Reflexões para uma ética do cuidado feminista universalizável
Tânia A. Kuhnen
Em diferentes sociedades, do Norte e do Sul Global, o cuidado, na maioria das vezes uma atividade gratuita e, em outras, mal remunerada, ainda hoje tem sido relegado majoritariamente às mulheres. Somos responsáveis, a maior parte do tempo, por preparar novos seres humanos à convivência em sociedade, pelo cuidado de pais idosos e dos doentes em círculos familiares próximos, pelo sustento afetivo das relações internas à família em diferentes modelos familiares – o que pode incluir o peso adicional do sustento material e econômico nos casos principalmente de famílias monoparentais.
Quando consideramos as sociedades do Sul Global, marcadas pelo processo da colonialidade do poder, é importante destacar que modos de ser e viver dos povos locais constituíram formas de cuidar próprias e genuínas nas inter-relações, situadas culturalmente, as quais foram destruídas pelo colonizador. Tais relações deram lugar a uma concepção hierárquica de mundo, de desvalorização do cuidado e da mulher. Por meio da imposição de um modelo colonial de gênero a essas populações, as mulheres – sem negar suas diversas estratégias de resistência – passaram a assumir as funções do cuidado.
Com isso, prevaleceu um modelo padronizador e homogeneizador nas sociedades capitalistas sobre o cuidado, definindo quem é responsável por ele e como ele deve ser realizado, ou ainda negando sua relevância no formato de sociedade neoliberal em curso. Nesse contexto, fatores como raça e classe são relevantes: as mulheres negras que não tiveram oportunidades de uma formação profissional específica são as que assumem com maior frequência os trabalhos mal remunerados de cuidado como trabalhadoras domésticas. Países do Sul também exportam trabalhadoras do cuidado para países do Norte Global. Em geral, nós mulheres, desde meninas somos ensinadas que cuidar é o que de melhor podemos ofertar ao mundo, tanto no âmbito privado quanto no público.
Ao se levar em conta essa realidade vinculada aos trabalhos de cuidado, cabe questionar: se, historicamente, com variações de uma sociedade para outra, as mulheres foram responsáveis pela execução do cuidado na esfera doméstica, resultando numa sobrecarga de funções, com dupla ou tripla jornada de trabalho, o que poderia haver de feminista e transformador associado ao cuidado? Não seria melhor para todas as mulheres que simplesmente tivessem oportunidade e condições de terceirizar todo esse tipo de trabalho não reconhecido para se livrar do seu peso limitador? Ou, quem sabe, não seria melhor se pudéssemos nos livrar desse fardo adicional de sermos responsabilizadas e termos nosso valor social medido pelas funções do cuidado?
Ainda que possamos idealizar um Estado amplamente estruturado para atender adequadamente às diferentes demandas por cuidado na sociedade, dificilmente esse trabalho desaparecerá ou poderá ser relegado por completo para as instituições. Há várias formas de diminuir a demanda por cuidado no âmbito doméstico, por exemplo, como mencionado por Ângela Davis, em Mulheres, raça e classe. (Ed. Boitempo, 2016). Nesse livro, a autora defende a aproximação da obsolescência das tarefas domésticas por meio do aperfeiçoamento técnico dessa forma de trabalho, com o desenvolvimento de máquinas para execução da limpeza em que se apresenta boa parte das atividades de cuidado. Afinal, é um trabalho repetitivo, exaustivo, improdutivo, pouco criativo e interminável. Mas, para evitar a elitização e exclusão desse tipo de solução e considerando que o capitalismo depende da gratuidade do trabalho doméstico, Davis alia essa solução à sua visão revolucionária de um Estado socialista.
Ainda assim, é difícil imaginar que os trabalhos do cuidado possam ser por completo transformados desde a perspectiva da socialização das tarefas domésticas.
Mesmo com um Estado que subsidie o cuidado de maneira eficiente, continuaremos a ter pessoas em situação de maior ou menor fragilidade e vulnerabilidade ao nosso lado. A pandemia escancarou essa demanda ampla por cuidado que qualquer ser humano pode precisar a qualquer momento, mesmo que não seja acometido pela doença Covid-19. Nossa condição de vulnerabilidade, que perpassa toda nossa existência em sociedade, foi exacerbada em tempos de pandemia. Todavia, alguns e algumas de nós, em razão das categorias de exclusão e opressão socialmente construídas, têm sua vulnerabilidade mais acentuada que outros neste momento da pandemia. Por conseguinte, terão também chances menores de obter o cuidado de que precisam para si e para os seus.
A condição da vulnerabilidade – o que Butler, em Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? (Ed. Civilização Brasileira, 2019), denomina de precariedade da vida, não desaparecerá da nossa existência. Viver, para a autora, é sempre "viver uma vida que é vulnerável desde o início”. A vida pode ser colocada em risco ou eliminada por motivos externos que não conseguimos controlar. Em razão disso, por mais que os meios e instrumentos para o cuidado sejam assumidos politicamente pelo Estado, ainda restarão na esfera privada muitas demandas por atenção e por voltar-se para o outro no sentido de protegê-lo dessa precariedade.
À medida que reconhecermos nossa condição de vulnerabilidade, saberemos que, a qualquer momento, sobretudo com o advento de um contexto pandêmico, nossa vulnerabilidade será acentuada. A minha vulnerabilidade, a de nossos pais e amigos, será acentuada. Mais ainda o será a de trabalhadores da saúde, das pessoas em situação de rua, das comunidades tradicionais, das pessoas desempregadas, da população LGBT, das pessoas com deficiência, dos que possuem mais dificuldade em acessar o Sistema Público de Saúde, todos aqueles que não conhecemos, mas que se deslocam no dia a dia para garantir o próprio sustento e a disponibilidade de alimentos e outros produtos que compramos para a nossa casa. Conforme destaca Butler, essa é a distribuição diferencial da precariedade entre os corpos, processo por meio do qual se mantém a exploração de populações-alvo, de vidas mais destrutíveis que outras.
Com base no reconhecimento da vulnerabilidade ou da irrefutável precariedade da vida, torna-se primordial que todos nós possamos aprender a cuidar e tomar o cuidado como uma habilidade moral humana fundamental para a vida ética. Também não sabemos quando vamos precisar da atenção de alguém próximo, de alguém que se importe conosco, para nos acolher e estender a mão em momentos de vulnerabilidade, com necessidades que conseguimos atender por si sós. Mesmo que sejamos ensinados a cultivar por meio da ascensão social o “desejo da invulnerabilidade”, que nos é mencionado pelas eticistas do cuidado Daniela Rosendo e Ilze Zirbel, em Dominação e sofrimento (Ed. Ape’Ku, 2019), não há qualquer poder econômico que nos isole de toda e qualquer ameaça contra a precariedade da vida.
Uma ética do cuidado feminista leva em conta esses aspectos: reconhece o erro histórico da sociedade patriarcal que sobrecarrega as mulheres com os trabalhos de cuidado, o que pode resultar em barreiras restritivas ao exercício de sua liberdade e desenvolvimento pleno da autonomia das mulheres; reconhece que, para além de ser influenciado pelos papéis tradicionais de gênero, os trabalhos de cuidado são marcados por raça e classe, e desvalorizados pela falta de reconhecimento dos trabalhos reprodutivos na sociedade capitalista; por fim, a ética do cuidado, ao partir do pressuposto de que somos seres vulneráveis, reivindica a valorização da habilidade do cuidado como uma característica humana fundamental.
Reconhecer a vulnerabilidade como parte da condição humana permite colocar em questão a tradicional separação na educação moral de homens e mulheres, e defender a necessidade de uma formação abrangente que permita a expressão moral completa de todos os seres humanos. A educação moral deve se dar a partir do desenvolvimento da habilidade de cuidar, possibilitando ir além do respeito às obrigações impostas a um certo modelo de agente moral abstrato. Mudar o curso desse tipo de educação para voltá-lo ao exercício do cuidado pode ajudar na expansão do potencial moral humano, não mais restringido pelas ideias tradicionais de moralidade associadas ao gênero. Podemos imaginar, por exemplo, uma educação na qual para além de aprendermos matemática, ciências e física, possamos aprender a cuidar nas inter-relações, tanto com outros humanos, quanto com seres não humanos.
É preciso superar a desigualdade que impõe às mulheres a responsabilidade primordial pelo cuidado. Qualquer agente moral, seja qual for o seu gênero, precisa estar preparado para a responsabilidade de cuidar que decorre da proximidade com outros sujeitos à vulnerabilidade. Para além de estarmos aptos ao exercício da autonomia individual e à defesa de interesses e necessidades próprias, precisamos também saber voltarmo-nos para o outro e suas necessidades de atenção e cuidado. Essa habilidade não deve continuar limitada por gênero.
A pandemia mostra para onde a lógica individual e autônoma da competição tem nos levado. Precisamos substituir o pressuposto do ideal da independência pelo reconhecimento de que somos seres interdependentes – algo que não se restringe à nossa própria espécie, é claro. Por isso, não podemos nos limitar a levar em conta apenas outros seres humanos nas nossas ações de cuidado. Cuidar do planeta, dos biomas, dos ecossistemas, não explorar a vida de animais amontoados em estruturas de confinamento para satisfazer nossas papilas gustativas é demandante e urgente. Para considerar como nossas condutas afetam as vidas não humanas, sejam elas animais ou vegetais, é indispensável desenvolver cada vez mais nossa habilidade de cuidado.
Nesse contexto, a não distorção das práticas de cuidado, de modo a reproduzir opressões e o paternalismo característicos de uma sociedade patriarcal, colonial e capitalista, deve ser prioridade. Relações abusivas, de controle, exploração e que exigem o sacrifício e a anulação de si não podem ser denominadas de cuidado. Tampouco deve haver espaço para o egoísmo moral na ética do cuidado, pois quando cuidar de si, dos seus desejos e necessidades exclui o cuidado dos outros, implicando risco de dano e prejuízo para outras vidas, é necessário refletir se isso poderia ser chamado de cuidado.
O cuidado deve sempre partir do reconhecimento e da valorização dos inter-relacionamentos entre as formas de vida. Cuidar de si sem descuidar dos outros, humanos e não humanos, entendendo que estamos numa continuidade existencial, é algo que está ao alcance de muitos de nós, enquanto uma prática universalizável. Assim, para além do respeito aos direitos individuais e às obrigações morais negativas, por exemplo, as de não matar e de não roubar, manter-nos sensíveis ao cuidado e às particularidades das relações diversas, são demandas da ética. Também precisamos dirigir nossa atenção com urgência contra as abordagens hierárquicas de cuidado, que demandam de alguns a obrigação de cuidado e atribuem a outros o privilégio do descuido. Seres humanos moralmente responsáveis pela sustentação de inter-relações de afirmação da sociobiodiversidade, das formas de vida em seus múltiplos formatos, isto é, indivíduos que praticam o cuidado, podem definir o que será de nosso planeta no futuro.
PARA SABER MAIS:
BUTLER, Judith. Quadros de Guerra: quando a vida é passível de luto? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
DONOVAN, Josephine; ADAMS, Carol (Eds.). The Feminist Care Tradition in Animal Ethics. New York: Columbia University Press, 2007.
GILLIGAN, Carol. Joining the Resistance. Cambridge: Polity: 2011.
HELD, Virginia. The Ethics of Care: Personal, Political, and Global. Oxford: Oxford University Press, 2006.
KUHNEN, Tânia A. Ética do cuidado: diálogos necessários para a igualdade de gênero. Florianópolis: Ed. da UFSC, 2021 [No prelo]
LARRABEE, Jeanne (ed.). An Ethic of Care: Feminist and Interdisciplinary Perspectives. New York: Routledge, 1993.
ROSENDO, DANIELA; ZIRBEL, Ilze . Dominação e sofrimento: Um olhar ecofeminista animalista a partir da vulnerabilidade.
In: ROSENDO, Daniela; OLIVEIRA, Fabio A; KUHNEN, Tânia A.; CARVALHO, Príscila.. (Org.). Ecofeminismos: fundamentos teóricos e práxis interseccionais. 1ed.Rio de Janeiro: Ape'Ku, 2019, v. , p. 113-134.
SCHMITT, Elaine (Ed.). Dossiê Especial Ética do Cuidado. Revista Mais que Amélias, n. 7, 2020. Disponível em: https://rstmaisqueamelias.wixsite.com/maisqueamelias/2020. Acesso em 16 de fev. 2021. Vários artigos.
ZIRBEL, Ilze. Uma teoria político-feminista do cuidado. 2016. Tese (Doutorado em Filosofia), Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2016.
A AUTORA
Tânia A. Kuhnen é ecofeminista, filósofa e professora na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB), vinculada ao programa de Pós-Graduação em Ciências Humanas e Sociais (PPGCHS - UFOB). Coordena o grupo de pesquisa “Marginais: grupo interdisciplinar de pesquisa sobre minorias e exclusões”. Realiza pesquisas e publicações sobre filosofia feminista e ética contemporânea.
COMO CITAR ESSE TEXTO
KUHNEN, Tânia A. Reflexões para uma ética do cuidado feminista universalizável. Coletiva, Recife, n. 29 Coletiva. jan.fev.mar.abri 2021. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-cuidado-n29-artigo-reflexoes-para-uma-etica-do-cuidado-femininista-universalizavel. ISSN 2179-1287.
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