O corpo na dança contemporânea: imaginários, afetos e produção de sentidos
21 de dezembro de 2019 | Denise da Costa Oliveira Siqueira
Primeiros movimentos
Arte da cena, manifestação social, a dança é uma forma de comunicação e de expressão na qual o corpo é elemento fundamental. Danças sociais de salão, gêneros cênicos como balé clássico e dança contemporânea e formas amplamente midiatizadas como disco, funk, hip-hop, samba e seus videoclipes revelam imaginários, produzem sentidos, comunicam sobre uma época, sobre afetos e emoções.
A dança não se dissocia da cultura na qual se insere – embora possa criticá-la, transgredi-la. A dança é a própria cultura se a entendemos como uma linguagem estruturada de signos e cuja interpretação não exclui desencontros e conflitos. Observar uma dança permite apreender modos de se pensar o mundo e suas representações. Quando se acompanha o trabalho de uma companhia de dança, observa-se como coreógrafo e intérpretes veem o mundo, como refletem ou contestam valores e origens. Assim, tanto a arte quanto a corporeidade surgem no cruzamento entre os sistemas individuais e coletivos. São ao mesmo tempo “produtos” subjetivos e “produtos” sociais - o que remete ao pensamento do sociólogo americano Howard S. Becker (1977) quando reflete sobre a arte como ação coletiva.
Partindo dessas pistas iniciais, afinal, que esferas o corpo que dança mobiliza ao executar uma coreografia? Este breve texto tem como objetivo fazer uma reflexão sobre o corpo e sobre as esferas que ele mobiliza para dançar com base nas pesquisas que vimos desenvolvendo nos últimos vinte anos. Partimos de um pressuposto, fundado em uma perspectiva socioantropológica, de que o corpo em movimento coreografado ou livre, improvisado, é também uma fabricação social. Não são apenas ossos, músculos e articulações que possibilitam o gesto na dança, mas a cultura, o habitus impregnam as técnicas de quem se movimenta.
Assim, inicialmente vamos pensar a dança como arte efêmera, que só acontece uma única vez e sobre as imagens que idealizam o corpo que dança. Em seguida refletiremos sobre o lugar cultural do corpo na dança e finalmente discutiremos o corpo como obra de arte, o corpo-cultura e o corpo como mídia. O foco será dado à dança contemporânea.
Dança, imagens, idealizações
A dança é uma arte que tem como marca a efemeridade de sua execução. Uma vez realizada, nunca mais se repete: o intérprete será outro, suas condições também, o espaço, o público, tudo pode se modificar a cada espetáculo. Por isso, assistir a um espetáculo é presenciar um evento único, inédito. Qualquer registro da dança, em vídeo, fotografia, desenho ou texto, embora de enorme importância, nunca será complexo como a experiência da dança ao vivo, no espaço cênico.
Além disso, registros, muitas vezes, são representações idealizadas, por mais técnicos e objetivos que possam parecer. Henri-Pierre Jeudy, escreveu que “quando uma pessoa célebre fazia pintar seu retrato, ela não procurava uma prova do que havia sido um dia; desejava, mais propriamente, pendurar na parede uma representação idealizada de si própria” . Os registros em dança levantam mais questões, pois além de poder ser idealizados, retratam uma arte que “desafia o processo da representação” porque “sua manifestação efêmera, muitas vezes irruptiva, não oferece jamais uma significação totalmente objetivável” .
Fotografias, vídeos, filmes cumprem um papel de guardar imagens, silêncios e sons. Além deles, a palavra escrita, sob o formato de livro, matérias e críticas jornalísticas e de trabalhos de pesquisa acadêmica, possibilita uma reflexão, um olhar que nasce da pausa para pensar e registrar um momento de forma inequívoca. Tais registros permitem resgatar as representações que o artista deixou impregnadas em sua obra ou estabelecer conexões com as próprias referências de quem lê e aprecia a peça – mas sempre serão distintas da dança executada originalmente.
Na dança contemporânea, os registros cumprem o importante papel de ajudar no desafio de remontar obras muitas vezes sem notação. Lidando com elementos do balé, da dança moderna e de outros modos de movimentação, a dança contemporânea se depara com aspectos da pós-modernidade como a fragmentação, o esmaecimento de fronteiras, a desconstrução. E mesmo as tecnologias de comunicação e informação permeiam direta ou indiretamente o corpo do dançarino que vai à cena e o pensamento de quem constrói artisticamente a coreografia. São mais elementos que complexificam o trabalho da cena, mas não o deixam fugir a seu tempo.
O lugar (cultural) do corpo na dança
É o corpo – esse lugar cultural, de crenças, conceitos, preconceitos, posturas, técnicas corporais - que constrói e desconstrói a dança. Um corpo cultural que se submete a técnicas de movimentação para expressar uma ideia. Um corpo que, do ponto de vista de Jeudy, leva à questão: o corpo é um objeto de arte? Para o autor, em um sentido tradicional, “o corpo é o oposto de um objeto de arte, pois está em perpétua metamorfose. Trabalhar o corpo, ‘esculpi-lo’, é compará-lo a um objeto de arte, mas não é tomá-lo como tal” .
Para o autor, na contemporaneidade muito se comparam corpos a obras de arte no intuito de valorizá-los, o que acabaria por gerar estereótipos, especialmente porque na obra, o trabalho está pronto, enquanto o corpo se modifica continuamente. No sentido de fabricação permanente, em uma companhia de dança opera-se a construção dos corpos dos intérpretes. Provoca-se uma troca entre bailarino e coreógrafo, dialética ou dialogia entre criador e intérprete. Emprestar coreografias para outros corpos é ato que exige generosidade. Ao mesmo tempo em que a execução por um conjunto ou por um dançarino faz viver a obra coreográfica, torna real uma ideia, distancia a obra de seu criador. Torna-a obra aberta, no dizer de Umberto Eco .
Suporte da dança, o corpo é, antes disso, suporte de cultura. É biológico, psicológico e é social também. Constitui, poderíamos dizer, meio de comunicação da dança, da cultura, da arte e de muitas outras coisas. Tal corpo-mídia é extensão, um prolongamento da dança pensada. Entendido como meio de comunicação, um espetáculo de dança ou representação cênica deixa transparecer imaginários por meio dos movimentos realizados com técnica.
O “corpo utópico” do dançarino, nas palavras do sociólogo Pascal Roland, é capaz de realizar saltos, piruetas, quedas e suspensões que corpos não treinados são incapazes de realizar; ou pode, mesmo dominando a técnica, construir movimentos comuns, levar para o destaque do palco uma seleção de gestos e movimentos cotidianos. Essa possibilidade – característica da arte contemporânea – leva ao questionamento sobre o que é dança e o que constitui “simples movimento”. Também leva a pensar e a entender a dança tanto como criação de um artista coreógrafo com toda sua subjetividade quanto como reveladora do imaginário coletivo, de representações sociais.
Compreender uma dança implica dominar o código cultural no qual ela se insere: a que contexto se refere, em que tempo foi criada, por quem é remontada e interpretada. Dança é também, mas não somente, movimento no tempo e no espaço, do ponto de vista da física e da cultura. Mitos e questões ancestrais assim como problemas contemporâneos e urbanos podem surgir em cena, ser apresentados ou revisitados.
Do encontro de técnicos, criadores, públicos, intérpretes estabelece-se uma rede de informações da qual resulta o espetáculo – arte como ação coletiva, colaborativa, parafraseando o sociólogo Howard S. Becker. O criador e os técnicos que o auxiliam se inspiram e criam a partir de suas referências culturais; o intérprete imprime suas próprias marcas corporais à peça que dança; o público faz leituras, constrói significados a partir, também, de suas referências. Aplausos, standing ovations, vaias ou silêncios comunicam suas leituras e podem – ou não – servir de informação ao criador.
A questão da expressão leva a fazer uma das pontes entre arte e comunicação. Todo espetáculo parte de uma intenção comunicativa. O artista pode não ter intenção de transmitir conteúdos, educar ou formar; pode até pretender nada comunicar. No entanto, não pode impedir que o processo de comunicação se desenrole a partir de sua atuação em cena: o público vai responder, o próprio atuante responderá de volta e o fluxo continua. Esse processo é o que Eco, em sua Obra Aberta, qualifica como a “dialética ineliminável entre obra e abertura de suas leituras”. No momento em que expõe uma obra ao mundo, o artista deixa de ser seu dono exclusivo e todos que tiverem acesso a ela poderão construir leituras diferenciadas. Essa constitui uma das qualidades da arte e também o que faz dela um objeto de estudo tão singular.
Considerações para continuar a pensar
A dança não se sustenta em suportes outros que o próprio corpo. É nele que se realiza e se torna concreta, embora efêmera. Na dança o artista é o suporte de sua própria obra, ele é, então, intérprete e obra simultaneamente. Seu corpo é corpo-obra de arte, de intenção artística e estética, treinado em técnicas que possibilitam realizar o que pretende.
O corpo do artista é também, corpo-cultura, já que não se desprega de suas referências embora sempre possa apegar-se a outras novas. A cultura será continuamente mediadora, filtro e referência para o contato com novas experiências, outras artes, tecnologias e diferentes culturas que podem modificar simbólica e fisicamente o corpo do intérprete.
Finalmente, trata-se de um corpo-mídia porque é, ele mesmo, meio de comunicação de pensamentos, vontades, intenções, subjetividades. O corpo, em sua materialidade, é o meio de comunicação do pensamento, da cultura e de suas técnicas corporais, das intenções estéticas.
Assim, pensar sobre uma companhia de dança é pensar que há ali a possibilidade de construção de um corpo obra de arte, de um corpo mídia de intenções estéticas e culturais. Somente o amadurecimento do conhecimento do corpo sobre o movimento poderia fazê-lo desprender-se do gesto cotidiano para apresentar movimentos plenos de outras intenções, tornando-se, no momento da execução de uma dança, o tal corpo obra de arte; corpo, portanto, que “incorpora” a obra.
Na dança contemporânea, com sua pluralidade de linguagens, temáticas, técnicas e intenções, as obras são abertas a leituras. Essas leituras, no entanto, precisam de um público disposto e aberto ao contato com linguagens não-cotidianas, pouco exploradas, experimentais. O exercício contínuo de formação de plateias é fundamental para desenvolver tal aptidão, tal abertura ou sensibilidade e possibilitar a realização da comunicação a partir da participação em um espetáculo cênico, em uma obra de arte contemporânea.
PARA SABER MAIS
BECKER, Howard S. Arte como ação coletiva. In: ____. Uma teoria da ação coletiva. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. p. 205-225.
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1969.
JEUDY, Henri-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.
LE BRETON, David. Anthropologie du corps et modernité. 4.ed. Paris: PUF, 2005.
MAUSS, Marcel. As técnicas corporais. In: _____. Sociologia e antropologia. São Paulo: Edusp, 1974a. v. II. p. 209-234.
ROLAND, Pascal. Le corps dansant contemporain: la localisation d’un non-lieu. Sociétés: revue des sciences humaines et sociales, Paris/Bruxelles: De Boeck Université, n.60, 1998, p.13-21.
SIQUEIRA, Denise da Costa Oliveira. Corpo, comunicação e cultura: a dança contemporânea em cena. Campinas: Autores Associados, 2006.
A AUTORA
Denise da Costa Oliveira Siqueira é Professora Titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Doutora em Ciências da Comunicação (ECA/USP), com estágio pós-doutoral em Sociologia (Université Paris-Descartes). Líder do grupo de pesquisa Corps: corpo, representação e espaço urbano.