando a urgência do fenômeno e se mantendo omisso em relação aos efeitos catastróficos para a fauna e para a flora, bem como as consequências na vida das populações locais assim como o debate em torno da emissão de gases do efeito estufa no agravamento do aquecimento global.
As duas cenas destacadas, experienciadas em contextos distintos, convergem na medida em que inscrevem o debate em torno das questões socioambientais, notadamente relacionadas, direta ou indiretamente, às mudanças climáticas. Em seu centro, os eventos apontam para causas e efeitos de um fenômeno cuja concretude vai se afirmando de maneira incontestável, embora o alcance ainda pertença ao campo de incertezas. Diante disso, a produção de imagens e a construção de narrativas colocam em tensão os limites entre ficção e realidade, conduzindo a um embaralhamento dessas instâncias e abrindo um complexo campo de debate no qual esgrimem dados e linguagens.
Nesse sentido, tais imagens conduzem ao desafio de examinar as produções discursivas em torno das quais as mudanças climáticas se tornam um tema central de narrativas que anunciam um futuro de catástrofes ou mesmo de extinção da humanidade. Contudo, há aqueles que acusam tais previsões de demasiado radicais, enquanto defendem a existência de um processo natural e atenuam a ação humana no processo de degradação ambiental e as consequências disso para o clima. Nesse contexto, as mudanças climáticas se tornam um amplo espaço de debate político que problematiza a constituição da sociedade moderna e ocidental, bem como seus pressupostos epistemológicos no que tange a relação entre natureza e cultura, por exemplo.
Dessa forma, inserir-se neste debate pressupõe assumir uma posição política que tende a ratificar ou negar a existência do aquecimento global e sua relação com a ação humana. Com isso, considerando as imagens aqui selecionadas, bem como a capacidade de instrumentos tecnológicos de projetar cenários climáticos para as próximas décadas, as mudanças climáticas são aqui entendidas como um fato incontornável cuja materialidade vai se apresentando, de diferentes maneiras e intensidades, nos quatro cantos do planeta. É justamente a ancoragem em fenômenos concretos que fazem soar o alerta, reiteram a urgência de medidas mitigantes e fazem com que a humanidade se interrogue em termos de coletividade.
Assim, a emissão dos gases do efeito de estufa é acionada como um fator decisivo para o aquecimento global e o consequente surgimento de extremos climáticos. Todavia, quando a discussão busca apontar responsáveis pelo problema e encontrar medidas que contenham o avanço,enquanto um compromisso compartilhado coletivamente, países desenvolvidos e em desenvolvimento não se mostram dispostos a sacrificar seu modelo de crescimento econômico e argumentam em torno da defesa de sua segurança enérgica, um dos principais entraves para contenção de emissão de gases do efeito estufa, como sugere Anthony Guiddens (2010). Segundo este sociólogo, ao citar o IPCC de 2007, o controle de emissão de gases se tornou um desafio a ser enfrentado de forma coletiva. Para tanto, defende a necessidade do que chama de convergência política e econômica, indicando possíveis caminho de uma política climática que seja eficiente de fato. O autor parte do pressuposto de que o crescimento econômico, como praticado desde a revolução industrial, redunda no aumento das emissões.
É preciso considerar, ainda que, historicamente, os maiores responsáveis pela atual conjuntura são os países desenvolvidos, cuja política de crescimento esteve associada à utilização de combustíveis fósseis, principais agente na emissão e concentração de gases do efeito estufa. Enquanto estratégia para conter o quadro de emissões e de aceleração do aquecimento, Guiddens sinaliza para a eficiência de uma geopolítica comprometida com a redução de emissões e propositiva em relação à segurança enérgica. Desse modo, o desafio se apresenta em diversas direções e convoca múltiplas categorias, inclusive aquelas que tangenciam desigualdades econômicas entre países centrais e periféricos, bem como aquelas que se apresentam no nível interno. Ao que parece, os riscos e o preço a ser pago tendem a ser compartilhados por todos.
Articulados a essas dinâmicas, as imagens que iniciam este texto localizam geopoliticamente os efeitos das mudanças climáticas no contexto da periferia econômica, considerando os entraves da pobreza e as estratégias desenvolvimentistas de nações como o Brasil e como Moçambique.
Voltando-se para as conclusões do IPCC, Painel Intergovernamental das Mudanças Climáticas, criado em 1988, Guiddens argumenta:
O IPCC diz que o século atual pode vir a ser dominado por guerras travadas em função de recursos naturais; que pode haver inundações de cidades costeiras, provocando miséria em massa e migrações em massa, e que o mesmo pode ocorrer à medida que áreas secas se tornam mais áridas. Dada sua localização e a falta de recursos, as regiões mais pobres serão mais gravemente afetadas do que os países desenvolvidos. Mas este terão seu quinhão de problemas, que incluirão um número cada vez maior de episódios climáticos violentos.
Do ponto de vista da política internacional, um exemplo desses impasses diplomático é o esvaziamento do Acordo de Paris, de 2015, ratificado na COP 21 por 195 países em 2016, que deveria ser um importante instrumento de confluência política para garantir a redução na emissão de gases do efeito estufa, cujo efeito seria a manutenção do aquecimento no teto máximo de 2 graus. Para tanto, compromissos políticos deveriam ser estabelecidos, ainda que isso representasse impactos necessários à economia e sua dependência por combustíveis fósseis, enfatizando o desenvolvimento do uso de fontes de energias menos poluentes, mesmo que, por vezes, mais dispendiosas ou menos eficazes do ponto de vista econômico e produtivo.
Enquanto o debate político convive com tensões que continuam a opor interesses entre os estados, ainda voltados para uma perspectiva soberanista que impede a eficácia do comprometimento coletivo na mitigação das mudanças climáticas, cenas de catástrofes ambientais se avolumam como imagens que parecem incorporar estratégias da própria ficção diante do imperativo da realidade que se apresenta. A fim de delinear esses cenários, a descrição de fenômenos em curso que tendem a se agudizar evocam uma realidade marcada por um sentido de intensificação e exaustão, conforme modelos de previsão e como sugere Guiddens em seu esforço descritivo para além de controvérsias que atravessam o tema:
As geleiras vêm-se reduzindo nos dois hemisférios e, em média, a cobertura de neve está menor do que era. O nível dos mares elevou-se ao longo do século XX, embora haja controvérsias consideráveis entre os cientistas a respeito de um número exato. É provável que o aquecimento intensifique o risco de secas em algumas partes do mundo e leve a aumento da precipitação pluviométrica em outras. Os dados indicam que há hoje mais vapor d’água na atmosfera até mesmo do que poucas décadas atrás, o que exerce grande influência em padrões meteorológicos instáveis, inclusive tempestades tropicais e inundações. Nos últimos 40 anos, os ventos de oeste para leste ganharam mais força. Os ciclones tropicais tornaram-se mais frequentes e mais violentos no Atlântico durante esse período, provavelmente como resultado do aquecimento.
Diante de tal conjuntura, qualquer oposição entre realidade e ficção é abalada pelas imagens que emergem das catástrofes climáticas e que são apropriadas pelo cinema e pela literatura. Segundo Wolfgang Iser (2002), os pressupostos que nortearam essa separação dizem respeito a um tipo de “saber tácito” que precisa ser confrontado com procedimentos específicos incorporados pela literatura a fim de organizar estratégias discursivas cujo alcance epistemológico incida sobre o modo pelo qual o texto literário repete a realidade, esta, por sua vez, distinta em relação ao contexto ao qual o texto se refere.
Nesse sentido, as considerações de Iser (2002) contribuem para o exame de textos literários que desafiam os limites entre a ficção e os dados da realidade por ela incorporados. Para tanto, o crítico utiliza a categoria de atos de fingir, que seriam uma transgressão de limites que opõem a realidade da ficção, apostando numa espécie de continuum entre essas dimensões de acesso ao conhecimento sobre o mundo. Esses procedimentos colocam, no lugar da oposição binária, uma relação triádica na qual comparece também o imaginário. Este tende a se materializar, isto é, tornar-se menos difuso e informe na medida em que, ao dobrar-se sobre a realidade, enseja um contexto no qual a ficção pretende selecionar e organizar aquilo que está disposto de forma arbitrária no próprio imaginário. Assim, o procedimento no qual surge o fictício se configura como ato de fingir, borrando fronteiras entre a realidade e a ficção e flagrando traços do imaginário: “Se o fingir não pode ser deduzido da realidade repetida, nele então surge um imaginário que se relaciona com a realidade retomada pelo texto. Assim o ato de fingir ganha sua marca própria, que é provocar a repetição no texto da realidade vivencial”.
Alguns anos antes da tragédia que se abateu na Beira, por exemplo, Mia Couto publicava uma narrativa chamada Rosita, cujo enredo conta a história de um narrador que descreve sua experiência numa tempestade que leva ao transbordamento dos rios e à inundação de sua comunidade.
Entre o onírico e o factual, é narrada a cena na qual as águas tomaram a vila. A linguagem poética intensifica a experiência do próprio narrador, que oscila entre a descrição da paisagem e as sensações da mudança do contexto depois da intensificação das chuvas. A narrativa centrada no percurso do próprio narrador percorre um mundo esvaziado no qual sobra como signo o afeto de uma amizade que une o narrador ao seu boi, de quem já havia se separado pela guerra, que emerge como signo também da desordem. O Homem e o animal se veem amalgamados pela própria experiência limítrofe diante da agência da força geológica das águas. Com isso, a personificação dos elementos da natureza contrasta com a própria animalização do narrador e evidencia códigos que inscritos como possível narrativa das mudanças climáticas se organizam conforme um imaginário específico:
Foi há cinco dias. Me vieram dizer: você saia daqui, isto tudo ficará coberto pelas águas. Disseram que o rio ia enlouquecer. Que eu não sabia mas este rio ligava com outro e esse outro, por sua vez, se ligara à parte do céu onde os deuses guardam a chuva.
O clímax da narrativa fica por conta da imagem de salvamento do narrador, que, do telhado de uma casa, no qual, segundo sua narrativa, se mantem na companhia de seu boi de estimação. Juntos, segundo a narrativa, vivem a experiência concreta de destruição emaranhada à introspecção de um transe marcado pela fragmentação de imagens, provocadas pelo dado real da contaminação das águas:
O bicho, teimoso, quadrupetou-se. E eu, já em desespero: você não vai, eu também não vou. Prontos, morremos os dois, um sem o outro. E sentei me com as poucas forças que me restavam. O soldado, então, perdeu as paciências e me enlaçou. E subi pelos ares, rodopiando feito borboleta, dançando sem outro soalho que não fosse o corpo do sul-africano.
Levado à força, me atiraram para dentro do helicóptero. Que é isso, agora? A pessoa é salva contra sua vontade? Falei para os outros, meus irmãos, que se agrupavam na barriga do aparelho [...]
Mas os outros, salvados como eu, se espantaram. Não havia nenhum boi junto de mim. E um outro até se adiantou: ele vira, arrastada pela torrente, a
minha
chifraria. Assistira àquilo há mais de dois dias. O animal já devia estar padecendo de pouca vida, se via um só chifre apontando os céus. Afinal
nunca
houvera um boi no meu telhado, eu devia estar delirado, motivo das águas
sujas
que bebera.
Como índice da narrativa, o título somente no final parece fazer algum sentido. Afinal, sobrepondo-se à visão embaralhada do narrador que já não percebe os limites entre a realidade factual e as armadilhas de sua imaginação um ponto de vista exterior faz eclodir o imperativo da realidade, de modo que o boi imaginário se apresenta como um cadáver levado pela correnteza e se torna um símbolo da morte e da destruição.
Em um ato de provocação à capacidade da ficção de intensificar a realidade, figura uma nota ao final da narrativa que enuncia um possível contexto referencial, já transgredido pelo corte do fictício na formulação de um narrador delirante e de um boi simultaneamente real e imaginário: “Escrevi esta estória com base em depoimentos que recolhi durante as cheias do rio Limpopo, em Março de 2000. Rosita é uma menina que, realmente, nasceu numa árvore. A sua mãe havia se refugiado nesse que era o único ponto alto na paisagem inundada”.
Dado a experiência de abandono e de tristeza vivida pelo narrador, sua visão flagra no cenário próximo uma cena inusitada o nascimento de uma criança, uma menina, que vem ao mundo na copa de uma árvore, de onde sua mãe aguarda o salvamento da inundação. Neste momento, o narrador sinaliza para uma espécie de re-encantamento que o faz transgredir a fatalidade da morte de seu boi, seu companheiro e, decerto, força colaborativa na lida cotidiana como trabalhador do campo:
Fiquei ali, calado como um órfão. Fui olhando meus colegas de viagem. Todos pingavam: água, medo e espanto. Até que, de repente, avistei Sofia Pedro, minha grávida vizinha. Em seus braços um embrulho me fez suspeitar. Ela entreabriu a capulana e me fez ver uma menina, mais recente que um orvalho.
— Não diga você ninhou essa menina em cima da árvore!?
Nunca eu vira tão grande cansaço num só corpo. Mas Sofia ainda sorriu, e murmurou:
— É Rosita, essa é minha Rosita.
Calei-me com meus botões. Olhei a criança, meus olhos se acertaram. A menina parecia chorar. Mas não se escutava, tudo era abafado pelos motores. Sofia Pedro pegou na menina e a colocou junto ao peito. A voz estreitinha de Rosita foi crescendo, sobrepondo se aos motores do helicóptero. Tudo se amaciou dentro de mim, uma inundação me afogando o coração. E, de novo, me vi em nuvem, flutuando como um navio. Eu viajava, junto com os meus, para esses nunca vistos campos onde meu boi pastava o matinal cacimbo.
Sim, nesse destino haveria terra. De novo, o infinito território da vida. E Rosita já nascia em mim.
Rosita se converte, portanto, em uma personagem que emerge dividida entre a ficção e a realidade, tingida com as cores de um imaginário que alude à elevação das águas, possivelmente em virtude de desordens climáticas que assolam Moçambique, bem como da capacidade de resiliência que transforma a copa de uma árvore em um lugar no qual é inaugurado um outro modo de olhar o mundo. Ali a criança é acolhida pelo universo não-humano, revelando uma agência capaz de comungar ou de se rebelar contra a humanidade. Contudo, não esqueçamos que Rosita é também um sujeito concreto enunciado na nota que se torna o referente para a narrativa.
Tudo isso, seguindo as trilhas propostas por Iseer (2002), se torna possível porque a ficção, nas suas relações de deslocamento com a realidade, organiza um imaginário resiliente e empenhado na continuidade da vida, apesar de situações limítrofes como a guerra ou as mudanças climáticas.
Rosita, na particularidade de sua experiência vinculada ao imaginário moçambicano, representa ainda um futuro que teima em existir apesar das ameaças das catástrofes ambientais. O compromisso ético com as gerações futuras aparece como um elemento incontornável das consequências das mudanças climáticas. O nascimento de Rosita, a despeito de toda destruição ao redor, sinaliza para uma reação à própria interdição do futuro, cuja realidade se sobrepõe à própria ideia de tornar efetivas políticas que contenham a emissão de gases do efeito estufa e de todas as consequências socioambientais provocadas pelo aquecimento global.
Em termos probabilísticos, embora não se possa falar em certezas, as regiões tropicais tendem a sofrer o aumento pluviométrico e as regiões costeiras, por exemplo, serão ameaçadas pela elevação de níveis dos mares, enquanto efeito cascata e em conexão do derretimento de geleiras. O aumento de tempestades tropicais surge também como um evento a ser considerado, interferindo em ecossistemas e tornando ainda mais vulnerável a vida das populações pobres de Moçambique que se aglomeram nas margens do mundo e que convivem com carências e sem instrumentos para mitigar tragédias como a da Beira.
A ocorrência de secas já bastante propícia na savana se intensifica e problemas de segurança alimentar se agudizam, como fora em 2016, quando Moçambique foi atingida por uma das mais severas secas de sua história, levando a morte de milhares de pessoas e tornando a vida dos moçambicanos ainda mais precária em termos de segurança alimentar.
No contexto da Amazônia, por sua vez, já há algumas décadas os incêndios e o desmatamento atrelado aos interesses de agricultores e pecuaristas aparecem como principais causas da emissão de gases do efeito estufa, acelerando, portanto, o processo de aquecimento. Acrescente-se a isso a pressão empreendida pela mineração, cujas práticas, além de contribuirem para liberação de gases e de acelerar o desmatamento, torna-se uma ameaça aos ecossistemas da florestas.
Atenta a isso, a narrativa sobre O Ouro canibal, de Davi Kopenawa, delineia um espaço de interação e de interdição entre elementos que habitam a superfície da floresta e suas estranhas, apresentando uma espacialidade que retoma certa concepção organizacional do mundo yanomami com sua dimensão hierárquica, assim como traduz a exploração das entranhas da terra como um ato a ser controlado, dado seu caráter de risco eminente. Ou seja, aquilo que aparece nas narrativas científicas sobre a emissão de gases do efeito estufa provocada pela ação antropogênica, é definido como uma espécie de proibição agenciada na própria concepção de acesso aos recursos dispostos no universo simbólico e material dos yanomami desde suas narrativas de origem. Nesse sentido, a narrativa confronta a precaução de Omama com a ganância de Yaosi, figuras ancestrais que, antagonicamente, na origem do mundo, são articuladas em uma genealogia que vincula o tempo presente ao imaginário mítico atualizado:
As coisas que os brancos extraem das profundezas da terra com tanta avidez, os minérios e petróleos, não são alimentos. São coisas maléficas e perigosas, impregnadas de tosses e febres, que só Omama conhecia. Ele, porém, decidiu no começo, escondê-las sob o chão da floresta para que não nos deixassem doentes. Quis que ninguém pudesse tirá-las da terra, para nos proteger[...] Porém, apesar da prudência de Omama, Yaosi conseguiu assim mesmo fazer chegar a notícia da existência desse metal aos ancestrais brancos. Por isso eles acabaram por atravessar as águas para vir à sua procura na terra do Brasil. Não à toa que os brancos querem hoje escavar o chão de nossa floresta. Eles não sabem, mas as palavras de Yaosi, o criador da morte, estão neles. Assim é. Os garimpeiros são filhos e genros de Yaosi. Tornados seres maléficos, esses brancos só fazem seguir seus passos. São comedores de terra cheios de fumaça de epidemia. Acham-se todo-poderosos mas seu pensamento é cheio de escuridão. Eles são sabem que Yaosi colocou também a morte nesses minérios que tanto buscam. Omama os escondeu para que o choro do luto não nos atormentasse sem trégua. Ao contrário, deu-nos os xapiri, para podermos nos curar. Nós somos seus genros e filhos. É por isso que tememos arrancar coisas ruins da terra. Preferimos caçar e abrir roças na floresta, como eles nos ensinou, em vez de cavar seu solo como tatus queixadas!
Os efeitos do desmatamento para o aumento de emissões de gases do efeito estufa são frequentemente divulgados na narrativa científica. No que concerne à floresta amazônica, não cessam os sinais de alerta que colocam a degradação florestal como um elemento decisivo para o aumento de emissão, bem como apontam para o fato de que a floresta é um importante elemento no controle desses gases. Sobre o tema, o cientista Carlos Nobre (2010) explica, ao sinalizar para o papel das florestas na mitigação dos efeitos das emissões, como o desmatamento contribui para a fragilização do papel do biota amazônico como sumidouro de carbono, cujo papel representa 36 por centro da remoção de CO2 da atmosfera.
Diante disso, narrativas sobre a mineração no território yanomami se apresentam como modos de explicar o processo pelo qual a corrida extrativista para a floresta amazônica implicou na alteração de ciclos climáticos. Associando a narrativa histórica da invasão do território yanomami à cosmopolítica deste grupo indígena, Kopenawa (2015), em O ouro canibal, justapõe aspectos das narrativas que se situam entre a realidade factual e uma organização discursiva que, no limite, guarda relações com a noção de ficção tanto do ponto de vista de procedimentos discursivos quanto de modo de acesso a um dado conhecimento do mundo. Assim, elabora sua narrativa, segundo a qual, o demiurgo dos yanomami, Omama, ao construir o mundo, teria mantido sob o solo da floresta minérios e espíritos cuja existência poderia ser nociva aos humanos, considerando a reação das forças geológicos que se configura tanto no aquecimento quanto na paisagem convulsionada ao se tornar ameaça à humanidade em sua pluralidade, incluindo os yanomami, cujo papel implica na proteção da floresta e na manutenção do equilíbrio entre os estratos da vida.
Em tom de advertência, o narrador prevê catástrofes que serão consequências da exploração engendrada no curso das ações antrópicas, revelando um caleidoscópio de imagens que produzem o fim do mundo segundo o conhecimento xamânico experimentado pelo narrador no plano do sonho, enquanto forma de agência que inscreve outras ontologias e modos de narrar o risco iminente que espreita a sociedade moderna e capitalista:
Se os brancos começarem a arrancar o pai do metal das profundezas do chão com seus grandes tratores, como espírito de tatu-canastra, logo só restarão pedras, cascalho e areia. Ele ficará cada vez mais frágil e acabaremos todos caindo debaixo da terra. É o que vai ocorrer se atingirem o lugar em que mora Xiwãripo, o ser do caos, que, no primeiro tempo, transformou nossos ancestrais em forasteiros. O solo, que não é nada grosso, vai começar a rachar. A chuva não vai mais para de cair e se afogarão as águas vão começar a transbordar de suas rachaduras. Então, muitos de nós serão lançados à escuridão do mundo subterrâneo e se afogarão nas águas do seu grande rio Moto uri u. Escavando tanto os brancos vão acabar até arrancando as raízes do céu, que também são sustentadas pelas raízes do metal de Omama. Então ele vai se romper novamente e seremos aniquilados, até último. Esses pensamentos me atormentam muito. Por isso levo em mim as palavras de Omama para defender nossa floresta. Os brancos não pensam nessas coisas. Se o fizessem, não arrancariam da terra tudo o que podem, sem se preocupar. É para acabar com isso que quero fazer com que eles ouçam as palavras que os xapiri me deram no tempo do sonho.
A narrativa tangencia, nesse movimento, elementos que incidem sobre o tema do aumento da emissão dos gases do efeito estufa no contexto da Amazônia, segundo uma perspectiva yanomami. Devido à penetração nas entranhas da terra em busca de metais, situa a narrativa como parte da acumulação capitalista que perpassa a ocupação predatória extrativista imposta às populações yanomami.
O alerta de extremos climáticos delineia cenários com consequências que atingirão tanto indígenas quanto o “povo da mercadoria”, como sugere Kopenawa (2015). Dessa forma, enfatizando a variabilidade climática que tem sido alvo de medições dos instrumentos tecnológicos que vem monitorando o clima em diversos pontos do globo, a narrativa de Kopenawa salienta o modo pelo qual a desordem climática levará à emergência de forças geológicas já em completa desarmonia com os humanos, tendo em vista a ruptura de interdições impostas desde o movimento de constituição do mundo, em cuja conformação as palavras demiúrgicas de Omama se ocuparam de estabelecer posições e papeis alicerçados em fundamentos cosmológicos que deveriam ser aprendidos e propagados no tempo e no espaço.
A variabilidade pluviométrica, apesar de ser um dos temas sobre os quais mais pairam incertezas, nos cenários prospectivos, tende a conduzir a extremos que levarão a enchentes ou secas, conforme a disposição de cada local. Estudiosos como Nobre (2010) falam de uma possível savanização da Amazônia, por exemplo. Kopenawa , por sua vez, descreve um cenário no qual aparecem associadas a extração de minérios e mudanças climáticas cujo alvo será a própria floresta, revelando impactos socioambientais profundos, mas também a própria inviabilidade da vida humana, voltando-se para os procedimentos narrativos da cosmologia yanomami para explicar o aquecimento do solo da floresta, sob a pressão da ação antrópica advinda da mineração:
Não foi à toa que Omama soterrou o ferro, o ouro, a cassiterita e o urânio, deixando acima só os nossos alimentos. Assim guardados pelo frio dos seres da terra que chamamos maxatari e do ser maléfico do tempo chuvoso, Rueri, os minérios não apresentam perigo. Mas se os brancos os arrancarem do solo, afugentarão o vento fresco da floresta e queimarão seus habitantes com sua fumaça de epidemia. Nem as árvores, nem os rios, nem mesmo os xapiri poderão conter seu calor. Então, ao ficar sem peixes para comer e sem néctar das flores pra beber o ser sol Mot’ okari, que é também um ser onça, descerá à terra, enfurecido, para devorar os humanos como se fossem macacos moqueados. Depois, mais tarde, quando os brancos tiverem acabado de extrair todos os minérios, seu calor irá se dissipar e a terra se resfriara pouco a pouco, pois são eles que aquecem suas profundezas. A lamina dos machados não ficam ardendo sob o sol? Assim é. De dia, o sol é muito forte e não deixa o frio descer do céu à terra. De noite, é o calor que ficou no metal da terra que o empurra para as alturas. Onde o solo é muito quente, é porque no mais fundo dele há pedras e metais. Onde o solo é vazio, faz muito frio, as nuvens são baixas e quase não se vê o sol.
Ícones como fumaça, entranhas da terra, minérios, metonimicamente reforçam a dimensão biofísica de agentes que, tendo sido criados com o objetivo de ajudar a humanidade, passam a agir de forma descontrolada. Com isso, ameaçam a integridade humana como uma estratégia de predação que responde ao uso, à manipulação irresponsável e à violação de contextos nos quais habitam seres marcados pelo cruzamento de forças, por vezes, desconhecidas, cuja manipulação visa ao equilíbrio de um mundo no limiar entre o tangível e o intangível, mantendo papeis definidos desde a narrativa primordial.
Do ponto de vista linguístico, a linguagem do texto apela para elementos que indicam condicionantes, bem como mantém a narrativa voltada para o futuro, fortalecendo um horizonte de expectativa que traduz incertezas e inseguranças em torno do debate acerca das mudanças climáticas. Tornado personagem da narrativa, o sol, em sua fúria, compreende um signo capaz de ser um predador tendo em vista a ruptura da reciprocidade e da interdependência entre formas de vida reduzidas ao desejo da extração de minérios.
A dificuldade de materialização e de tornar palpável o futuro que se apresenta como risco e como signo de caos é mobilizada na linguagem, associando o contexto cosmológico yanomami e a linguagem prospectiva de um futuro marcado pela ameaça na forma de extremos climáticos ou catástrofes naturais. Assumindo uma crítica mordaz aos padrões de relacionamento entre humanos e forças geológicas, Kopenawa evoca a necessidade de medidas urgentes que ecoam em compromissos políticos com o futuro da humanidade.
Nesse sentido, faz eco às medidas que, do ponto de vista de acordos coletivos, apontam para urgência da redução da emissão de gases, apelando para procedimentos que defendem economias voltadas para a baixa emissão de carbono até a própria negação da acumulação capitalista ainda em voga no discurso neoliberal. Em termos geopolíticos, essa questão adensa o problema na medida em que coloca em tensão países centrais, historicamente mais poluidores, e países periféricos, que mantêm seus projetos de acumulação e de desenvolvimento, enquanto reivindicam o direito de continuar suas emissões, apesar dos acordos para conter as taxas de emissão.
O tema das mudanças climáticas, além de se apresentar como um debate que mobiliza números e que inquieta as projeções da ciência, se converteu em um assunto que se espraia na dimensão política. Nesse sentido, tornou-se também um problema da linguagem, mobilizando narrativas que prospectam o futuro, que colocam em tensão pontos de vista diversos e que, sobretudo, se constitui como construção discursiva.
A literatura, então, embora não tenha tornado a questão central, apresenta perspectivas que se ocupam de colocar em tensão limites entre a ficção e a realidade dos fatos. Para tanto, tendem a descrever e/ou narrar contexto cuja materialidade, por vezes absurdo, ultrapassa um limite plausível do algo que seja regular, inserindo o improvável, o imponderável; com isso, por meio de procedimentos diversos, tingem a própria realidade com as cores da ficção, realizando um movimento complexo que recusa a polarização entre ficção e realidade.
Na perspectiva aqui elaborada, parece produtivo pensar na proposição de Iser (2002), ao retomar aqueles limites no plano epistemológico e discursivo, inserindo, na relação usualmente binária, a noção elástica e construtiva do imaginário. Dessa forma, ficção, realidade e imaginário se tornam categorias a partir das quais a literatura se define como processo de conhecimento sobre o mundo, reforçando sua posição transgressora situada em uma encruzilhada de caminhos na qual as narrativas apontam para um horizonte possível, mobilizando formas e estratégias que criativamente deslocam certezas e possibilita a fundação de outras realidades.
PARA SABER MAIS
COUTO, Mia. Na berma de nenhuma estrada. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
GUIDDENS, Anthony. A política da mudança climática. Trad Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
ISER, Wolfgang. Os atos de fingir ou o que é fictício no texto ficcional. IN: LIMA, Luiz Costa Lima (org). Teoria da literatura em suas fontes. Vol 2. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras do chão. Trad Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
O AUTOR
José Welton Ferreira dos Santos Junior é Professor da Universidade do Estado da Bahia, mestre em Estudos Étnicos e Africanos (UFBA), doutorando no Programa de Pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa (USP), no qual desenvolve pesquisa sobre as relações entre a literatura e as questões socioambientais.