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14 de abril de 2021

A invisibilidade do cuidado e os direitos do cuidador

Guita Grin Debert 

 Amanda Marques de Oliveira

A discussão contemporânea sobre os desafios do cuidado pode ser caracterizada pela combinação de dois discursos. Por um lado, aquele que discorre sobre as dificuldades envolvidas no aumento da população idosa e, por outro, o que trata dos problemas relacionados ao declínio da estrutura familiar tradicional e a correspondente dificuldade da família em cuidar dos seus idosos. 

Duas soluções contrastantes são dadas para os dilemas implicados na diminuição da oferta de cuidados que a combinação desses discursos visa testar. A primeira considera que a provisão do cuidado é uma tarefa da sociedade, a responsabilidade principal é do Estado ─ que, através de impostos e taxas, cobriria os gastos envolvidos nas políticas adotadas. A segunda advoga o papel tradicional da família no cuidado de seus membros dependentes. Essa segunda solução tende a ser contestada em razão da proporção cada vez maior de mulheres no mercado de trabalho e do fato de a renda familiar ser cada vez mais dependente do trabalho remunerado do casal.  

A pandemia do novo coronavírus causou transformações profundas na organização do trabalho formal – com a intensificação das atividades home office, e principalmente, nas formas pelas quais o cuidado, seja de pessoas, coisas ou espaços, passou a ser prestado. A necessidade de novas formas de organização para a administração da vida doméstica renovou o debate público sobre relações de trabalho e gênero, mostrou o quanto somos dependentes do trabalho de outros e trouxe para o centro dos nossos desafios políticos a profissionalização do cuidado, particularmente, quando se pensa nas etapas mais avançadas da vida.

Segundo a Pesquisa Nacional de Saúde, cerca de 7% dos idosos (2.036.653 idosos) precisam de ajuda para atividades da vida diária como alimentação, higiene pessoal, medicação de rotina, acompanhamento aos serviços de saúde, bancos ou farmácias, entre outros. Desse total, em 20% dos casos, a função é exercida por cuidadores contratados e, em 80%, por familiares. 

Sabemos que falar em familiares é um eufemismo para falar das mulheres. A relação entre gênero e cuidado é uma das questões mais trabalhadas na literatura especializada, sendo largamente apontado o fato de que a maioria dos cuidadores, como dos recebedores de cuidados, é de mulheres.

Pensar na profissionalização do cuidado é rever a divisão de funções entre a esfera masculina e feminina. A tradição filosófica liberal supõe uma visão do mundo na qual o homem racional e autônomo realiza seus projetos de vida no domínio público.

 

A mulher é pensada como um ser dependente, responsável pelo cuidado dos outros, pelas obrigações familiares e pelo trabalho não remunerado. Essa visão do cuidado é tributária do “culto à domesticidade”: um ideal desenvolvido, no século XIX, com a entrada dos homens de classe média no mercado de trabalho capitalista e com a exclusão das mulheres do trabalho remunerado. Esse culto da domesticidade realçou a sensibilidade moral e emocional das mulheres de classe média em oposição ao trabalho físico que deveria ser realizado pela empregada doméstica. Enfatizou também a obrigação de cuidar, em oposição ao direito de competir e expressar interesses individuais próprios dos homens, e a natureza extremamente privada do cuidado em oposição aos negócios públicos e aos ganhos no mercado. 

No Brasil, esse cenário está fortemente relacionado ao fato de, além do cuidado ser uma atividade realizada pelas mulheres de forma não remunerada dentro das famílias, ser, para a parcela da sociedade de melhor poder aquisitivo, uma atividade realizada de forma remunerada por mulheres pobres que estão na base da pirâmide social. O cuidado é, assim, um trabalho invisível, mitificado e opressivo. 

Profissionalizar o cuidado deveria ser o corolário dos avanços que marcaram a preocupação social com a longevidade e a transformação do idoso em um sujeito de direitos. O Brasil acompanhou essas transformações e teve um papel ativo na criação de propostas, leis, decretos e medidas voltadas para esse segmento da população. Nossa Carta Constitucional, a nossa Política Nacional do Idoso (Lei 8.842/1994) e o nosso Estatuto de Idoso (Lei 10.741/2003) são, certamente, dos mais avançados no mundo. Os conselhos de idosos, as delegacias de proteção do idoso e os grupos de trabalho voltados para essa questão são parte destas conquistas.

Essas novas institucionalidades propõem medidas e estabelecem direitos segundo concepção inegavelmente integradora de setores sociais tidos como vulneráveis e envolveram na sua elaboração instituições governamentais, organismos da sociedade civil e movimentos sociais atuantes na área. Contudo, a legislação e as práticas institucionais ainda privilegiam a família como responsável principal pelo cuidado dos idosos.

 Numa sociedade com sérias desigualdades como é o caso brasileiro, num contexto que reúne a redução da disponibilidade de cuidado familiar, o envelhecimento acentuado da população e a ausência de uma rede estruturada de serviços públicos voltados à essa população faz com que as famílias tenham que se organizar de forma a dar conta do cuidado de seus idosos, articulando o trabalho (muitas vezes informal) de cuidadores, trabalhadoras domésticas e, para uma parcela que dispõe de mais recursos financeiros, dos serviços oferecidos pelo mercado, que abrange um leque cada vez maior de negócios voltado a um público de melhor poder aquisitivo.

É um desafio reconhecer que questões, até muito recentemente tidas como próprias da esfera privada, isto é, ocupação das mulheres na família, envolvem obrigações do Estado e ganham novas configurações no mundo contemporâneo. Esse desafio é hipertrofiado nos contextos de crises econômicas, de estagnação dos serviços públicos de bem-estar, de prolongamento da vida humana, de aumento da proporção de idosos na população que entre outras questões transformaram a dependência num risco social e a questão do cuidado numa preocupação política. 

É importante ressaltar que as práticas de cuidado familiar ganham um diferencial específico no contexto brasileiro, pelo fato de um significativo número de famílias de melhor poder aquisitivo contar com o auxílio da empregada doméstica. Essa é certamente uma das razões para que só muito recentemente essa questão tenha mobilizado a sociedade e os debates sobre direitos trabalhistas de empregados domésticos tenham incluído o profissional cuidador. 

A Emenda Constitucional nº 72/2013 alterou o artigo 7º da Constituição Federal, estendendo ao trabalhador doméstico diversos direitos que até então alcançavam apenas os trabalhadores registrados sob a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Esse novo contexto, embora tenha sido motivado em grande parte pela mobilização produzida pela categoria das empregadas domésticas, também impactou fortemente o trabalho dos cuidadores de idosos, uma vez que ambos estão compreendidos na classificação ‘trabalhador doméstico’.

Vemos que, em relação à regulamentação do trabalho específico dos cuidadores de idosos, muito embora uma série de projetos de lei exclusivamente voltados ao tema já tenham tramitado no Congresso Nacional, não houve nenhum avanço efetivo. Embora na esfera legislativa o debate acerca da questão se desenvolva há mais de uma década, só muito recentemente, em 2019, uma propositura relacionada à temática foi finalmente aprovada pelo Congresso Nacional, tendo sido, contudo, vetada pelo Presidente da República.

 

Trata-se do Projeto de Lei nº 11/2016 - originalmente apresentado na Câmara dos Deputados com o nº 1385/2007 - que criaria e regulamentaria as profissões de cuidador de pessoa idosa, cuidador de pessoa com deficiência, cuidador infantil e cuidador de pessoa com doenças raras. Após doze anos de tramitação, e após ser aprovado pela Câmara e pelo Senado Federal, o projeto foi vetado integralmente pelo presidente Jair Bolsonaro, com a justificativa de que a criação de condicionantes para a profissão de cuidador - como ter ensino fundamental completo, curso de qualificação como cuidador, idade mínima de 18 anos, não ter antecedentes criminais - feriria o direito ao livre exercício profissional garantido pela Constituição. O veto foi mantido, praticamente em silêncio, pelo Congresso Nacional. 

Reconhecer que a desvalorização dessas funções é fruto de uma sociedade construída na negação e na invisibilidade da nossa dependência do cuidado, da nossa ilusão de uma vida livre e autônoma, quando de fato essa autonomia depende de um conjunto de indivíduos que se ocupam da nossa vida cotidiana. Com a pandemia tomamos consciência da nossa extrema dependência de outros para que necessidades vitais sejam realizadas. A preferência pela manutenção dessa invisibilidade, porém, enfrenta agora a força da pandemia para trazer à tona dores sociais antes anestesiadas por escolhas políticas.

Com esse veto, o Brasil vai na contramão de diversos países do mundo que estão avançando na criação e desenvolvimento de políticas públicas voltadas para os idosos. Em 2020, o parlamento português aprovou por unanimidade o projeto de lei que estabelece o Estatuto do Cuidador Informal. De acordo com o Observatório da Longevidade Humana e Envelhecimento (OLHE), ONG especializada na formação de cuidadores, desde 2015, a profissão de cuidador é a que mais cresce no Brasil. Esse imenso contingente que forja a “economia do cuidado”, como definiu Zelizer (2012), engrossa a informalidade e o abstrato do trabalho. 

A sociedade envelhecida que é o Brasil cobra outras respostas. Um novo Projeto de Lei (PL 3022/20) cria o auxílio-cuidador no valor de um salário mínimo para a pessoa idosa ou com deficiência que necessite de terceiros para realização das atividades de vida diária e tem o teto máximo de renda de até quatro salários mínimos. O interesse da proposta, segundo suas autoras, as deputadas Maria do Rosário (PT-RS) e Rejane Dias (PT-PI), é garantir recursos financeiros para a contratação de cuidadores. Na apresentação do projeto, as legisladoras afirmam que “O cuidado pode ser feito por profissionais ou familiares e é um dever público do Estado”, acrescentando que “Com a pandemia de Covid-19, os cuidados com as pessoas que se procura amparar na proposta tornam-se redobrados e merecedores de maior atenção do Estado brasileiro”.

Nosso desafio, como mostra Tronto (2013), é politizar o cuidado. Esse desafio se agiganta diante do envelhecimento da população, da pouca disponibilidade e eficiência de serviços públicos, da conjuntura de crise econômica que, entre outras questões, transformaram a dependência num risco social e a questão do cuidado numa preocupação política. 

No contexto brasileiro, vemos que, embora o envelhecimento da população seja tema de crescente interesse, e a atividade de cuidado tenha ganhado os holofotes, pouco avanço é percebido no que se refere a de fato politizar a atividade do cuidado. A pandemia do novo coronavírus revelou de maneira explícita a centralidade do cuidado, nas suas diferentes formas, para a manutenção da sociedade. Ao mesmo tempo, o envelhecimento da população, e com ele o aumento das pessoas em situação de dependência, relevam a imperiosa necessidade de dar a essa atividade um novo patamar, que a retire de vez do invisível espaço doméstico e do trabalho informal. 

PARA SABER MAIS:

HIRATA, Helena & DEBERT, Guita Grin.  (org) Dossiê Gênero e Cuidado, Cadernos do pagu, n.46, 2016. Disponível em : https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0104-833320160001&lng=pt&nrm=iso

 

HIRATA, Helena & GUIMARÃES, Nadya Araújo (orgs.). Cuidado e cuidadoras: as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Atlas, 2012.

 

DEBERT, Guita Grin  and  OLIVEIRA, Amanda Marques de. A profissionalização da atividade de cuidar de idosos no Brasil. Revista Brasileira de Ciência Política, 2015, n.18, pp.7-41.  https://doi.org/10.1590/0103-335220151801.

 

OLIVEIRA, Amanda Marques de. A invenção do cuidado: entre o dom e a profissão. 2015. 194 p. Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, SP. Disponível em: http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/281151 . Acesso em: 27 ago. 2018.

 

DEBERT, Guita Grin. A reinvenção da velhice: socialização e processos de reprivatização do envelhecimento. São Paulo: EDUSP, 2020.

 

ZELIZER, Viviana. “A economia do care”. In: HIRATA, H., GUIMARÃES, N.A. Cuidado e cuidadoras, as várias faces do trabalho do care. São Paulo: Editora Atlas, 2012. 

TRONTO, Joan. Caring Democracy. Markets, Equality, and Justice. New York: NYU Press, 2013.

FELIX, Jorge. Economia da Longevidade. São Paulo: Editora 106 Ideias, 2019.

AS AUTORAS

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Guita Grin Debert é professora Titular do Departamento de Antropologia, IFCH/UNICAMP. Pesquisadora do PAGU-Núcleo de Estudos de Gênero da UNICAMP, da FAPESP pr.n. 201909742-6 e do CNPq pr. n. 30342/2017-5.

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Amanda Marques de Oliveira é doutora em Ciências Sociais pelo IFCH (UNICAMP), e mestre em Antropologia Social pela mesma universidade.

COMO CITAR ESSE TEXTO

DEBERT, Guita Grin; OLIVEIRA, Amanda Marques de. A invisibilidade do cuidado e os direitos do cuidador. Coletiva, Recife, n. 29 Coletiva. jan.fev.mar.abri 2021 Disponível em https://www.coletiva.org/dossie-cuidado-n29-artigo-a-invisibilidade-do-cuidado-e-os-direitos-do-cuidador. ISSN 2179-1287.

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