O jornalismo cuidadoso salva vidas
Rogério Christofoletti
Dairan Paul
“Não podemos publicar desta maneira!”, disse Alan Rusbridger, frustrando momentaneamente os planos do homem de cabelos prateados à sua frente. O editor do The Guardian explicou: “Somos um jornal, temos responsabilidade! Não podemos colocar em risco as pessoas que forem citadas nesse material! Já pensou que inocentes podem ser prejudicados se simplesmente publicarmos o conteúdo sem qualquer edição?”. Julian Assange descontraiu o rosto quando percebeu que a parceria de seu site, o WikiLeaks, com um dos principais jornais britânicos só decolaria se houvesse mais cuidado dessa vez. Antes, ele tinha disponibilizado dados brutos no site como se fosse uma vitrine de vazamentos, no melhor estilo de quem joga farofa no ventilador ligado. Agora precisava ser diferente…
A cena que dramatizamos aconteceu em 2010, às vésperas do que ficou conhecido como o maior vazamento de documentos da diplomacia dos Estados Unidos. No final de novembro daquele ano, o The New York Times, Le Monde, El País, The Guardian e a revista Der Spiegel passaram a publicar reportagens tendo como base mais de 251 mil telegramas, informes e mensagens do Departamento de Estado norte-americano com embaixadas e governos de mais de 100 países. As informações mostravam os intestinos das relações da maior potência global com metade do mundo, um conteúdo explosivo recheado de intervenção política, pressão indevida sobre empresas, chantagem, trapaças e outros meios questionáveis. A massa de documentos mencionava claramente nomes de autoridades, mas também de funcionários de embaixadas e consulados, empresários, celebridades e outras pessoas que, dependendo do contexto regional e do teor da história, poderiam ser perseguidas, sofrer retaliações e até correr riscos físicos.
Eram esses efeitos colaterais da publicação sem rigores de edição que Alan Rusbridger temia. Sem tratamento jornalístico, sem cuidados, o material poderia provocar danos não apenas à reputação dos Estados Unidos, mas sobretudo a pessoas muito mais frágeis ou vulneráveis. Por isso, a parceria do WikiLeaks com alguns dos maiores veículos de mídia do mundo atrasou alguns meses. Era preciso verificar o extenso material bruto, analisar caso a caso, confirmar informações, adicionar contextos e anonimizar parte do que seria publicado nos sites dos parceiros. Aplicar filtros que ocultassem nomes não era uma estratégia para privar o público de saber de quem se tratava, mas um cuidado para não expor desnecessariamente alguém e causar sua perseguição ou morte.
Uma lista de nomes de funcionários públicos e detalhes indiscretos sobre orientações sexuais, por exemplo, poderia levar a prisões e até a sentenças de morte em países de governos teocráticos ou homofóbicos. Em algumas situações, certas manobras diplomáticas fora de contexto poderiam prejudicar e encerrar acordos costurados por anos, deixando de beneficiar milhões de pessoas.
Por isso, por meses, os jornalistas dedicados a editar o conteúdo precisaram adotar cuidados adicionais. Muito mais trabalhosa, a prática destoou dos vazamentos anteriores do WikiLeaks, quando essa preocupação não foi determinante.
A insistência de Rusbridger é um exemplo do cuidado como ingrediente importante da ética jornalística. Já pensou se todas as informações, mesmo que verdadeiras, fossem divulgadas? O cerne do gesto de cuidar reside aí: uma ação que não acontece no vácuo, mas na relação com o outro.
Insistir em uma ética do cuidado, portanto, é lembrar que as decisões tomadas por jornalistas afetam as pessoas. Só que nem sempre formar um juízo moral sobre um fato ou dilema levou o outro em consideração. Nos estudos de ética, foi a filósofa e psicóloga Carol Gilligan quem chamou a atenção para o tema na década de 1980. O princípio moral da verdade até pode orientar pessoas na hora de resolver conflitos. Mas não se decide ser verdadeiro por “obediência” a um valor vago e abstrato (afinal, o que é mesmo a verdade?), e sim pela responsabilidade com o outro, diz Gilligan. Um gesto de cuidado.
Sim, a busca pela verdade e a divulgação de fatos de interesse público ainda são os objetivos principais de repórteres, editores e chefes de redação. Mas estes deveres encontrados nos mais diversos códigos de ética jornalística não são um fim em si mesmo. Colocar o cuidado na balança das decisões morais dos jornalistas é estabelecer um limite: até que ponto o valor da verdade não colide com a privacidade de quem está envolvido na notícia? Ou na segurança da fonte que forneceu a informação? Reflexões como esta exigem certa responsabilidade do jornalista. Até porque, como lembra Gilligan, julgamentos morais não são calculados apenas pela razão, mas também pela emoção.
Tipos de cuidado
Toda profissão, para ser exercida, exige certa dose de cuidados, porque sem eles os riscos aumentam muito além da nossa capacidade de controle. Os cuidados funcionam, então, como válvulas de escape, dispositivos de segurança. Toda vez que a temperatura e a pressão sobem a níveis preocupantes, a válvula na tampa da panela é acionada de forma a aliviar um pouco o ambiente interno e evitar a explosão. Em outras situações, os cuidados operam assim, dando-nos condições aceitáveis de convivência em sociedade.
O jornalismo é uma atividade que envolve muita gente e afeta a todos. As informações que são divulgadas interferem nas vidas das pessoas, às vezes diretamente. Divulgar que um banco está à beira da falência pode criar pânico social e apressar o fim da instituição à medida que muitos correntistas correrão até as agências para retirar suas economias de lá. Não divulgar que isso possa acontecer também pode prejudicar os clientes que arcarão sozinhos com esse prejuízo. É um dilema próprio do jornalismo, frequente até, e que só pode ser superado com muita reflexão, previsão de consequências, trabalho cuidadoso de apuração e zelosa divulgação. Podemos pensar em quatro tipos de cuidados no jornalismo: com as fontes, com a informação, com o público e o autocuidado.
Lidar com fontes em situação de trauma requer empatia e cuidado por parte do jornalista. Pense em coberturas ao vivo de tragédias, quando surge a infame pergunta “como você está se sentindo?”, direcionada a quem perdeu um familiar, por exemplo. O cuidado envolve uma negociação anterior com as fontes, o que, muitas vezes, está ligado a um exercício de escuta. E não é qualquer escuta, mas uma disposição verdadeira de acessar e entender o outro. Antes de entrevistá-las, repórteres devem obter consentimento – afinal, são pessoas com direitos sobre suas histórias. Mas também ouvi-las, para entender, em casos delicados e excepcionais, até que ponto é prudente estender a entrevista porque ela também pode resultar em prolongamentos do sofrimento da perda, por exemplo.
A presença de boas fontes impacta na qualidade da informação. Por isso, além do cuidado no relacionamento com elas, é preciso saber quais devem ser acionadas. Como uma competência moral, cuidar da seleção de fontes previne, por exemplo, o alarde de autoridades negacionistas durante a pandemia. Nesse sentido, programas com formato de debate precisam de cuidado redobrado para evitar falsas equivalências, como se opiniões razoáveis e equilibradas fossem comparáveis a desinformações. Se o cuidado no jornalismo pode salvar, a falta dele no trato com informações também coloca em risco as vidas de outras pessoas.
É por isso que outra dimensão do cuidado tem a ver com o público. Ouvir suas demandas não significa se tornar refém do que a audiência deseja. Atender ao interesse público pode coincidir com o interesse “do público”, especialmente quando são preocupações de grupos socialmente vulneráveis. Direcionar um conteúdo para o cuidado evita reduzi-lo a valor abstrato. A questão não é se jornalistas podem cuidar de outras pessoas, mas sobre quais temas ou quem devem privilegiar, para entender quais histórias valem a pena serem escritas.
Por fim, todas essas recomendações pouco adiantam se não há um autocuidado do próprio profissional. Sim, estamos falando de saúde física e mental, mas não só isso. Se cabe ao jornalista cuidar do público, das fontes e da informação, ele próprio também é um objeto de cuidado. A contrapartida das organizações de mídia deve vir em forma de condições decentes de trabalho, salário compatível com a função e infraestrutura necessária. Essa dimensão também se refere à capacidade de autoavaliação dos repórteres: respeitar seus limites, solicitar orientação para superiores quando preciso e apostar na colaboração com os pares.
Mas vamos ser sinceros: todas as empresas de notícia e todos os jornalistas seguem esses cuidados? Todo o mundo é sempre tão preocupado com o bem-estar geral? É claro que não. Já dissemos que o cuidado é um ingrediente da ética jornalística e, por isso, depende da consciência dos profissionais e da boa vontade das organizações de mídia. Alguns são mais comprometidos que outros, o que os leva a provocar menos erros e danos. Nesse sentido, um jornalismo mais cuidadoso e ético é também um jornalismo melhor, de qualidade superior. Em circunstâncias extremas, é um jornalismo que salva vidas.
A percepção de que ética, responsabilidade e qualidade estão relacionadas pode levar os públicos e a sociedade a exigirem um jornalismo mais cuidadoso, por exemplo. Mas esta é apenas uma possibilidade entre tantas outras.
E quem não é jornalista?
Numa época de redes sociais, de influenciadores digitais, de produção de conteúdo por qualquer pessoa, devemos esperar os mesmos cuidados de todos? Jornalistas profissionais e comunicadores amadores não compartilham das mesmas responsabilidades, é claro. Mas é crescente a discussão de uma alfabetização midiática para o público geral, seja no consumo de conteúdo jornalístico ou na produção e disseminação de informações.
À distância de um ou dois cliques, espalhar desinformação nunca foi tão simples. Repassar conteúdos de origem duvidosa pode ser uma atitude automática nas sociedades hipervelozes de hoje. Afinal, quem tem tempo de checar tudo o que lê? Se o cuidado realmente pode ser um valor moral que orienta jornalistas, a informação produzida pelos profissionais ainda deve ser a referência para muitas pessoas. Em tese, são eles que dispõem de conhecimento técnico e do comprometimento moral com a informação que publicam.
Mas num contexto onde qualquer pessoa pode produzir suas próprias narrativas, há quem discuta uma ampliação dessa problemática. O pano de fundo é simples: todos nós deveríamos nos preocupar com a mídia, já que a informação é um bem público e afeta a todos. Por isso, uma parcela dos pesquisadores em ética jornalística defende que jornalistas e amadores compartilhem cuidados mútuos mínimos.
Não se espera que robôs contratados por empresas para espalhar fake news se tornem éticos da noite para o dia. Ou que a lucrativa indústria da desinformação, capitaneada em grande parte por plataformas como Google e Facebook, bote a mão na consciência e passe a se autossabotar. Iniciativas mais tímidas, no entanto, surgem na área educacional e investem na formação de base para uma leitura crítica dos meios de comunicação. Além do consumo, é preciso orientar diretrizes sobre boas práticas para aqueles que também produzem. Quer dizer que todos seriam jornalistas, em maior ou menor grau? Não. Mas se a técnica já está disponível a todos os amadores, por que não investir em uma educação que tenha como valor o cuidado com a informação?
PARA SABER MAIS:
CAMPONEZ, Carlos. Entre verdade e respeito – por uma ética do cuidado no jornalismo. Comunicação e Sociedade, v. 25, p. 110-123, 2014.
CHRISTOFOLETTI, Rogério. Preocupações éticas no jornalismo feito por não-jornalistas. Comunicação e Sociedade, v. 25, p. 267-277, 2014.
COULDRY, Nick. Why media ethics still matters? In: WARD, Stephen (ed.). Global media ethics: problems and perspectives. Chichester: Wiley-Blackwell, 2013.
GILLIGAN, Carol. In a different voice: psychological theory and women's development. Harvard University Press: Cambridge, 1993.
GUIA DE COBERTURA ÉTICA DA COVID-19. Observatório da Ética Jornalística (objETHOS), 36 p., 2020. Disponível em: https://objethos.files.wordpress.com/2020/07/guia_covid_objethos.pdf. Acesso em : 01 mar. 2021.
PAUL, Dairan; CHRISTOFOLETTI, Rogério. Cuidado, virtude e dilemas morais nas práticas de não-jornalistas. Intercom - RBCC, v. 43, n. 1, p. 21-36, 2020.
OS AUTORES
Rogério Christofoletti pesquisa ética jornalística há mais de 20 anos. É autor de livros e artigos sobre o tema no Brasil e no exterior. É professor de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), onde coordena o Programa de Pós-Graduação em Jornalismo e lidera o Observatório da Ética Jornalística (objETHOS – objethos.wordpress.com). É também pesquisador do CNPq.
Dairan Paul é doutorando em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no Programa de Pós-Graduação em Jornalismo, com mestrado pela mesma instituição. É jornalista graduado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e pesquisador do Observatório da Ética Jornalística (objETHOS – objethos.wordpress.com).
COMO CITAR ESSE TEXTO
CHRISTOFOLETTI, Rogério; PAUL, Dairan. O jornalismo cuidadoso salva vidas. Coletiva, Recife, n. 29 Coletiva. jan.fev.mar.abri 2021. Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-cuidado-n29-artigo-o-jornalismo-cuidadoso-salva-vidas. ISSN 2179-1287.