Corpos que chegam, que ficam e resistem [1]
Rossana Tavares
Pelas cidades, manhã, tarde, noite, pela madrugada, muitos corpos parecem naturalmente ocupar as ruas. Alguns corpos chegam, passam, outros chegam e ficam, outros chegam e ali permanecem, se apropriando do espaço, do lugar. Para alguns isso pode ser banal, para outros uma resistência cotidiana. É sobre essa contradição que a luta pelo direito à cidade se trata, em especial, para a vida das mulheres.
Essas dinâmicas podem ser observadas e analisadas de diversas formas, pontos de vista e lugares. Porém este olhar mais atento às mulheres não é um aspecto específico sobre os problemas urbanos. Pelo contrário, analisar esses processos também se relaciona aos homens, se relaciona à geração, à raça, se relaciona aos aspectos econômicos, culturais, políticos e subjetivos. Ou seja, são aspectos relacionais que interagem e interferem no modo como as cidades se reproduzem e são produzidas. Se até hoje você nunca leu sobre como as desigualdades de gênero afetam as relações e práticas sociais e espaciais na cidade, isto não quer dizer que não haja tal contradição. Historicamente invisibilizada, pela indiferença à experiência das mulheres, em sua diversidade, no espaço urbano. Uma primeira questão que posso destacar é a contradição entre o modo como nossas cidades e o trabalho doméstico no Brasil são produzidos.
Talvez alguns acreditem ser exagero afirmar que a sociedade brasileira seja indiferente às mulheres, já que elas exercem papéis importantes como o da maternidade. Mas, como se enquadra a importância destes papéis? A filósofa ítalo-estadunidense Silvia Federici afirma que:
o trabalho doméstico não remunerado das mulheres tem sido um dos principais pilares da produção capitalista, ao ser o trabalho que produz a força de trabalho. (...) [A nossa] subordinação aos homens no capitalismo foi causada por nossa não remuneração, e não pela natureza “improdutiva” do trabalho doméstico, e que a dominação masculina é baseada no poder que o salário confere aos homens.
Historicamente são as mulheres que assumem, prioritariamente, estes papéis, ou seja, das tarefas domésticas, do cuidado às crianças e idosos da família, que nada mais é que trabalho não remunerado. Como temos um padrão de produção do espaço urbano onde pobres e ricos estão em lugares distintos, e, na maioria das vezes, distantes, para as mulheres pobres que moram em favelas e em periferias, se voltar exclusivamente para o trabalho doméstico significa isolamento e restrição do seu cotidiano ao seu lugar de moradia com todas as dificuldades impostas pela precariedade urbana, característica desses bairros e favelas: transporte público insuficiente e ineficiente, escassez de saneamento básico, carência de equipamentos públicos, como hospitais, inadequação habitacional, coabitação familiar. Lembrando que o trabalho doméstico não se reduz à casa, ao espaço privado. As mulheres precisam ir ao mercado, ao posto de saúde, acompanhar seus idosos, levar os filhos e filhas para a escola. Isso se dificulta pelas adversidades urbanas, mas, também, pelo isolamento, sobretudo porque a mobilidade das cidades são pensadas para que trabalhadores e trabalhadoras cheguem no centro, onde se concentra as ofertas de trabalho remunerado.
Essa dinâmica se torna mais complexa se mulheres pobres também exercem um trabalho fora do espaço doméstico. Muitas se tornam domésticas para exercer também o trabalho doméstico nas casas e apartamentos das consideradas centralidades urbanas (que não se reduzem ao centro).
No início do dia, pela manhã, quando caminhamos pelas ruas de grandes cidades brasileiras, não é difícil identificar os movimentos opostos de diferentes corpos pelas calçadas de bairros de classes média e alta. Corpos que se diferenciam não apenas pelas roupas, pelo ânimo, pela cor, pela classe, pelo gênero. Corpos que se distinguem principalmente pelo sentido: uns que vão e outros que chegam. Estes outros corpos que chegam no bairro e ficam em suas casas, são chamados de domésticas. No entanto, quando o dia está apenas começando para elas, já é a segunda etapa de sua jornada. Em seus bairros de origem, elas não são domésticas, elas são mães, avós, irmãs, filhas, amigas. São vizinhas, moradoras de favela, de bairros periféricos ou, ainda, de municípios próximos. Diversas delas se levantam e saem de casa, quando ainda amanhece, para dar conta minimamente das tarefas do lar e enfrentar o transporte público até o seu local de trabalho.
No trajeto estão mais sujeitas aos assédios, assaltos, riscos, à precariedade do transporte público, à discriminação de seus corpos, às desigualdades sociais. Contudo, nas áreas onde elas trabalham é uma oportunidade vivenciar determinadas amenidades urbanas. Relatos coletados de diaristas que trabalham em Copacabana, e moram na Baixada Fluminense, revelam que algumas chegam antes ou atrasam o retorno pela simples oportunidade de colocar o pé na areia da praia, tomar um ar, tomar uma cervejinha sem ser julgada.
Isto quer dizer que o trabalho como doméstica é uma forma de diversificar sua experiência urbana mas, mesmo assim, estar nos bairros elitizados também é uma forma de resistência, por vivenciar estigmas e controle do seu corpo, que expõem sua classe e seu lugar na cidade, seja pela sua cor, seja pela sua performance, sua roupa.
Apesar disso, o trabalho é, também, a possibilidade de independência econômica e psicológica mas não é uma condição. A violência doméstica é uma realidade insistente. Mesmo percebendo que cada vez mais as mulheres são as responsáveis, as chefes de família. Quando casadas, isso é apenas matemática estatística porque na prática a figura masculina continua exercendo o controle.
Se observamos a história da urbanização no Brasil, novamente conseguimos perceber como o corpo das mulheres, a sua desumanização e o distanciamento de possibilidades do direito à cidade se constroem. As mulheres pobres, negras, imigrantes, prostitutas, quituteiras, feirantes, cartomantes, artistas, antíteses da mulher burguesa, sofreram uma série de violências para que se garantisse e se estabelecesse uma ordem urbana. A tentativa de tornar o Rio de Janeiro uma “Paris dos trópicos”, em fins do século XIX, se expressou tanto pelo o artigo 399 do Código Penal de 1890 sobre vadiagem, restringindo o espaço social do centro da cidade, como também pelas reformas urbanas de Pereira Passos (1903-1906). O conflito se formava. Para as mulheres, a rua se confundia com a casa e com o lugar de trabalho, que apesar de pobres, eram independentes e livres aos olhos normativos e higienista que, por sua vez, balizou as reformas urbanas, conforme a historiadora social Rachel Soihet. A demolição do conjunto de casarios e cortiços do centro da antiga capital devido ao projeto, removeu corpos considerados fora-do-lugar pelo estigma associado às respectivas práticas espaciais de existência, sobrevivência e resistência, que incluíam também essas mulheres.
O surgimento das favelas cariocas se relacionam tanto a essa reforma urbana quanto à interdependência necessária para construir um novo sentido de cidade e de morar, em especial para as mulheres. Elas não se contentaram em aceitar o isolamento e a desvalorização cultural como consequência. As redes sociais são reformadas, se necessário, entre pessoas que não são parentes ou com base em uma definição ampliada de parentesco. E é a partir desta perspectiva que se busca uma forma de ocupar e resistir ao modo excludente de produção do espaço urbano do século XX, que se perpetua até os dias atuais.
Este processo pode ser associado ao que bell books [2], ativista social e feminista, se refere em relação ao espaço doméstico para as mulheres negras. Ao mesmo tempo que para as mulheres de classe média a casa possa ser encarada como um lugar de confinamento e repressão, para mulheres moradoras de favela a casa pode ser um espaço de resistência, de sua afirmação e proteção do espaço público violento e segregado, sobretudo, se analisarmos famílias monoparentais chefiadas por mulheres. Todavia, pode ser também um espaço de dominação masculina, ainda que não haja um homem no domicílio, já que, por exemplo, a política de segurança, pensada por homens, coercitiva, discriminatória e que massacra vidas nas favelas, continua impondo um lógica masculina de mundo. Ou seja, representa de forma crua o processo histórico de dominação masculina de territórios e das cidades. Além disso, de forma geral ganhamos 76,5% dos rendimentos dos homens, de acordo com os dados do IBGE (2018), impondo formas de existência e resistência distintas de homens na mesma condição urbana e habitacional.
Se fizermos uma reflexão sobre o espaço público, onde a rua seria o lugar mais evidente, é perceptível para as mulheres como este não é um lugar para elas, pela forma como geralmente se estrutura. A iluminação pública, por exemplo, é comumente relativizado sobretudo associado à segurança pública. É notório que ruas bem iluminadas além de proporcionar maior sensação de segurança para as mulheres, geram mais movimento de pessoas, em especial, em lugares com características espaciais que atraem a permanência, seja por usos e atividades comerciais, institucionais, seja por usos e atividades culturais, de lazer etc. Não é uma condição. Entretanto, ruas mais iluminadas, diminuem a possibilidade das mulheres se sentirem ou de fato estarem mais vulneráveis à violência. Há números reveladores: a cada dez minutos no Brasil, uma mulher foi estuprada em 2017, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Dados alarmantes, mas, ainda, subnotificados de acordo com especialistas. Como o urbanismo poderia contribuir para reduzir essas estatísticas?
Segundo pesquisa realizada pela ActionAid [3] com mulheres moradoras de favelas e bairros periféricos de algumas cidades brasileiras, os pontos de ônibus foram considerados os lugares mais inseguros. Normalmente, a localização dos pontos de ônibus está associada a várias condições urbanas (como da iluminação precária) em que as mulheres se sentem inseguras e que sabem, por experiência própria, que são mais propícias às cantadas, assédios e estupro do seu corpo. Este exemplo ilustra como estarmos no espaço urbano é de fato um ato de resistência que realizamos através de nossas práticas espaciais cotidianas na periferia e no centro.
Em muitas ocasiões, a depender do lugar, do horário, das pessoas que ali estão, por vezes conseguimos chegar, atravessar, mas nem sempre ficar, se apropriar. Para todos os casos, precisamos resistir, cada uma com sua estratégia individual ou coletiva a depender do seu gênero, sua raça, sua subjetividade em relação aos aspectos objetivos e simbólicos que o patriarcado se revela no modo como nossas cidades se estruturam. A cidade como direito, nos termos de Henri Lefebvre, é ainda uma perspectiva nebulosa e desafiadora para a construção de cidades inclusivas e menos desiguais para as mulheres.
O debate sobre as desigualdades de gênero não deveria se encarado como particular. É preciso reconhecê-lo como estruturador da problemática urbana contemporânea, fruto de um processo histórico também indiferente às assimetrias de gênero, ao racismo como causa fundamental da segregação urbana, e do ódio de classe como coisas naturais. É assim mesmo... Enquanto houver corpos que precisam resistir, se arriscando e, até, morrendo por isso, não nos é permitido naturalizar o sofrimento e a distância que grande parte de nós estamos do tão almejado direito à cidade. Não temos outra opção que não resistir. Como já temos feito há tempos.
NOTAS
[1] Este ensaio é uma variação do artigo de minha autoria, “Corpos que chegam, que ficam e que vão”, para a Coletânea de textos publicado pela Desvia Produções responsável pelo filme Doméstica de Gabriel Mascaró, em 2015.
[2] Pseudônimo de Gloria Jean Watkins, inspirado na sua bisavó materna, Bell Blair Hooks, preferindo o uso das letras no minúsculo para evidenciar mais a sua escrita do que ela. Autora de livros e artigos sobre capitalismo, feminismo e interseccionalidade, inclusive de um livro infantil, Meu crespo é de rainha.
[3] Pesquisa Cidade Seguras para as Mulheres -2011/2012, realizada em São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Norte.
PARA SABER MAIS
ARAÚJO, Clara. Marxismo, Feminismo e o Enfoque de Gênero. Revista Crítica Marxista, Campinas, 2000, pp. 63-70.
BUTLER, Judith. Corpos em aliança e a política das ruas: Notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
FASE RIO. As desigualdades de gênero na cidade. 2012. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JFQQGYMWni4. Acesso em:
FEDERICI, Silvia. Calibã e a Bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. Editora Elefante, 2017.
FEMINISMURBANO. São Paulo. 2013. Disponível em: www.feminismurbana.wordpress.com. Acesso em:
FOUCAULT. Michel. Vigiar e a punir. Petrópolis: Ed. Vozes, 2009.
FRASER, Nancy. Da Redistribuição Ao Reconhecimento? Dilemas Da Justiça Numa Era ‘Pós-Socialista’. Revista dos Alunos de Pós-Graduação em Antropologia Social da USP, n.15 p. 231-239, 2006.
HELENE, Diana. Mulheres e direito à cidade a partir da luta dos movimentos de moradia. In: Encontro da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Salvador: FAUFBA, 2018. 12203 pp.. 2324 a 2344.
LÉFÈBVRE, Henri. A Revolução Urbana. 3ª Reimpressão. Belo Horizonte: Editora Ufmg, 2008.
HOOKS, bell. O feminismo é para todo mundo: políticas arrebatadoras. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018.
SOS CORPO. A mulher e a cidade. 2010.
TAVARES, Rossana Brandão. Corpos que chegam, que ficam e que vão. In: GUIMARAES, Vitor (org). Doméstica: coletânea de textos + filme. Desvia: Rio de Janeiro, 2015, pp. 104-119.
_____. Uma Análise das Desigualdades de Gênero em Favelas do Rio De Janeiro: Perspectiva do Reconhecimento para o Urbanismo. Cadernos de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. São Paulo, v. 12, n.2, 2012.
Rossana Brandão Tavares é professora adjunta do Departamento de Urbanismo da EAU/UFF e professora colaboradora do curso de Arquitetura e Urbanismo da Unigranrio. Possui mestrado pelo IPPUR/UFRJ e doutorado em urbanismo pelo PROURB/UFRJ. Pesquisa sobre gênero e direito à cidade a partir da perspectiva feminista há 10 anos. Militante feminista e das lutas urbanas, também foi educadora popular na ONG FASE no Rio de Janeiro e assessora parlamentar da vereadora Marielle Franco. Criou em 2013 o blog FeminismUrbana sobre gênero e cidade.
A AUTORA
COMO CITAR ESSE TEXTO
TAVARES, Rossana Brandão. Corpos que chegam, que ficam e resistem. Coletiva, Recife, n. 24. Coletiva. fev.mar.abr.mai. 2019. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-direito-a-cidade-n24-artigo-corpos-que-chegam-que-ficam-e-resistem. ISSN 2179-1287.