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E n t r e v i s t a 

12 de junho de 2019

entrevista: Diana Helene | edição e transcrição: Glória de Andrade 

Tainá de Paula

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Em novembro de 2018, a Coletiva conversou com a arquiteta e urbanista, Tainá de Paula, sobre direito à cidade no Rio de Janeiro, capital. Taíná é especialista em Patrimônio Cultural pela Fundação Oswaldo Cruz e Mestre em Urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, presta assistência para o movimento Bairro a Bairro, onde atua como arquiteta e mobilizadora comunitária em áreas periféricas. É membro da Comissão de Gênero do CAU-RJ,  Coordenadora Regional do Projeto Brasil Cidades, Conselheira do Centro de Defesa e Direitos Humanos Fundação Bento Rubião e da ONG Rede Nami. Além de ser representante no Brasil do Bisexual Resource Center e integrante dos coletivos: #partidA feminista e Intelectuais Negras Zacimba Gaba.

O conceito de Direito à cidade foi desenvolvido pelo sociólogo francês Henri Lefebvre em seu livro “Le droit à la ville” (1968). Na ideia original Lefebvre partia da segregação socioeconômica para explicar as diferenças de acesso aos direitos dentro da cidade. Para ele, o morador pobre e periférico é alienado do espaço urbano, enfrenta longas horas de transporte público ao sair para trabalhar e voltar para casa. O direito à cidade surge como contrário à alienação provocada pela urbanização segregadora. No Brasil, a partir da década de 1990 as ideias de Lefebvre se tornam slogan de diversos movimentos sociais urbanos. O direito à cidade passa, então, a ser um dos principais slogans da Reforma Urbana. Como você enxerga esse conceito – o que ele significa - no contexto brasileiro e latino-americano?

Tainá de Paula: É fato que a gente,  eu coloco a gente já me inserindo nesse contexto, que trabalhamos para  uma nova agenda urbana, para o campo da reforma urbana, nos referenciamos muito a esse debate cunhado por Lefebvre, mas é que é cada vez mais latente a necessidade de desenvolvermos e debatermos melhor qual o contexto dessa cidade, qual o contexto social e as várias gradações sociais e raciais que essa cidade oferece.

Hoje, não promovermos o debate de raça, gênero e classe nessa cidade, mas discutirmos o conceito de território e territorialidade e as várias territorialidades que existem na cidade não permitem entender e enfrentar a grande multiplicidade de agentes, atores, que essa cidade carrega. Por exemplo, uma mulher negra vivencia e faz uma luta urbana totalmente diferente de um homem branco, e, nessa situação, não são apenas os condicionantes de classe, estes que foram os principais norteadores dos estudos iniciais de Lefebvre, que vão pautar essa diferença num país latino-americano como o Brasil.

A origem [do país]  e a origem afro-indígena são marcadores fundamentais para entendermos quais as dificuldades que determinado ator vai enfrentar, não é apenas uma  dimensão de onde eu estou, do locus que eu estou, como eu me referencio enquanto indivíduo e quais os  desafios que tenho nessa sociedade. É claro que existem bravatas e debates coletivos a desenvolver nesta cidade, acredito que neste aspecto da habitação é importante refletirmos e fazer esse paralelo.  

Enfrentamos uma agenda nacional de construção da política habitacional ampliando o debate da cidadania à moradia para que todo indivíduo que tivesse uma casa, uma morada, automaticamente estaria estabelecendo seus padrões mínimos de cidadania e civilidade. Tomando como exemplo o programa Minha Casa Minha Vida, a respeito da faixa 1 que corresponde às unidades que foram construídas distantes da cidade, podemos perceber a não diminuição da violência doméstica contra as mulheres, em se tratando de dados de violência doméstica, mesmo em conjuntos habitacionais construídos em uma tentativa de garantir dignidade e civilidade para determinada população. Não foi a moradia que garantiu a emancipação das mulheres.

Assim, o que precisamos  enfrentar? Quais são os outros limites  para além desse suporte cidade que precisamos combater? Com certeza são dimensões sócio econômico, culturais para além do debate território-cidade que precisamos ter. Acredito que, em certa medida, Lefebvre é limitado em se tratando de Brasil, em se tratando de América Latina.  



Ainda sobre o conceito de Lefebvre, o ser humano é tido “como o principal protagonista da cidade que construiu (…) o ponto de encontro para a vida coletiva.” O direito à cidade se realizaria por meio do controle direto das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, uma obra coletiva em que cada indivíduo e comunidade teria espaço para propor e manifestar sua diferença. Como no Brasil, país onde metade das cidades são informalmente autoconstruídas, você enxerga a relação da precariedade urbana brasileira e as necessidades de auto-organização popular?

Tainá de Paula: Acredito que devemos avaliar um pouco como é que se dá a dimensão da construção da  desigualdade urbana, sendo importante, também, salientar a dimensão da construção da cidade a  partir do avanço e do desenvolvimento do capitalismo, citando aqui um capitalismo primitivo, um capitalismo escravocrata, se tratando de Brasil.

"O capitalismo impõe uma série de limitações em relação ao estabelecimento de uma agenda de bem estar social, de uma equidade de direitos e de uma equidade urbana para todos os indivíduos"

O capitalismo impõe uma série de limitações em relação ao estabelecimento de uma agenda de bem estar social, de uma equidade de direitos e de uma equidade urbana para todos os indivíduos a partir do momento que promove determinadas categorias sociais a serem colocadas como mão de obra à serviço da manutenção desse capitalismo. É preciso construir uma lógica de super ou hiper exploração do indivíduo de uma classe trabalhadora muito precarizada para que esse capitalismo consiga se estabelecer. E não é diferente, e mais, é muito claro esse desenho de desigualdade na cidade, pois, é nítido na distribuição de terra e na distribuição de equipamentos sociais e habitacionais para uns em detrimento de outros.

Percebemos quase de maneira escolar essa desigualdade. No entanto, é preciso sempre pensar que a nossa classe trabalhadora está submetida ao capitalismo a partir de uma nuance diferente que é a baixa escolarização dessa classe, assim, garantindo a hiper exploração e a super informalidade desse mercado.

Dessa forma, também, fomentando uma classe trabalhadora e um campesinato achatados no sentido de pouca ou quase nenhuma mobilidade social. Assim, o que temos é uma massa escravizada contemporânea que está cada vez mais a mercê de uma agenda de retirada e de supressão de direitos já tacitamente estabelecidos, como foi a agenda trabalhista colocada por Vargas. Acredito que todo esse processo de manutenção e perpetuação das condições que o capital impõe ao Brasil, também, nos faz precisar entender a dimensão racializada desses processos, que possibilitaram e possibilitam durante tanto tempo uma grande mão de obra precarizada, barata e mal empregada devido à dimensão social e cultural do racismo.  

 

No Brasil a questão da escravidão marca nossa sociedade de forma profunda e estrutural. No entanto, a questão racial ainda é tratada de forma minoritária nos estudos urbanos. Como você vê a relação entre a nossa herança escravagista e o direito à cidade?

Tainá de Paula: Se pararmos para pensar sobre o estabelecimento de privilégios e opressões colocadas na sociedade brasileira, essa lógica racializada de desigualdades banaliza e perpetua os condicionantes de pobreza no país. Não à toa vemos, por exemplo, a banalização de territórios de pobreza, no caso das favelas, loteamentos irregulares, loteamentos precários, mucambos, ocupações e etc. Enfim, vê-se uma banalização de longa data e uma negligência e invisibilidade de uma agenda para curto, médio e longo prazo no sanamento dessas questões, porque, de fato, essa parcela está na lógica da invisibilidade.

O Franz Fannon, que é um filósofo que eu gosto muito, trata desse limiar do não ser que determinados seres estão estabelecidos - uma dinâmica de biopoder, na qual alguns corpos têm poder de protagonismo, de decidir o que vai acontecer na sua vida, sobre as políticas públicas e sobre a cidade no momento que detém os privilégios, e os subalternos são aqueles que estão submetidos à lógica de privilégios de alguns. No caso do Brasil, e no caso das neocolônias, das colônias contemporâneas, pode-se falar o termo que for, existe o condicionante claro de biopoder em determinados corpos que são negros, que são periféricos e que estão nesses territórios precários, nesses territórios da desigualdade. Não conseguimos, infelizmente, romper a lógica casa grande-senzala que vem sendo colocada e impressa nas cidades e nos territórios brasileiros.

 

Alguns autores, como David Harvey, inserem o “direito à cidade” no campo dos direitos humanos em uma perspectiva deste como um direito coletivo. Como você essa ideia e as relações possíveis entre o direito à cidade e o meio ambiente, direito à cidade e patrimônio, todos estes direitos relacionados a uma ordem coletiva?

Tainá de Paula: Sem dúvida, o debate do direito à cidade deve ser encarado numa perspectiva coletiva. A cidade, obviamente, é composta por uma série de indivíduos, de atores e de interlocutores. E esses interlocutores  estão inseridos em uma dinâmica territorial, urbana e social que pressupõe o convívio, usos e interesses coletivos num determinado território. O que se coloca, e acredito que seja interessante o debate do Harvey no que se refere à dinâmica econômica que temos com a cidade, principalmente em relação a sua possibilidade de financialização, é como inserimos ou excluímos determinados indivíduos dessa dinâmica urbana.

O Rio de Janeiro é muito emblemático no que se refere a inclusão ou exclusão de determinados indivíduos na agenda de construção da cidade. A favela  estaria em um extremo do quadrilátero de um dos perímetros mais ricos do mundo, citando Ipanema, Leblon. Como é que essa dicotomia se coloca e, por vezes, se articula no mesmo bairro, se falarmos de São Conrado e Rocinha convivendo em uma dinâmica simbiótica mas, ao mesmo tempo, com uma distância abissal, inclusive no ponto de vista do desenvolvimento econômico e social.

"A lógica de exclusão e de construção da cidade são lógicas determinantes e que são indissociáveis"

Na verdade, grande parte dessa dinâmica foi altamente provocada. Determinados territórios da cidade vinham sendo aterrados para dar conta de uma especulação, de uma venda muito controlada desse território, por exemplo as construções na enseada da Glória. E, também, da expansão de Botafogo e Humaitá na virada do século XIX para o XX que foi o momento de chegada dos negros e de colocação dos negros, não em territórios formais, mas, sim, em zonas cinzentas, territórios à margem  do pensamento e do planejamento urbano da cidade. A lógica de exclusão e de construção da cidade são lógicas determinantes e que são indissociáveis  na construção desta e, no caso do Rio de Janeiro, compreendo como um dos exemplos mais claros de como essas duas dinâmicas podem construir um território sem nenhuma ou quase nenhuma equidade de direitos.  

As manifestações de 2013 tiveram como estopim o aumento do custo de passagem. O movimento passe livre, movimento social levado na sua maior parte por jovens, surge pautando um problema estrutural para pensar o acesso à cidade, porém, até então, pouco pautado nos movimentos sociais de Reforma Urbana. Em função desse movimento, em 2015, o Senado aprovou a Proposta de Emenda à Constituição, (PEC) 74/2013, que incluiu o transporte público como um direito social. Como podemos ver a emergência dessa pauta em um contexto mais amplo de lutas por direito à cidade?

Tainá de Paula: Nós enquanto promotores, intelectuais e pesquisadores da cidade  precisamos refletir sobre qual foi o contexto das jornadas de junho de 2013. No contexto do debate da cidade, o fato é que o pós 2013 para além da discussão de politização ou polarização ou, até, início de uma onda conservadora grande no país, talvez a discussão do direito à cidade tenha virado uma pauta importante num grupo de população, no qual tal discussão não era  comum, não era debatido. Os tais 20 centavos, e não apenas isso, proporcionou um debate central no Rio de Janeiro, começando em São Paulo e repercutindo em outras outras cidades.

Especificamente no Rio de janeiro, essa discussão tomou uma outra dimensão, ainda, porque passávamos por um grande período de transformação urbana por conta do legado olímpico e todo legado de obras que o estado vinha passando - vinha sofrendo, foi alvo de discussão em determinado momento, e pela primeira vez não foi protagonizado pelos grupos que geralmente vinham fazendo esse debate ao longo dos anos. Não estou aqui fazendo nenhum juízo de valor, considero que precisamos marcar o ano de 2013 como um momento de ampliação de um ponto específico que é o debate sobre a cidade, sobre o direito à cidade, sobre o direito de mobilidade para um  espectro maior da população em si.

Infelizmente, eu devo admitir que não houve uma continuidade do ponto de vista organizativo daquelas reivindicações. Elas não geraram, por exemplo, foros permanentes de diálogos com a sociedade mesmo com  a PEC não conseguimos restabelecer a discussão do transporte público com a mesma força, ou pelo menos com um novo arranjo.

A partir daquela jornada a guinada ficou muito presa numa crítica e numa denúncia ao establishment, ao poder estabelecido, e pouco se avançou numa agenda propositiva para a cidade, especificamente acerca da mobilidade, fomos atravessados um pouco pela agenda da denúncia principalmente pela discussão de corrupção, das sucessivas gerências fraudulentas que os estados passaram. Não conseguimos direcionar essa agenda para um caldo propositivo.

(O que que eu acho importante, e o que eu acho que ainda há tempo de se resgatar a dimensão de que já não vai ser uma discussão crua).

Qualquer morador do Rio de Janeiro, falando aqui da minha cidade, sabe que paga muito para se locomover, e isso, veja bem, já é uma grande agenda. Uma agenda difícil de ser recolocada na boca do povo que, em certa medida, como todos conseguiram alcançar essa dimensão então não seria um assunto novo, caso, seja preciso resgatar uma nova manifestação que não seja pelos 20, mas que seja pelos 30, por 50 centavos.

Uma pena eu acho que na dimensão do passe livre normalmente essa agenda, da passagem subsidiada, ela acompanha a discussão de renda mínima e a discussão de bem-estar  social, tratando do brasileiro e do nosso capitalismo, da forma como é construído, na lógica de hiper individualização dos indivíduos, estabelece muita dificuldade para dinâmicas de associação ou de cooperação, então, o brasileiro médio rechaça, por exemplo, as iniciativas de incremento de renda e de estabelecimento de agenda pública de bem estar social, como o SUS, o sistema de educação, como o sistema universalista de renda, que é o passe livre.

O passe livre nada mais é que do que a garantia do estado do direito constitucional de ir e vir e isso é uma dimensão que pela lógica individualista incutida e programada pelo capital é inviabilizado na estrutura e no sistema que nós mesmos construímos. Temos muito o que avançar nesse debate e é fundamental que em momentos de crise a gente consiga fazer um discurso contra hegemônico de que isso é possível, inclusive dentro do sistema capitalista. Fora das colônias, reduzindo um pouco a importância do Brasil e falando das grandes nações capitalistas, foi possível sim, dentro de um estado capitalista um mínimo de estabelecimento de equidade de direitos no estado burguês ou numa social democracia. Precisamos criar essa agenda de equidade no Brasil e isso é urgente. Em tempos de retrocesso é claro que isso fica mais díficil, mas eu também acredito que o período de recessão, o período de retrocesso possam garantir um processo de maturação e ampliação do debate com a sociedade civil como um todo.

Entre os movimentos sociais que vêm crescendo o feminismo é um dos mais proeminentes no Brasil. Nesse sentido, diversas iniciativas de grupos de mulheres, entidades e outras formas de militância, surgem para desmascarar as desigualdades de gênero. No campo das lutas urbanas, a Marcha das Vadias, “chega de fiu fiu” e outras iniciativas que expõem uma série de relações entre gênero e cidade. Como podemos relacionar o direito à cidade às desigualdades entre homens e mulheres?

Tainá de Paula: Considero que os anos 2000 foram um grande caldeirão para esse ascenso, digamos assim, e para a permanência dessa última onda feminista da forma que vemos. Quando falamos da Marcha das Mulheres Negras de 95, em seguida a Marcha das Margaridas, no início dos anos 2000, e a Marcha das Vadias, de uma forma mais recente, percebemos que todo o movimento feminista vem organizado para um debate político nacional, como o Fora Cunha, a PEC - 181 enfim…

"[...] as mulheres vêm conseguindo construir, e especificamente a esquerda, uma agenda muito combativa na cidade, resgatando uma dimensão de luta urbana com a perspectiva de gênero"

As mulheres vêm, dentro dessa onda, organizando uma série de marchas, uma série de movimentos na cidade, e é importante falar que se por um lado vimos usando as redes sociais, as redes digitais como escape da discussão feminista e mulherista acho, também, que as mulheres vêm conseguindo construir, e especificamente a esquerda, uma agenda muito combativa na cidade, resgatando uma dimensão de luta urbana com a perspectiva de gênero, isso é interessante!

Não de forma tão marcadamente organizada, tão marcadamente organizada como, obviamente, o campo da reforma urbana fez, falar por exemplo da Marcha Mundial de Mulheres, que é um movimento feminista que em sua gênese procura organizar as mulheres do campo, as mulheres campesinas, as mulheres trabalhadoras do campo e da cidade, nos territórios em marcha, obviamente isso ganha uma dimensão pro movimento feminista muito interessante.

É importante marcar que esse rompimento do espaço privado para o espaço público é uma marca muito específica das mulheres, porque para além de estarem num território que muitas vezes é precarizados, na ponta das tensões sociais que o capitalismo impõe. Elas estão, por vezes, num espaço privado de submissão, então sair para determinados territórios na cidade e sair do espaço privado é um duplo rompimento dos marcadores de opressão que essas mulheres vivem. Não à toa, eu me organizo num movimento de mulheres, acho que as mulheres conseguem fazer uma composição de ativismos extremamente produtiva e revolucionária no sentido de conseguir relacionar lutas, relacionar debates.

 

Mulheres negras fazem tradicionalmente sua marcha em Copacabana aqui no Rio. A Marcha Estadual das Mulheres Negras é sempre em Copacabana, um território de zona sul ocupado por mulheres negras, em sua maioria de baixa renda e periféricas, vão no domingo marchar de um posto a outro, praticamente a praia inteira, falando de seus não-privilégios, falando de seus lugares de fala, colocando os seus corpos e a sua relação com aquele território, mesmo que efêmero. É uma relação de denúncia e de marcação de posição, de construção e, de certa forma, daquele território de exclusão/excludente que elas não integram, e quando integram é apenas em condição de trabalho.

Essa dimensão de resgate da cidade pelas mulheres é fundamental para o campo da arquitetura e do urbanismo da cidade. Se  conseguirmos construir territórios com equidade de gênero e que garanta segurança, tranquilidade, mobilidade e habitabilidade para as mulheres, que são a base da pirâmide, estaremos, então, construindo a cidade com equidade e possibilidade para todos. É um fator e um termômetro muito interessante para a cidade.

 

Mas, de certa forma, precisamos muito avançar no debate generificado entre homens também. Os homens precisam encarar essa dimensão das desigualdades de gênero na cidade, e, por isso, também, é importante marcarmos a nossa produção teórica e conceitual sempre em espaços mistos, em espaços que os homens também estejam discutindo para que de fato consigamos construir um arcabouço teórico comum, onde os desafios sejam comuns.

Tem uma autora que eu gosto muito, Silvia Federici que trata da cumulação primitiva do capital, como esse capital assume os corpos das mulheres para a perpetuação desse sistema a partir do trabalho doméstico, do trabalho doméstico não pago e como é que homens conseguem acumular capital e possibilidades através da subalternidade de determinados corpos que são os corpos femininos. Em certa medida isso acontece também na cidade. Quando pensamos na disparidade dos proprietários de terra, dos gêneros dos proprietários de terra, entendemos que as mulheres também não são protagonistas nessa cidade. Elas não possuem o território da cidade. É estranho pensar essa dimensão através de uma leitura do capital, não queremos uma tomada de poder, uma inversão da lógica de privilégios. Eu não quero capitalistas latifundiários mulheres, mas, eu quero sim um território com equidade de propriedade, caso a propriedade exista a gente precisa debater, obviamente, a propriedade privada.

Como garantimos acesso à terra para as mulheres? Nesse sentido, programas como Minha Casa Minha Vida que tem como premissa as mulheres enquanto chefes de família, como proprietárias, são instrumentos importantes para rompermos essa lógica, mas não é o bastante. Como mexemos com a estrutura de raça, gênero e classe dos territórios com maior interesse do capital? Como estabelecemos essa balança? Como restabelecemos essa balança para o equilíbrio?

Mesmo dentro de um contexto de disputa acirrada entre “esquerda” e “direita” da última eleição, o Instituto Pólis avaliou em um estudo chamado “O Direito à Cidade na eleição presidencial de 2018” que “Nenhum programa apresentou propostas consistentes” o que mostra como ainda há muito o que se avançar para inserir a agenda urbana e o Direito à Cidade nos debates e espaços de formulação das políticas. Como você, enquanto candidata à deputada estadual na eleição passada, avalia a política atual e as lutas por direito à cidade?

Tainá de Paula: Interessante colocarmos a dimensão política da cidade porque a cidade está cada vez mais essencialmente política, e acabamos de passar por uma das eleições mais difíceis e antidemocráticas da história, constituída por fake news, manipulação de dados, manipulação de informação, contra-informação absurda construída, uma falsa narrativa, enfim… Por mais que já tenhamos passado e já tenhamos construído figuras contraditórias na política, por exemplo Collor, os generais. Nunca tivemos antes na História do Brasil um cenário quase que do ridículo político, parafraseando Márcia Tiburi, como vimos nesse 2018 atípico.

 

Se formos analisar, por exemplo, os planos de governo tanto do Wilson Witzel [governador eleito no Rio de Janeiro em 2018] quanto o de Bolsonaro, por mais que a palavra cidade ou a proposta urbana pareça de forma muito acanhada,, entendemos que existe um subtexto de ultra neoliberalização das cidades, uma agenda ultra neoliberal, uma financeirização extrema dos territórios e do que compreendemos como a máquina pública, a estrutura pública que consolidamos  ao longo dos anos, e mais uma substituição radical da agenda desenvolvimentista, até hoje estabelecida no Brasil, para essa agenda neoliberal, ultra neoliberal.

 

O fato é também que a não citação da desigualdade, a não preocupação com a agenda dos pobres e com os territórios de pobreza, principalmente no plano de Bolsonaro, dão a entender também que a reboque disso que ele não está interessado em garantir direitos, falando aí como o direito à cidade, direito à moradia, como direitos fundamentais e pétreos da constituição. A gente nesse sentido começa a entender como um retrocesso, pois, vínhamos num acúmulo de garantias de direitos. E de uma só vez, numa única eleição vemos uma guinada para, justamente, o caminho contrário.

Falei aqui na possibilidade de termos a garantia de uma renda básica mínima, um projeto antigo de 2005 que foi consolidado, em parte, pelo Bolsa Família, mas que num futuro médio a longo prazo a poderíamos, sim, aventar uma possibilidade de uma renda básica nacional, para todos, como existe nos países nórdicos ou nos países de bases petrolíferas, como no caso dos países como o Brasil. Por que os royalties não são distribuídos para a população?

Enfim, to elucubrando, mas elucubrando dentro de propostas que já foram testadas em outros países.

"A cidade enquanto mercadoria pode acirrar um cenário de desigualdade"

Em relação a Witzel, tem uma dimensão ainda pior que é a criminalização de determinados territórios que já vinha sendo estabelecida através da intervenção militar federal, a partir do processo de militarização, para-militarização de territórios de favelas, territórios pobres ocupados na cidade.  

 

Retrocedemos quando colocamos a cidade num debate individual, numa lógica de quem consegue pagar ou lucrar consegue ter acesso à terra, consegue ter acesso à moradia, entre outros. A cidade enquanto mercadoria pode acirrar um cenário de desigualdade que já vem sendo colocado, mesmo com a agenda de desenvolvimentismo, mesmo com uma agenda, vamos dizer assim, social-democrata que foi construída nos últimos anos.

As iniciativas, enfim, pistas que Witzel dá em relação a isso, no plano de governo dele, por exemplo, em relação à habitação tem um parágrafo sobre abertura de vias de passagem nos caveirões. Veja bem, existe um aceno pro aumento ainda discriminado das inserções militares nesses territórios que já vêm sofrendo, que já vêm denunciando em diferentes âmbitos essa situação. O caso dessa cidade [Rio de Janeiro] é grave, eu acho que a gente não tem dimensão do quanto de retrocesso teremos nos próximos anos. O que precisamos garantir é um debate contínuo e o estabelecimento de foros de controle dos direitos que conseguimos instituir, foros de denúncia para conseguirmos criar e fortalecer uma agenda de resistência.

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