A PANDEMIA COMO ESPELHO
Há quem diga que a pandemia, ao desacelerar o mundo, mostrou que possibilidades, antes impensadas, são possíveis e até mesmo factíveis. Em um texto recente, Bruno Latour aponta essa como a mais surpreendente lição do coronavírus. Dessa lição seria possível fazer uma imediata ilação: se o mundo pode desacelerar por conta da pandemia, ele também poderia fazê-lo para combater os efeitos nefastos da crise climática.
É um fato, o mundo pode desacelerar, ou seja compreendemos agora que não se trata de uma impossibilidade e sim de uma escolha. Mas será essa uma revelação da pandemia ou uma verdade que nos custava encarar?
Nos custa encarar que temos ferramentas, instrumentos, ciência e técnica para retardar o aquecimento do planeta. Conhecemos fontes alternativas de energia, sabemos que é possível viver com menos e podemos gerar mais e mais ideias para um mundo com atividades de baixa emissão de carbono. Dói saber que a dificuldade é descolonizar o imaginário, é conceber outro futuro. A pandemia é o espelho onde contemplamos o nosso fracasso, como humanidade, em imaginar um novo mundo.
O clima vem mudando há décadas. Alertas vêm sendo dados, um atrás do outro. Compromissos internacionais sucessivamente assinados e ignorados. Um comportamento que parece suicida, mas possivelmente tem mais de autoconfiança por um lado e uma certa síndrome de negação do outro. Confiança na tecnologia, que mais cedo ou mais tarde resolveria a questão, e negação, uma vez que mudar o estilo de vida é trabalhoso e para muitos, indesejável. Só tomamos remédios amargos quando estamos convencidos da gravidade da doença…
No Brasil, a situação assume cores ainda mais dramáticas, uma vez que parte significativa das emissões de gases de efeito estufa tem relação com as mudanças no uso da terra. O ano de 2016, por exemplo, ilustra bem essa situação. Nesse ano, as emissões nacionais de gases de efeito estufa[1] subiram 8,9% em comparação com 2015. Foi o valor mais alto desde 2008 e o maior aumento desde 2004. Foram 2,2 bilhões de toneladas brutas de gás carbônico equivalente (tCO2e)[2], contra os 2 bilhões de tCO2e em 2015. Esse total representou 3,4% do total mundial e colocou o Brasil como sétimo maior poluidor do planeta. O ano de 2016 foi o segundo ano consecutivo de aumento e aconteceu durante uma das piores recessões da história do país. Enquanto nesses dois anos, 2015 e 2016, as emissões subiram 12,3%, o PIB caiu 7,4 pontos. As emissões por mudanças do uso da terra cresceram 23% em 2016, respondendo por 51% de todos os gases de efeito estufa que o Brasil lançou na atmosfera.
Por outro lado, em 2016, quase todos os outros setores da economia tiveram queda nas emissões. O setor de energia apresentou um recuo de 7,3%, maior baixa em um ano desde o início da série histórica, em 1970. As emissões do setor de processos industriais caiu 5,9%, e do setor de resíduos, 0,7%. As emissões da agropecuária subiram 1,7% e essa atividade se tornou a principal responsável pelas emissões de gases de efeito estufa no país: respondeu por 74% das emissões nacionais em 2016, somando as emissões diretas da agropecuária, 22%, e as emissões derivadas das mudanças do uso da terra, 51%.
Entre 1990 e 2016, o Brasil emitiu um total de 62 bilhões de toneladas brutas de CO2 equivalente (tCO2e), dos quais dois terços, cerca de 39 bilhões de toneladas brutas de CO2, foram gerados por mudanças de uso da terra. Vale assinalar que a principal fonte de emissão atribuída à mudança do uso da terra é o desmatamento (94% do total no período 1990-2016). Isso quer dizer que a tendência de emissões brutas derivadas das mudanças do uso da terra depende fortemente dos resultados de políticas e ações que combatam ou incentivem o desmatamento.
Tal cenário mostra que para reduzir suas emissões e contribuir de forma efetiva para o combate às mudanças climáticas, o Brasil poderia apenas coibir as práticas ilegais. Se as leis fossem cumpridas, se houvesse de fato fiscalização e medidas de controle, as emissões brasileiras seriam reduzidas significativamente. De lá para cá, porém, a situação só se agravou: desmatamento, grilagem, mineração e garimpo ilegais têm sido a regra e contribuem decisivamente para as emissões de gases de efeito estufa. Vale dizer que esse é apenas um dos aspectos dessas práticas que estão relacionadas também com várias outras situações inadmissíveis, como roubo, intimidação, homicídio e a contínua perda de biodiversidade e dos conhecimentos dos povos indígenas e comunidades locais.
Esse cenário também revela um outro aspecto, que a pandemia do coronavírus deixou mais evidente: o imediatismo e o egoísmo de nossas ações e a dificuldade de pensar no futuro. Abater, por exemplo, uma floresta, como a Amazônia, de mais de 50 milhões de anos; lar de centenas de povos, com culturas distintas; com uma diversidade gigantesca de plantas, animais e microorganismos que podem ser os agentes de uma próxima pandemia, mas também que podem fornecer os princípios ativos para a cura de inúmeras doenças, para garimpar, vender madeira ou abrir um pasto é, no mínimo, uma atitude de pouca visão. Quando essa prática se torna política de governo, ainda que não de forma oficial, com a conivência dos brasileiros, fica claro que escolhas imediatistas estão sendo feitas e que o futuro não faz parte de qualquer projeto do país.
A pandemia revela esse padrão de comportamento em diversos casos. O descarte dos equipamentos de proteção individual contra o coronavírus é um exemplo. Já há relatos do aumento de plástico nos mares, à medida que esses equipamentos, como máscaras e luvas, são descartados. A quantidade de plástico nos oceanos já é gigantesca, o acréscimo de equipamentos de proteção individual, que protegem os humanos, mas matam diversos animais marinhos, agrava sobremaneira o cenário. Mas, assim como não nos preocupamos com o desmatamento, com espécies de animais sendo deslocados e com as causas e consequências do tráfico de animais até que o coronavírus se manifestasse entre nós causando grande letalidade, a situação dos animais marinhos ameaçados de extinção, a poluição dos oceanos, o aumento da temperatura e a desregulação dos ciclos químicos e biológicos só serão alvo de atenção quando causarem tragédias que ameaçarem a vida no planeta.
Aqui, mais uma vez, a pandemia faz as vezes de espelho para humanidade. Enquanto as atividades humanas afetam os que, como Ailton Krenak diz, estão meio esquecidos nas bordas do planeta, nada acontece. Por exemplo, há anos, o desmatamento vem causando o aumento de doenças. A malária é um exemplo. A doença é muito mais frequente em áreas desmatadas e é possível relacionar número de hectares de florestas destruídos com casos de malária. Outro exemplo é o ebola. Há relatos que conectam os surtos da doença às mudanças radicais do uso da terra, como conversão de áreas naturais em plantios de algodão e de palma, em grande escala e em regime de monocultura. Ainda assim, foi preciso uma pandemia para nos atentarmos para a relação entre doenças e desmatamento mas, talvez, baste um tratamento ou uma vacina, para que nos esqueçamos rapidamente disso e voltemos ao nosso cotidiano, do jeito que era antes ou mesmo de forma mais predatória. Ou seja, quiçá nem mesmo uma pandemia, dessas proporções, seja suficiente para que alguma mudança ocorra.
O que vem acontecendo, há anos, com as mudanças climáticas é equivalente. Quem tem sido afetado pelas tragédias climáticas, apregoadas como “desastres naturais”, como secas, enchentes, deslizamentos, chuvas torrenciais e calor descomunal? Os que vivem nas bordas do nosso mundo, nas periferias das cidades, em comunidades rurais longínquas em continentes como o nosso e a África, considerados lugares de sub-humanidade. Os efeitos sobre o que, mais uma vez sabiamente, Ailton Krenak chama de "clube seleto da humanidade” - que não aceita novos sócios, vale lembrar - são ainda pequenos, considerando que os membros desse clube vivem em lugares mais seguros, tem recursos e tecnologias a seu dispor e convenceram o resto do mundo de que não há nenhuma outra forma possível de viver.
O sucesso deste "clube seleto da humanidade” em criar um pensamento hegemônico, sem janelas, nem rachaduras, não chega a surpreender. O esforço deste “clube" nos últimos três séculos tem sido esse: mostrar que não há alternativas, essa é a única forma de estar no mundo. Qualquer trinca nessa parede de hegemonia deve ser rapidamente eliminada para que não haja a hipótese de sequer vislumbrar outras possibilidades. O êxito é tão retumbante que mesmo agora que a pandemia abriu um buraco nesse muro, não entendemos o que vemos do outro lado e nos dividimos entre os que querem correr de volta para o mundo conhecido, por mais brutal que ele seja, e aqueles que tentam fazer sentido, tentam entender o que é possível entrever através do buraco.
“A primavera chegará, mesmo que ninguém mais saiba seu nome, nem acredite no calendário, nem possua jardim para recebê-la.”. Esse verso da Saudação à Primavera, de Cecília Meireles, traz o consolo dos ciclos constantes, da Terra que gira, da previsibilidade do mundo que pode tranquilizar a alma e permitir fazer planos e viver a vida. Se a primavera não chega, se o inverno vem antes, se o verão se eterniza e se a chuva não cai, a vida se torna uma sucessão de eventos inesperados, transformando a existência num desafio constante. Apesar da crise climática ser premente e de suas consequências serem atrozes, a maioria de nós ainda não percebeu que a maior das tragédias será passar a viver num mundo imprevisível.
A pandemia do coronavírus nos dá uma ideia do que pode ser um mundo assim, imprevisível. Planos impossíveis de serem feitos, vidas pendentes, um horizonte de tempo achatado e uma procura angustiada pelo conhecido e pelo esperável. Talvez resida aí a possibilidade de mudança: uma compreensão mais profunda do que nos espera se continuarmos nesse caminho. Mas não haverá outro mundo possível se não conseguirmos dar sentido e concretude às alternativas existentes, evitando que elas sejam rapidamente apropriadas pelo capitalismo global, o perigoso jogo do “clube seleto”, e se não desenharmos com presteza futuros onde as pessoas desejem viver.
Intervenção da autora em obra de Jaqueline Albernaz.
Curiosamente, a própria Cecília Meireles, na Saudação à Primavera, aventa a possibilidade de que talvez um dia a primavera não chegue, não siga mais o ciclo da “rotação da eternidade”, mas não porque a humanidade bagunçou todos os ciclos, mas, sim, porque "Algum dia, talvez, os homens terão a primavera que desejarem, no momento que quiserem, independentes deste ritmo, desta ordem, deste movimento do céu.” Essa é certamente a aposta do “clube seleto”, dominar completamente a natureza e a primavera. Resolver a crise climática, elevando suas apostas na tecnologia, de forma a fazer mudanças para que tudo permaneça igual. Mas vale a lembrança das linhas que encerram esse trecho da Saudação à Primavera: "E os pássaros serão outros, com outros cantos e outros hábitos, — e os ouvidos que por acaso os ouvirem não terão nada mais com tudo aquilo que, outrora se entendeu e amou.”
NOTAS
[1] Emissões do setor de mudança de uso da terra - SEEG.
Disponível em: http://seeg.eco.br/wpcontent/uploads/2018/05/relatorios_SEEG_2018_-_MUT_Final_v1_.pdf
[2] Como os gases de efeito estufa possuem diferentes potenciais de aquecimento global, a medida de toneladas de dióxido de carbono equivalente (tCO2e) converte os outros gases para fornecer um número total. Assim, considera o potencial de aquecimento do metano (CH4) de 28 vezes para cada molécula CO2 e o potencial do óxido nitroso (N2O) de 265 para cada molécula de CO2.
PARA SABER MAIS
LATOUR, Bruno. Imaginar gestos que barrem a produção pré-crise. Disponível em: https://n-1edicoes.org/008-1
_____. Bruno Latour. Disponível em: http://www.bruno-latour.fr/index-2.html
KRENAK, Ailton. O amanhã não está a venda. São Paulo, Companhia das Letras, 2020.
PERES, João. Descoronizar o mundo, descolonizar o imaginário. Disponível em: https://www.editoraelefante.com.br/descoronizar-o-mundo-descolonizar-o-imaginario/
FUKS, Julian. Ensaio: Falência do tempo - Pandemia provoca a ilusão de um futuro desfeito. Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/opiniao/2020/04/24/ensaio-falencia-do-tempo---pandemia-provoca-a-ilusao-de-um-futuro-desfeito.htm?cmpid=copiaecola
A AUTORA
Nurit Bensusan é uma ex-humana. Diante dos descalabros da nossa espécie desistiu de ser humana, mas permanece bióloga e engenheira florestal; com mestrado em Ecologia pela Universidade de Brasília e em História e Filosofia da Ciência pela Universidade Hebraica de Jerusalém; doutorado em Educação de Ciências e pós-doutorado em antropologia, ambos pela Universidade de Brasília. Atualmente é pesquisadora do Programa de Políticas e Direito Socioambiental no ISA. É autora, entre outros, dos livros Conservação da biodiversidade em áreas protegidas (Editora Fundação Getúlio Vargas, 2006), Meio Ambiente: e eu com isso? (Ed, Peirópolis, 2009 e segunda edição, 2019), Biodiversidade: tesouro real ou maldição tropical? (Ed. Mil Folhas do IEB, 2018); Do que é feito o encontro (Ed. Mil Folhas do IEB, 2019) e organizadora, entre outros, dos livros Seria melhor mandar ladrilhar? - Biodiversidade, como, para que e por quê (Ed. Peirópolis e Editora Universidade de Brasília, 2008) e A diversidade cabe na unidade? - Áreas Protegidas no Brasil (Ed. Mil Folhas do IEB, 2014). Além disso, assina o blog Planeta Bárbaro, que mistura meio ambiente e ciência, com uma pitada de humor.