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Entrevista com Sandra Chaves

12. 2023 | Entrevista por Cristiano Borba, Marcela de Aquino, Alice Ferreira e Mylena Galdino 

Revista Coletiva — A Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Rede Penssan) desenvolve como critério a pesquisa cidadã, que propõe uma agenda de debate de ações e políticas públicas para o enfrentamento da fome. Quais são os princípios que norteiam esse tipo de pesquisa e quais as suas potencialidades no campo das políticas sociais?

Sandra Chaves — A Rede Penssan se organizou a partir de 2010 com a ideia de agregar pesquisadores que estavam atuando no campo da segurança alimentar e nutricional para fomentar uma agenda de pesquisa. Não era pra fazer pesquisa. Era para nos unirmos, [para mapear] o que estávamos fazendo, onde nós éramos bons e como a gente podia trabalhar com as agências de fomento para poder pesquisar neste país, que é sempre uma luta. Nós fomos crescendo, fomos nos constituindo e, em 2019, nos transformamos em uma rede, em uma sociedade civil. Para organizar e sistematizar toda a nossa ação, nós definimos no nosso estatuto a linha da pesquisa cidadã, muito para incidir nas políticas públicas e na promoção da segurança alimentar e nutricional.

[Entendemos] a pesquisa cidadã no sentido de que a gente não faz pesquisa para as pessoas necessitadas, a gente deve fazer com, em diálogo com a sociedade, construindo junto e o povo dialogando com as demandas da sociedade, no sentido de fomentar uma agenda de pesquisa. 

 

O nosso último Inquérito sobre Insegurança Alimentar no Brasil tinha sido feito em 2017-2018, que já estava encomendado desde o governo Dilma, sendo realizado juntamente com a pesquisa dos orçamentos familiares do IBGE, e foi a última [pesquisa]. Com a eclosão da pandemia, a não realização do Censo, todo aquele limite para pesquisa e o negacionismo que foi instaurado no governo [então] vigente, nós constatamos que precisaríamos sentir como estava a segurança alimentar da população.

 

Então, em dezembro de 2020, nós fomos a campo fazer pesquisa. Fizemos o 1º Inquérito de Segurança Alimentar no Contexto da Pandemia, Para a sua realização,  conseguimos recursos de organizações não governamentais, como o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Friedrich Ebert e a OXFAM do Brasil. Com isso, conseguimos fazer uma pesquisa com amostra por cinco macrorregiões, Norte, Nordeste, Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Dali, identificamos que havia 19 milhões de brasileiros em insegurança alimentar grave, isto é, passando fome — que já era um recuo de muitos anos atrás, porque em 2004, quando o Brasil começou a fazer pesquisa nacional de segurança alimentar, nós tínhamos 9,5% da população em insegurança alimentar grave. Quando chegamos em 2020, já tínhamos, de novo, 9%. 

 

Divulgamos esse resultado amplamente, mas o governo, na época, não considerou os resultados. Na verdade, ele desqualificou a pesquisa e os resultados. Quando deu 2020, a situação da pandemia se agravava, o número de óbitos e contaminação era imenso e conseguimos um apoio maior da Ação da Cidadania, OXFAM do Brasil e ActionAid Brasil e fizemos uma pesquisa por estados, com amostra representativa por estados do Brasil. Nessa pesquisa, identificamos um agravamento da situação de insegurança alimentar, com 15,5% dos domicílios e 33 milhões de brasileiros passando fome, até março de 2022.

 

Com isso, nós fizemos uma forte estratégia de divulgação e esse número acabou sendo importante na campanha que elegeu o governo vigente, e tem sido importante na definição de políticas públicas, na retomada de uma agenda de combate à fome no país, de promoção da segurança alimentar e de uma promoção do mundo dos direitos, porque quando nós temos fome da saúde, do direito, da educação, de tudo, a fome denuncia uma violação plena de direitos, um último estágio, vamos dizer assim, da violação dos direitos humanos. 

 

Então, isso tem gerado uma agenda muito forte, tanto de trabalho nos estados, porque muitos estados estão fazendo programas estaduais de combate à fome, como em alguns municípios e no plano nacional, com o programa Brasil sem Fome. Nesse contexto,  a rede tem colocado os seus dados e a sua expertise à disposição da sociedade para orientar a ação pública, dado que nós conseguimos produzir o relatório geral, que está publicado no www.olheparaafome.com.br, o resultado do e do 2º Inquérito, o Relatório por Estados e, recentemente, publicamos um Relatório sobre Insegurança Alimentar segundo Raça, Cor e Gênero, trabalhando a questão da interseccionalidade, que tem se mostrado extremamente forte na determinação da insegurança alimentar. 

 

Quando o domicílio é chefiado por uma mulher solo, de cor preta ou parda, o risco de insegurança alimentar dobra. Se for no Norte e no Nordeste, quase triplica. Se tiver menos de quatro anos de escolaridade, podemos dizer que estão passando fome. Então, os estudos de insegurança alimentar também denunciam o racismo estrutural na nossa sociedade, porque, inclusive, as pesquisas têm mostrado o seguinte: quando você tem a mulher parda ou negra e a mulher branca, com a mesma escolaridade, ainda assim, a mulher parda ou negra, chefe de família, vai ter maior risco de insegurança alimentar que a branca. 

 

Portanto, isso denuncia o racismo que está estruturalmente enraizado na nossa sociedade e que se reflete na situação de fome, de insegurança alimentar da nossa família. E mais: nós temos quase 30 milhões de lares chefiados por mulheres solo nesse país. Boa parte de mulheres pardas ou negras e, nesses domicílios, onde tem criança menor de 10 anos, tem maior insegurança alimentar que outros. Então, nós estamos, também, vitimizando as nossas crianças. Toda uma geração vitimizada pela fome.

 

Por isso, o desafio hoje, pra nós, é enorme, porque além de dar passos para frente na promoção do direito humano à alimentação, que é um direito, como todos os direitos humanos, incondicional, é um direito de todos, deve ser universal, com dignidade. Ainda temos que corrigir essa fissura, essa ruptura que a sociedade experimenta, de corrigir esse déficit estruturante na nossa sociedade.

Revista Coletiva - Como a professora relembrou, têm grupos que são realmente mais vulneráveis, que foram retratados nas pesquisas da Rede Penssan sobre a Segurança Alimentar durante a pandemia. Como a interseccionalidade entre raça, gênero e classe também contribui para a prevalência da fome em territórios quilombolas e indígenas?

 

Sandra Chaves — Esse ainda é um déficit da nossa pesquisa, porque a amostra de pesquisa domiciliar não alcança essas populações mais vulnerabilizadas, como os quilombolas, indígenas, população ribeirinha, meio de pasto, fundo de pasto, todos esses grupos, povos de comunidades tradicionais. Mas nós da Rede Penssan desenvolvemos um aplicativo que coloca a escala brasileira de segurança alimentar, que é a nossa ferramenta básica de diagnóstico, de uma forma mais flexível, para ser aplicada para chegar a esses povos. 

 

Então, nós acabamos de validar, uma escala para várias etnias indígenas, numa pesquisa realizada pela professora Verônica, do Mato Grosso do Sul, na cidade de Dourados. Ela validou para várias etnias, e estão saindo as publicações recentes. Esse aplicativo está disponível, é só entrar em contato com a rede e pedir acesso. A gente orienta, treina, recebe os dados e gera relatórios, desde que tenha um pesquisador filiado à Penssan no grupo de pesquisa.

 

Também estamos fazendo uma adaptação da escala para alcançar a população afrodescendente das periferias urbanas. Vamos validar agora em 10 capitais, e cada escala dessa vem com um complemento, ela tem uma certa dinâmica. Por exemplo, vamos associar o inquérito de insegurança alimentar de populaçao negra, com uma escala de discriminação racial, com a experiência de discriminação racial, porque, na nossa pesquisa, nós introduzimos uma questão para saber se as pessoas tinham feito alguma coisa que se envergonhassem ou causassem constrangimento para ter acesso à alimentação, e foi muito forte. 

 

Na zona rural, foram 24% dos domicílios em insegurança moderada e grave. O entrevistado disse que sim, que se envergonhava e que tinha feito algo que lhe constrangia, algo que não era usual, para poder comer. Na zona urbana, isso foi em torno de 20%, um quinto dos domicílios entrevistados. É muito forte e é um fator claro e relevante para se refletir a questão da violência urbana, porque a fome dos filhos, a fome na família, incita a violência, é a violência da fome.

 

Nós estamos fazendo uma dinâmica de acoplar o modo da insegurança alimentar com outras questões sensíveis para compreender como isso rebate na vida das pessoas. Então, além da escala de discriminação racial para a população negra, nós estamos desenvolvendo uma metodologia para alcançar a população LGBTQIA+, que é uma população que também não temos dados. Nós apenas imaginamos a imensa vulnerabilidade. 

 

Por isso, vamos pensar em uma outra forma de trabalhar, estamos pensando em validar a escala para alta aplicação (ainda é uma etapa metodológica a se fazer) e vamos aplicar também escalas relativas ao preconceito vivenciado por essa população; também estamos estudando a possibilidade de uma escala, que não será essa, porque a nossa escala brasileira de insegurança alimentar é uma pesquisa domiciliar, uma escala psicométrica domiciliar que começa perguntando: ”nos últimos três meses, houve preocupação, nesse domicílio, de que faltasse dinheiro para comprar comida?” Essa é a pergunta de entrada, a pergunta fio. Se [a resposta for] sim, segue, se não, vai para o campo da segurança alimentar. Se sim, você vai no gradiente. 

Então, é uma pergunta que não cabe, por exemplo, a uma população com trajetória de rua, [porque] não há domicílio. A gente inicia partindo do entendimento de que a população com trajetória de rua já está em insegurança; agora, você pode ter: “como sobrevive? Como o direito à alimentação está sendo vilipendiado, como se vive isso com essa população?” 

 

A gente está começando a estudar também nessa linha. O desafio é realmente ir aperfeiçoando a metodologia de forma que nós possamos alcançar essas populações mais vulnerabilizadas, que uma pesquisa por amostra domiciliar não vai alcançar. Para a população quilombola e os povos de terreiros, nós também já temos grupos trabalhando, aperfeiçoando a metodologia para alcançar essas populações. É isso o que entendemos de pesquisa cidadã. 

Revista Coletiva — Sobre a atuação do aplicativo, a Rede tem atuado de mais outras formas diante do agravamento do cenário da insegurança alimentar e o retorno do Brasil ao Mapa da Fome?

Sandra Chaves — Nós aprendemos muito com essa pesquisa. Nós somos todos pesquisadores acadêmicos, então, quando fizemos o 1º Inquérito de Segurança Alimentar, a gente pensou: “como?” A gente faz um seminário, faz um evento, publica um artigo, se for o caso, um livrinho e pronto. Mas aí, os nossos parceiros disseram, que não, que precisamos ter uma estratégia de divulgação científica mais ampla, para alcançar diferentes camadas da população e temos aprendido muito com o povo de Comunicação e Jornalismo sobre as estratégias de comunicação. 

 

Com isso, fizemos media training para responder entrevista, para organizar texto. Os nossos relatórios, se vocês verem lá no site, são  muito bonitos, informativos, não é aquela coisa preta e branca que a gente faz na academia. Com estratégia de divulgar nas principais fontes, fazer embargo, dar exclusividade para grandes veículos, na ideia de dar visibilidade, acho que conseguimos um resultado bastante significativo nisso. 

 

A partir daí, por que eu estou aqui falando com vocês? Eu falo com todo mundo que me convida, é só ajustar a agenda. Eu e outros da Rede estamos sempre à disposição, para divulgar esses resultados. Foi a forma que encontramos de mobilizar e de divulgar [as pesquisas]. Eu falo para escolas de agricultores rurais, escolas rurais comunitárias, falei com a escola Paulo Freire, do pessoal da agricultura familiar, vou na pequena agricultura etc. Onde houver a chamada e a janela, a gente vai.

 

Estamos incidindo assim, conversando com o governo dos estados, levando os dados, trabalhando-os para pensar em políticas públicas e ajudando a desenvolver metodologias, porque a gente diz para o estado que ele está com um percentual alto de insegurança alimentar grave. Aí, o estado quer saber quem são e onde estão, porque nós temos o geral do estado. Então, a gente está desenvolvendo e compartilhando metodologias para localizar essas populações mais vulneráveis. 

 

De uma certa forma, os relatórios já ensinam. O gestor que quer fazer não erra. Você pega baixa escolaridade, baixa renda, mulher solo preta ou parda, desemprego, você não vai errar (ou vai errar pouco). Mas podemos aperfeiçoar isso. Aqui, no governo da Bahia, a gente está trabalhando nessa direção, para uma Bahia sem fome. Para localizar as populações mais vulnerabilizadas, aprofundar a análise, estudar a segurança alimentar no sentido de disponibilidade de alimento, de acesso ao alimento, do consumo, da utilização biológica. Esse é um desafio para todos nós, não é só no Brasil — é no mundo. 

 

Mas uma das coisas que a gente aprendeu ao longo dos anos é que a questão não é individual, porque, durante muito tempo, a gente culpabilizou a vítima. “Você está desnutrido porque não come direito”, “você não sabe comprar alimento”, “quando você tem dinheiro você compra errado” — ou seja, víamos a questão individualmente. 

 

Só que você tem um ambiente alimentar que não é protetor, não é promotor da alimentação adequada e saudável e esse ambiente alimentar é sustentado por um sistema alimentar que também não é favorecedor da melhor alimentação. Então, hoje, é um desafio, para nós também, desenvolver indicadores e pesquisas que estudem os sistemas alimentares e o ambiente alimentar. Ambiente alimentar é o seguinte: internacionalmente, se classifica em desertos, pântanos e oásis. 

 

Desertos alimentares são aqueles espaços em que você tem a menor oferta de alimentos de verdade, de comida in natura, hortifrutigranjeiros.

O pântano tem [uma oferta equilibrada de] ultraprocessados e hortifruti, [sendo este último o lugar que existe] alimento de verdade.

 

O Guia Alimentar da População Brasileira diz que [alimento de verdade] é aquele alimento que tem a menor distância possível entre a natureza e o consumidor. Não tem processamento, ou o processamento é o mínimo possível.

 

Então, nos desertos, você tem muito mais ultraprocessados, porque tem mais tempo de prateleira, tem menor custo, não são perecíveis. O hortifruti é perecível, tem custo. A produção agroecológica tem custo. E no pântano, é mais ou menos equilibrado. 

 

No oásis, você tem mais ofertas de alimentos in natura, de alimentos de verdade. 

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O triste dessa história é que onde reside a população mais vulnerável, você tem mais desertos alimentares, porque se um maço de alface custa três reais, com três reais eu compro [um maço] e não dá saciedade, porque alface não dá saciedade. Mas se eu compro dois pacotes de biscoito de um real e pouco cada um,  a criança fica estufada, tem um prazer e acha que está alimentada. 

 

Então é uma luta incrível, a questão dos ultraprocessados: que tem toda a relação com as doenças crônicas não transmissíveis, como sobrepeso, obesidade, doenças cardiovasculares, que está muito ligada à questão dos ultraprocessados. Portanto, é muito importante, hoje, que a gente estude os ambientes alimentares e entenda o sistema alimentar, que vai implicar desde as decisões do que produzir, como produzir, como distribuir, formação de preço, cesta básica.

 

Faz 44 anos que eu estou nessa estrada, na academia, trabalhando com [os temas] fome, desnutrição, insegurança alimentar. Nunca participei de um debate, como a gente está participando agora, de política de abastecimento alimentar no Brasil. Exatamente para pensar o que está sendo produzido, onde e por quem. 

 

Nós queremos colocar o alimento agroecológico na alimentação escolar, mas temos que garantir a produção de qualidade, a distribuição disso. Sabe que temos uma tensão enorme entre o agronegócio e a agricultura familiar? A agricultura familiar tinha desaparecido do governo brasileiro depois de 2016, até 2023. Voltou agora para a agenda. Inclusive, são produtores rurais que sofreram muito com a pandemia e a insegurança alimentar. Entre os pequenos produtores rurais foi gravíssima, e o crédito só está sendo recuperado agora,. 

 

Inclusive, entendendo que povos de terreiro, população quilombola, indígenas, produzem alimento, portanto, deve ser integrado no sistema alimentar e comercializado no Programa de Aquisição de Alimentos da agricultura familiar (PAA), que tinha sido paralizado também desde 2016 e foi retomado recentemente, sendo mais inclusivo, trazendo também essa produção que vem dos povos e comunidades tradicionais para a alimentação escolar — por ser um alimento de qualidade, por ser comida de verdade e por favorecer também essa agricultura familiar original, porque isso é fundamental. 

 

Então, nós temos incidido também nesse campo. Em outubro, nós fizemos a 1ª Conferência Nacional Livre sobre Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar. Reunimos pesquisadores do Brasil todo, lá no Ministério de Ciência e Tecnologia e Inovação, com o apoio do próprio Ministério, que foi muito importante para nós. A ministra Luciana Santos esteve lá divulgando e nós estamos perfeitamente colados com uma agenda que vai se preocupar com isso, com a soberania, com a segurança alimentar, com a produção de alimentos agroecológicos. 

 

Nós fizemos uma agenda de pesquisa, vamos discutir, ainda esse ano, na 6ª Conferência Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. Já fizemos cinco conferências entre 2004 e 2015, [mas] esse processo foi interrompido, o Conselho de Segurança Alimentar — Consea — foi desmontado em primeiro de janeiro de 2019, foi retomado agora em 2023.

 

Vocês imaginam como lutar pela segurança alimentar e nutricional incomoda?! O primeiro Conselho de Segurança Alimentar foi criado por Itamar Franco em 1993, naquela mobilização após o impeachment de Collor, que teve a Ação da Cidadania contra a Fome a Miséria pela Vida, liderada por Herbert de Souza. A partir disso, foi criado o primeiro Consea e começou um trabalho maravilhoso de articulação de ministérios com a sociedade civil, para pensar diferentes políticas de combate à fome no país. Naquela época, se falava em 32 milhões [de pessoas em insegurança alimentar], mas era outro critério de fome que se usava, era renda.  

 

Bom, quando veio o governo Fernando Henrique Cardoso, no primeiro dia de governo, ele extinguiu o Conselho de Segurança Alimentar e criou o Conselho de Comunidades Solidárias dizendo que era a mesma coisa, mas não era a mesma coisa. Então, enterrou a segurança alimentar. Veio o primeiro mandato do presidente Lula, retomou o Conselho de Segurança Alimentar com a participação da sociedade civil e dos ministérios para desenhar política pública para enfrentar a fome. Ok. Teve uma luta muito interessante, e acho muito importante dizer para quem nos ouve, ou para quem nos lê, que sim, nós sabemos tirar as pessoas da miséria e da fome. 

 

Nós começamos em 2004. Na primeira pesquisa nós tínhamos 64 e poucos porcento de domicílios em segurança alimentar. Então, em cada 10, eu tinha mais ou menos 6 em segurança e 4 em insegurança, já resultado do primeiro ano do governo, que teve Bolsa Família e alguns programas [de transferência de renda] em 2004. Isso veio subindo, com a persistência das políticas públicas.

 

Em 2014, nós tivemos o nosso melhor resultado: 77% dos domicílios brasileiros em segurança alimentar. Então, de cada 10 domicílios, eu tinha quase 8 em segurança e 2 em insegurança. E a insegurança alimentar grave desceu para 4%. Por isso que o Brasil foi tirado do mapa da fome da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura — FAO entre 2014-2015. 

 

Quando a gente olha pra trás, consegue aprender com as políticas públicas: Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), reforma do Programa de Alimentação Escolar (PNAE), para garantir alimentação saudável; Minha Casa Minha Vida, porque habitação é uma medida de segurança; transferência de renda com condicionalidades na educação e na saúde, expondo mais essa população a direitos no campo da saúde e da educação; e, claro, a redução do desemprego — nós chegamos a ter 5% de desemprego no país. Então praticamente quase toda família tinha alguém empregado, com renda. Então nós tivemos um ciclo virtuoso que chegou a esse resultado. 

 

Claro que você não corrige distorções estruturais na nossa sociedade em 10 anos. É preciso muito mais perseverança e persistência. Em 2016 — porque não foi só a pandemia —, o golpe na democracia brasileira já fez isso, porque paralisou políticas públicas e tirou recursos de políticas sociais. Daí, quando chegou em 2017, a gente já teve a redução dos domicílios em segurança alimentar e o aumento da insegurança, porque a segurança alimentar é muito sensível à ação do Estado.

 

São necessárias políticas públicas sociais, políticas públicas inclusivas, afirmativas. Então passamos por esse ciclo, mostramos que sabemos fazer e que precisamos fazer mais. Com a pandemia, a gente chegou, no primeiro ano, a esses 15 milhões, 9% da população em insegurança grave; e em 2021, chegamos a 15,5% dos domicílios, 33 milhões. 

 

Um cenário extremamente deficitário e demandando pensar em política de abastecimento alimentar: porque arroz e feijão, que une o Brasil de Norte a Sul, chegou a R$10,00 o quilo. Isso é ausência de uma política de abastecimento alimentar. A carne, a proteína animal, também ficou muito cara; os produtos de hortifruti também são caros, e o gás, que em alguns lugares chegou a R$150,00. Tudo isso mexe com a segurança alimentar da população. Então esses resultados mobilizam — e estamos aprofundando essas análises para que possamos animar políticas públicas diferenciadas, inclusive correspondendo à realidade dos diferentes estados, porque nós temos insegurança alimentar. 

 

Quase 30% dos domicílios da região Norte estão em insegurança alimentar, em torno de 25% no Nordeste. Mas também temos no Sul e no Sudeste. Caiu muito a segurança alimentar nessas regiões. Todo mundo sofreu, mas as estratégias podem ser diferentes, a depender da realidade de cada território. 

 

Nós também fazemos algumas outras ações: o movimento das cozinhas comunitárias em São Paulo nos procurou, porque eles queriam uma avaliação das cozinhas. Aí a gente identifica pesquisadores da rede que possam fazer isso e casa a necessidade com a vontade.

Revista Coletiva — Para aprofundar um pouco a questão sobre o direito à alimentação, como garantir o acesso à comida de verdade — bem longe desses ultraprocessados que a maioria da população consome — em consonância com a soberania alimentar? 

 

Sandra Chaves — Esse é realmente um grande enfrentamento nosso. Quer dizer, como é que se fala em soberania num mundo tão difícil de lidar? O Conselho de Segurança Alimentar nasceu nos anos 40, no período entre guerras, porque os governantes da Europa perceberam que a população civil estava sendo vitimizada pela fome dentro da guerra. Naquele contexto, você matava as pessoas de fome e não era esse o sentido da guerra, ou não deveria ser. Então, a segurança alimentar nasceu em situação de conflito de guerra, depois foi evoluindo e percebeu que as pessoas passavam fome mesmo sem guerra — na África, nos países subdesenvolvidos—, e isso veio evoluindo até a segurança alimentar e nutricional. 

 

A gente vê hoje, de novo, a segurança alimentar e a segurança hídrica sendo usadas como estratégia de guerra, estratégia realmente de assassinatos coletivos. Com isso, nós resolvemos fazer esse debate para requalificar essa discussão, que nos parece muito relevante e é um desafio, porque ao falarmos em comida de verdade, em soberania alimentar e direito à alimentação universal para todos, nós estamos enfrentando interesses muito grandes e globais: o agronegócio, que são 6 empresas do mundo que controlam o mercado consumidor de alimentos, como a Bunge, a Bayer etc. Tem empresas — eu não sou tão especialista, mas sei — que produzem e vendem a semente transgênica, vendem o agrotóxico, depois vendem o remédio para corrigir a intoxicação pelo agrotóxico. Empresas norte-americanas, alemãs, chinesas, e isso é um mercado global muito forte. 

 

Eu estive duas vezes na Amazônia esse semestre e vi uma barca da Nestlé atracada em um porto, em Belém, do lado da barca do SUS. A barca da Nestlé é maior, mais colorida, “mais tudo” do que a do SUS. Ela vai naqueles vilarejos todos da beira-rio, as pessoas fazem os pedidos e depois eles entregam o ultraprocessado. Então, é muito difícil. É uma luta. Eu gosto quando o governo fala que não é a luta contra o agronegócio, é a luta contra o mau agronegócio, porque pode haver um agronegócio sustentável, que empregue, (dizem que há, que é possível), então vamos ver se isso é possível. 

 

As pessoas precisam saber que a agricultura familiar é que coloca comida no nosso prato. O agronegócio está alimentando os animais de outros países, que é ração animal, basicamente, com a soja, o milho transgênico etc. Então é uma luta, mas eu acredito nessa luta com a persistência, com a denúncia constante a partir de dados científicos. Por isso, estamos estimulando pesquisa científica efetivamente, estamos discutindo conflitos de interesse da questão alimentar.

 

Há um movimento do Ministério da Saúde com a Organização Pan-Americana de Saúde, estudando os conflitos de interesse, [porque as empresas] ícones da alimentação ultraprocessada e não saudável, como os refrigerantes extremamente açucarados, financiam programas de abastecimento alimentar saudáveis. A gente tem que tomar cuidado por conta dos conflitos de interesse que estão extremamente presentes na área alimentar, como na área farmacêutica também, e outras áreas. 

 

Lutamos pela rotulagem de alimentos e do ultraprocessados que dissesse lá “isso aqui é alto em gordura”, mas temos também que educar a nossa população. Esse é um desafio para nós, porque eu coloquei o rótulo dizendo que é alto em gordura saturada, que é alto em açúcar, mas eu ensinei a população a ler o rótulo? Eu orientei a população a como agir a partir do rótulo? Também é preciso fazer isso. 

E eu tenho dito, esse tem sido o  meu mantra, mas eu não sei exatamente como fazer. Só que nós temos uma população que não foi formada na cultura do direito. Boa parte da nossa população foi aprisionada no sistema das políticas sociais como beneficiário, assistido, e não como sujeito portador de direitos. Então, há um endeusamento daquele que doa do tipo “Foi Deus que quis”, “Assim é”, “A vida é assim mesmo”... A conformidade, a inércia.

 

Há um deslocamento do sentido de ser pessoa portadora de direito, por isso eu estou aqui. Se as pessoas não se apropriam da ideia de direito, elas não vão para a arena pública lutar por direitos. Aceita “Ah, ia terminar um dia mesmo”, “É assim mesmo. Sempre foi”. Diante disso, nós precisamos trabalhar uma forma de alcançar a população para disseminar a compreensão de que todos nós somos portadores de direitos e está lá na Constituição: direito à saúde, à educação, ao lazer, ao trabalho, à alimentação. Nós conseguimos garantir o direito à alimentação na Constituição em 2010. Imagina como nós somos atrasados em direitos. 

 

A Declaração dos Direitos Humanos falava em direito à alimentação em 1946, e a nossa Constituição Cidadã não incluiu esse direito em 1988. Nós conseguimos, a partir de um movimento popular, capitaneado também pelo Consea, 1 milhão de assinaturas — uma emenda popular, que incluiu o direito à alimentação na Constituição, no artigo 6º, mas não foi regulamentada. Nenhum parlamentar na época teve coragem de ir para a arena pública dizer que era contra, mas também ninguém foi regulamentar o direito humano à alimentação. Então está na Constituição, mas ele não é operacionalizável, a não ser para a judicialização de alimentos especiais, para doenças que exigem leites especiais para crianças. Mas o direito à alimentação como um todo não está. 

 

Isso é  um desafio, e a nossa população não briga muito por essa agenda, porque acho que todos nós nos perguntamos, na época que todas as políticas de cotas das universidades, a própria transferência de renda, o programa habitacional de interesse social, o Programa de Aquisição de Alimentos, quando todas essas políticas foram paralisadas a partir de 2016: por que os que foram beneficiários por 10 anos não foram pra rua brigar, gritar, lutar por seus direitos, votar em parlamentares que quisessem representar esses direitos? Creio que porque nós não soubemos comunicar, não trabalhamos bem essa apropriação de direitos. As pessoas acham que é doação, que é assim mesmo, que acaba. Não é assim mesmo. Está na Constituição, é meu direito. 

 

Assim, temos que trabalhar nessa perspectiva, e não vai ser a curto prazo, vai levar muito tempo pra gente construir na sociedade essa perspectiva de direito. Tem um antropólogo, o Roberto Da Matta, que interpreta muito o Brasil. Ele tem um livro que se chama As casas e as Ruas, e é interessante que, no Brasil, o nome “cidadão” foi construído de tal forma que chamar um “venha cá, cidadão” parece que você está chamando um criminoso. É um codinome desqualificado. Eu estudei parte de política social na França e é completamente diferente a ideia de cidadão e cidadania na Europa, porque cidadão é aquele que ocupa a arena pública para manter direitos e conquistar mais direitos. Aqui, é “lá vem aquele cidadão”, uma negativa do conteúdo da cidadania.  

 

Como Sérgio Buarque de Holanda já escrevia, “Aqui houve Estado antes de existir nação”. Nós fomos atropelados pela chegada do Estado, do Reino Português, sem que se constituísse uma ideia de cidadania brasileira, porque a gente era colônia ultramarina. Então, tem muitos elementos históricos para entender como a gente chegou a esse patamar da perspectiva do direito que temos nesse país, nessa sociedade.

 

Por isso, é uma luta muito grande que temos pela frente. Mas eu acho que estamos caminhando nisso, temos que mexer na educação, na cultura, fazendo essa temática chegar a todos os brasileiros, dando acesso a direitos e dizendo porque você tem acesso a esse direito, e que ele possa perseverar para além. Eu acho que estamos em um momento muito bom nesse sentido da discussão, do debate. Estamos tendo mais possibilidades de pesquisa também, de pós-graduação com bolsas, voltando a ter bolsas para os alunos voltarem para a pós-graduação para fazer pesquisa. 

 

Esperamos que essa pesquisa possa contribuir, porque a gente acha os caminhos para melhorar esse país. Aí, vamos ter que perseverar, porque não serão quatro anos, não serão oito anos; serão muitos anos, se nós conseguirmos manter o caminho certo. E claro que eu acho que nós precisamos trabalhar também, orientar, provocar uma reflexão sobre o processo de votar. Precisamos entender que desde o nosso voto na Câmara de Vereadores ao prefeito de nossa cidade, na Assembleia Legislativa dos estados, nós estamos dizendo que Brasil nós queremos para nós e para toda a sociedade, porque não é possível que a gente vote num governo presidencial em uma direção progressista e vote num parlamento em uma direção totalmente retrógrada. É difícil você conduzir o país assim. É a tal da governabilidade.

 

Nós todos estamos vendo as dificuldades que isso traz para o Brasil, que é um presidencialismo, mas um presidencialismo de coalizão. Se não tiver um parlamento que apoie, nós não vamos conseguir mudar esse país. Então, precisamos trabalhar educação-política-cidadã também nas nossas comunidades, nas nossas salas de aula. Não precisa ser partidário, mas cidadã. Democrática, cidadã e, do ângulo em que enxergo o mundo, que seja algo inclusivo, que possa corrigir as desigualdades imensas que temos nesse país.

Revista Coletiva — Você citou alguns intelectuais brasileiros. A Fundação Joaquim Nabuco abriga desde 2011 o acervo privado do intelectual Josué de Castro  e tem abordado debates sobre a atualidade de suas obras e sua revisitação pelos movimentos culturais. Como situar o pensamento de Josué de Castro no cenário de recuos e avanços no país no tocante à geopolítica da fome?

Sandra Chaves — Eu trabalhei muito Josué de Castro na minha dissertação de mestrado, porque eu sou nutricionista, e Josué de Castro foi o ideólogo da profissão de nutricionista no país. Ele foi líder na conformação do campo de saberes e práticas em alimentação e nutrição no país. Já havia algum estudo de fome no século XIX, feito por [um] farmacêutico que trabalhou com desnutrição, carência nutricional, mas Josué juntou tudo isso, com a sua sensibilidade de pernambucano, às beiras dos manguezais, e conceituou a fome endêmica, epidêmica e oculta no seu livro Geografia da Fome.

 

Vocês imaginam que tem gerações de profissionais de nutricionistas e em ciências humanas que jamais leram Geografia da Fome ou Geopolítica da Fome? Porque a ditadura exilou Josué de Castro e proibiu todas as suas obras, que voltaram a ser reeditadas no Brasil [só] no final dos anos 80, naquele processo de redemocratização.

 

Então, é muito importante esse trabalho de resgatar toda a obra de Josué de Castro, porque há gerações que não o leram. Quando eu cheguei na França para estudar política social no meu doutorado, quase todos que trabalhavam comigo tinham lido Josué de Castro inteiro, e aqui não. Eu tive sorte, porque fui aluna da filha dele. A socióloga Ana Maria Castro foi minha professora na UFRJ quando eu fazia nutrição. Claro que ela não podia citar o pai, era ditadura, mas havia um “arzinho”, e eu tive a oportunidade de ler Josué de Castro escondida naquela época, que fez a minha cabeça desde então. 

 

Josué de Castro é muito importante em toda essa história por isso, por toda essa formação. Ele não era um revolucionário, ele não era um socialista, ele era um homem liberal, mas um liberal democrático, culto e incomodado com a desigualdade. Ele dizia, desde 1946, que, para mudar, nós tínhamos que fazer uma reforma agrária. Imagine que a reforma agrária estava na pauta em 1946.

 

Eu digo que ele era um ambientalista avant-garde. Se vocês olharem, no Geografia da Fome tem um mapa das carências nutricionais do Brasil em que ele situa, pelo modo de produção, pela fauna, pela flora, pelo clima, ou seja, também pela questão ambiental, o risco de carências nutricionais específicas. Isso é pré-epidemiologia. Então, eu acho que esse resgate é muito interessante para os pesquisadores, para que vejam o que ele denunciou naquela época e o que nós temos hoje.

 

Eu estava na Amazônia discutindo a volta da desnutrição infantil. Em 2022, nós batemos recorde de desnutridos infantis internados em hospitais. Estava se anunciando isso, a gente dizia na pesquisa, porque se eu tenho tantos domicílios em insegurança alimentar grave, essas crianças vão desnutrir. Observe que o sistema de saúde também estava abalado pela demanda da pandemia, a atenção básica totalmente comprometida com a pandemia. As pessoas com medo, inclusive, de irem ao serviço, porque era risco de contaminação. 

 

As crianças deixaram de tomar vacinas. A queda vacinal no Brasil é um escândalo. O recuo vacinal está começando a retomar agora. Nós estamos tendo muitos casos de desnutrição infantil com óbito no país inteiro, e quando você olha pra Josué, quantas coisas ele disse lá e serviu…. 

 

Os restaurantes populares, que temos hoje como grande estratégia de promover acesso ao alimento às populações vulneráveis, foi uma ideia dele. Ele não conseguiu fazer para o país todo, fez para trabalhadores da previdência social quando criou o serviço de alimentação da Previdência Social. Mas o projeto dele era construir restaurantes populares com alimento saudável para todos. Recentemente, essa ideia foi resgatada e estão aí os restaurantes, que são abertos a todas as pessoas a R$ 1,00 ou R$ 2,00, dependendo do lugar.

 

Por isso é muito importante resgatar Josué. E ele passa bem, porque não pode ser acusado de comunista, tendo em vista que ele não foi um. Aí, mesmo os liberais mais conscientes aceitam conversar com Josué de Castro, aceitam essa literatura, e é a nossa história. Então, quando junta Paulo Freire, Josué de Castro, Gilberto Freyre, nós temos uma base da cultura nacional que vai nos dar uma identidade e vai mostrar da onde partimos, que nós temos uma história.

 

Hoje, alguém estava dizendo que o homem brasileiro é um ser cordato, que o brasileiro não é chegado às lutas. Não. Não é verdade. Nós temos muitas lutas, só que as nossas lutas são escondidas pela burguesia. Tem um livrinho, Movimentos Sociais Populares no Brasil. Nele a gente vê muitas lutas. Aqui na Bahia foi um monte de movimentos pequenos, que eram massacrados, como o Monte Santo e Antônio Conselheiro foram massacrados pelas forças militares; escondidos, não noticiados. Há muito movimento acontecendo. Recentemente houve muito movimento em São Paulo contra a privatização da Sabesp, mas só aparece briga, violência. “Entraram com violência”. Eles estavam defendendo direitos. Direito à água.

 

Na pesquisa do 2º Inquérito, nós introduzimos uma escala de segurança hídrica. Com ela, nós constatamos que onde há insegurança hídrica, há insegurança alimentar moderada e grave e vice-versa. Eles vêm iguais. Água é alimento, água é higiene, água é preparo de alimento, é manejo de animais, água é produção de alimentos. Então, a insegurança hídrica e a insegurança alimentar estão super associadas E a gente está, numa conjuntura dessas, aprovando privatização de água. É muito, muito sério o que está acontecendo. 

 

Portanto, nós temos ainda muito a aprender a partir de Josué de Castro, fazendo uma análise crítica, uma atualização, claro, teórico-metodológica. Mas é fundamental, porque literaturas que eu acho que devemos incentivar nossos alunos [a ler], tipo Josué de Castro, Dante Costa, que foi do seu grupo, Darcy Ribeiro, com a obra Formação do Povo Brasileiro, para entender essa cultura que é, como Darcy Ribeiro dizia “mais do que miscigenação”. Nós somos mais do que isso.

 

Darcy Ribeiro defendia que nós tínhamos que ter uma outra etnia, porque você tem branco negro e amarelo, mas ele defendia que devia ter a etnia brasileira, porque não era nem branca, nem negra, nem amarela. Era uma outra coisa. E ele vai localizando, pela formação social do Brasil, em diferentes regiões, como é que isso se dá. É muito colada, muito entremeada a nossa misturada, o que a gente fez aqui de integração sócio-racial, ainda que com essas fortes marcas do racismo, que está aí. Então, é muito importante esse debate e esse resgate, para que nós possamos nos compreender na sociedade dos anos 40.

 

Como eu falei pra vocês, eu entrei na faculdade em 1967, eu me formei toda na ditadura, até o mestrado foi na ditadura, depois que eu vivi a democracia. E me dói muito, porque, às vezes, você olha para alguns problemas e diz: eu não acredito que eu estou discutindo isso de novo. Eu sempre termino as minhas conferências dizendo: “A gente está aqui porque daqui a 10 anos eu não quero estar falando de fome, eu quero estar falando de superação”. Do caminho da superação da fome, porque não é possível que tem 80 anos que Josué de Castro denunciou a fome no nosso país daquela forma, em 1943, e nós estamos aqui falando de fome de novo. Depois, em 93, com a Ação da Cidadania contra a Fome e a Miséria, a fome entrou na agenda política. [Hoje] com todo esse retrocesso, estamos aqui, de novo, falando e lutando contra a fome. 

 

Nós precisamos, realmente, para nos afirmarmos como nação democrática, como uma grande nação, superar isso. Não se faz uma grande nação com tanta desigualdade e com tanta fome. Só seremos grandes se formos capazes de incluir todas essas pessoas em direitos básicos de cidadania, como a saúde, a água, a alimentação, a dignidade de viver.

A ENTREVISTADA

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Sandra Maria Chaves dos Santos é coordenadora da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan); professora associada da Escola de Nutrição da Universidade Federal da Bahia; doutora em Administração Pública pela Universidade Federal da Bahia (2001); mestra em Saúde Pública pela Universidade Federal da Bahia (1989); graduada em Nutrição pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1978). Tem experiência na área de Nutrição, com ênfase em planejamento e avaliação de políticas e programas de alimentação e nutrição, atuando principalmente nos seguintes temas: avaliação de políticas e programas de alimentação e nutrição e segurança alimentar, desenvolvimento de metodologias para avaliação de políticas e programas sociais. 

COMO CITAR ESSE TEXTO 

 

SANTOS, Sandra Maria Chaves dos. Entrevista com Sandra Maria Chaves dos Santos. [07. dez. 2023] Recife: Revista Coletiva. Entrevista concedida à Cristiano Borba, Alice Ferreira, Marcela de Aquino e Mylena de Paula. Disponível em: <https://www.coletiva.org/dossie-a-fome-e-a-inseguranca-alimentar-no-brasil-n33-entrevista-com-sandra-chaves>. ISSN 2179-1287.

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