Diversidade
Socioambiental
Editor temático: Pedro Silveira
nº 24 | 18 de setembro de 2024
Nota do editor: o texto a seguir é um dos capítulos do livro "Tapari e suas narrativas caiçaras" (2024), em que o autor, por meio de seu alter ego Tapari, leva os leitores a experiências filosóficas das comunidades caiçaras.
Sementinha da Caxeta
Paulo Cesar Franco [1]
Passando por uma trilha alagada, Tapari lembrou-se de uma história sobre a sementinha da caxeta. Na história ventava noroeste quando a sementinha foi levada para a imensidão da Mata Atlântica num movimento de subida e descida sobre as copas das árvores. Quando o vento diminuiu, ela começou a cair até se enroscar numa taboa que morava no brejo. Quando se deu conta que estava ao lado de uma planta, respirou aliviada por se sentir segura, e imediatamente iniciou um diálogo. Contou para a taboa que estava viajando em busca de um lugar para constituir sua família uma vez que seus pais lhe haviam ensinado que a caxeta adulta deve espalhar suas sementes em novos espaços para germinar, crescer e dar continuidade à espécie. No embalo da conversa, a sementinha afirmou para a taboa que estava cumprindo a ordem dos pais, mas confessou que se sentia perdida e incomodada com o mormaço que o noroeste fazia e por isso precisava de orientação.
A taboa, que sempre foi uma planta acolhedora, não poupou ajuda a nova ocupante do brejo, cuidando rapidamente de ampará-la. Ouviu da moradora do brejo que o Noroeste deixa mesmo a pessoa aíva fazendo com que o corpo fique indisposto e sem jeito, mas que essa indisposição faz parte da mudança do tempo. Continuando o acolhimento, a taboa começou apresentando o brejo que era um lugar alagado, úmido e muito bom de morar. Quando seus pais chegaram ali haviam poucas samambaias, capins e cipós e, que mais tarde, acolheram também os sapos, as formigas e alguns peixinhos como o vira-morro. Naquele momento a comunidade do brejo precisava de árvores maiores para aumentar a biodiversidade do lugar e que a sementinha da caxeta estava convidada a propagar a família da tabebuia cassinoides, nome científico da caxeta. A sementinha ficou muito feliz pelo convite para morar no brejo e logo passou a sonhar com seu projeto de vida.
Ao anoitecer, quando o orvalho começou a umedecer a sementinha, ela escorregou da folha da taboa e foi parar no chão. Chegando ao chão encharcado, uma minhoca apareceu para dar boas-vindas e logo tratou de empurrar a sementinha para um local mais seco. Não demorou muito para uma formiga cumprimentá-la e depois oferecer uma folha de guanandi que pudesse protegê-la dos roedores. Debaixo da folha seca, a sementinha começou a germinar e aos poucos foi fixando suas raízes na terra alagadiça e projetando seus caules para o céu até ficar mais alta do que a vegetação que antes lhe encobria. Quando chegavam os períodos chuvosos, o brejo enchia atraindo várias espécies de sapos que vinham ali se reproduzir. Numa das enchentes chegou um casal de perereca e pediu abrigo para a caxeta que tinha entre suas raízes uma confortável caverna. Prontamente a caxeta lhes autorizou a moradia, pois se lembrou do dia que fora acolhida pela taboa. Assim, o tempo foi passando e a caxeta foi crescendo tanto que ficou bem longe da taboa e dos outros bichinhos. Mas, sentindo falta dos amigos do brejo, a caxeta pediu para um bando de panapaná que trouxesse uma sementinha de timbopeva para habitar em seus galhos.
Assim que as borboletas atenderam ao pedido da caxeta, a árvore perguntou como estavam as coisas lá embaixo. Uma das borboletas contou que uma cobra d´água havia comido o casal de perereca que viviam nas suas raízes. A notícia deixou a caxeta muito triste, mas ela entendeu que a vida na natureza segue essa cadeia alimentar. Tempo mais tarde, a sementinha da timbopeva germinou no galho da caxeta e quando adulta lançou suas raízes para o chão indo se fixar no brejo junto às taboas, os capins e outros bichinhos do alagado. Nas tardes ensolaradas de primavera, ouvindo o canto das cigarras, a caxeta recebia a visita das formiguinhas e de outros colegas que subiam pelo cipó da timbopeva para visitá-la. Num belo dia de calor, quando estavam conversando no galho, as vagens da caxeta começaram a estourar e as sementinhas pularam para fora. Naquele momento, passou o vento noroeste e as levou para dentro da mata. Ao longe, viam-se as sementinhas aladas agradecendo a mãe–caxeta pela vida no momento em que despediam da comunidade onde nasceram. Dali, as sementinhas foram dispersas para outros lugares da Mata Atlântica onde continuaram a perpetuar a espécie da Tabebuia Cassinoides, a caxeta.
NOTAS
[1] Caiçara, professor de filosofia e doutor em educação pela Unicamp. E-mail: pcfranco15@gmail.com
PARA SABER MAIS
FRANCO, Paulo Cesar. Tapari e suas narrativas caiçaras. 1. ed. Peruíbe: Inteligência, 2024. v. 1. 111p .
FRANCO, Paulo César. Experiências filosóficas e literárias entre pescadores caiçaras de Iguape, Litoral Sul de São Paulo. Tese de Doutorado em Educação, Universidade Estadual de Campinas, 2024. https://mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/conflito/sp-estacao-ecologica-da-jureia-deixou-300-familias-de-caicaras-em-situacao-de-ilegalidade/
Imagem de capa: Vanderlei Riberio (Deco)
O AUTOR
Paulo Cesar Franco é caiçara nascido na região da Juréia, em Peruíbe, litoral sul de São Paulo. Educador popular e professor de filosofia, é doutor em Educação pela Unicamp, com a tese "Experiências filosóficas e literárias entre pescadores caiçaras de Iguape, Litoral Sul de São Paulo". Leciona atualmente na E.E. PEI Elvira Silva, bairro do Icapara, em Iguape, São Paulo.
COMO CITAR ESSE TEXTO
FRANCO, Paulo César. Sementinha da caxeta. In: Revista Coletiva - Diversidade Socioambiental. nº 24. Publicado em 18 de set. 2024. Disponível em: <coletiva.org/diversidade-socioambiental-sementinha-da-caxeta-paulo-cesar-franco>. ISSN 2179-1287.
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