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Diversidade

Socioambiental

Editor temático: Pedro Silveira 

nº 21 | 22 de maio de 2023

Atlas do Pernambuco Indígena: refletindo sobre silêncios que gritam

Estêvão Martins Palitot

Lara Erendira de Andrade

Em uma das primeiras cenas do filme Bacurau, o professor Plínio leva seus alunos para uma aula de campo. Na ocasião, com um tablet na mão, andando pelas ruas do povoado, ele vai explicando a posição de Bacurau no mundo. Ao tentar responder à pergunta de um menino sobre a distância de lá até São Paulo, ele busca pela localidade em um aplicativo de geolocalização, mas, embaixo do sol forte, eles não conseguem visualizar o povoado no tablet e resolvem entrar na escola para utilizar um computador mais potente. Para surpresa do professor e das crianças, Bacurau não aparece no mapa.

 

O povoado, que sempre esteve representado nos mapas, agora, havia desaparecido! Esse é um dos primeiros indícios da misteriosa e tensa situação que vai envolver o lugar e seus moradores numa catastrófica espiral de violência. Neste contexto, o projeto de destruição que pretendia atingir Bacurau e as pessoas de lá é, necessariamente, acompanhado por seu extermínio simbólico no registro cartográfico. Para isso, era preciso eliminar não apenas a existência física das pessoas, como também qualquer memória de que elas tivessem, algum dia, vivido sob o sol. A partir disso, a resistência armada de Bacurau aos seus inimigos se dá com ferramentas que vão além de balas e facões: a escola, o museu comunitário e o mapa desenhado pelos próprios habitantes - um poderoso argumento contra-hegemônico que afirma a existência e a história da comunidade e sua gente.

A comparação da narrativa de Bacurau com as histórias dos povos indígenas em Pernambuco não é descabida. Para nós, parece a metáfora perfeita para as reflexões que buscamos trazer quando idealizamos o Atlas do Pernambuco Indígena. O site agrupa mais de duas dezenas de cartografias interativas sobre a temática e tem entre seus objetivos contribuir com os esforços de visibilização dos povos indígenas, de seus territórios e culturas e de suas demandas por justiça e reparação histórica. 

Aproximando o enredo de Bacurau e as histórias indígenas, muitos paralelos e comparações podem ser traçados. Um deles é justamente o apagamento cartográfico como processo necessário à conquista colonial de territórios e populações.

 

Você que está lendo este texto consegue lembrar se já viu algum mapa de Pernambuco que retrate os povos indígenas no estado? Tanto em mapas atuais quanto históricos? Qual mapa nos diz que as cachoeiras do rio São Francisco e as serras do Agreste e Sertão são Reinados Encantados e não apenas recursos naturais a serem explorados?

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MAPAS CONTAM HISTÓRIAS

Assim como as gravuras rupestres, as pinturas corporais e os cânticos do toré, os mapas também contam histórias. É preciso estarmos atentos para “ouvirmos” as histórias que eles guardam, como se fossem sussurros, tendo em vista que cada elemento num mapa é um signo que diz algo. Nada está ali por acaso: cores, linhas, manchas, ícones, letras e números compõem uma linguagem cifrada que tem o poder de mostrar e de esconder realidades

Deste modo, os mapas são, em si mesmos, discursos de poder que pretendem evidenciar alguns pontos de vista enquanto escondem outros. Objetos de governo, de conhecimento e de estratégia militar, são ao mesmo tempo obras de arte e de técnica. Eles enfeitam as salas dos palácios reais e das grandes empresas; guiam viajantes e informam negociantes e administradores; representam Estados e os territórios onde exercem seus poderes; também são logomarcas de comunidades imaginadas poderosas e, com frequência, representam projetos coloniais de longo alcance, indicando as terras ainda por ocupar e controlar.

Neste sentido, sempre nos chamou atenção a ausência, ou a exiguidade, dos registros cartográficos sobre povos indígenas no Brasil, especialmente no Nordeste. Afora alguns poucos, especializados e raros mapas históricos e antropológicos, quase nada se acha de informação acessível ao grande público. Com isso, espelhando o discurso que minimiza e nega a presença indígena, os vazios cartográficos gritam pedindo que sejam preenchidos. Desta maneira, é preciso colocar os povos indígenas nos mapas, fazendo o movimento contrário daquele denunciado no filme Bacurau, onde se queria fazer uma comunidade “sumir do mapa”, primeiro na representação e depois na realidade do grupo de extermínio.

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Figura 2: Visualização do mapa digital 2023 - Terras Indígenas em Pernambuco. Destaque para as terras indígenas, as unidades de conservação ambiental e os grandes projetos de energia e infraestrutura.

Do mesmo modo que a gente de Bacurau, os povos indígenas lutam para não serem “varridos do mapa”: se organizam, fazem retomadas, viajam para Recife e Brasília, fazem rituais e manifestações, em suma, lutam pelo direito de existir! Por isso, nossa inspiração vem deles, e dos seus esforços, para desenhar um novo mapa do Brasil onde não haja mais um vazio que grita. 

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Figura 3: Tropa de indígenas em marcha a partir de aldeia missionária. Detalhe do mapa Praefecturae de Paraiba et Rio Grande, de Georg Marcgraf e Joan Blaeu (1647). Imagem do acervo do Laboratório de Cartografia Histórica da USP. Reproduzido sob autorização. 

O ATLAS DO PERNAMBUCO INDÍGENA

Ao idealizar o projeto que deu origem ao site, levamos em consideração que, nas últimas décadas, as informações sobre os povos indígenas se tornaram mais numerosas, porém são conhecidas apenas de um público especializado, acadêmico ou solidário à causa indígena, como é o caso das informações sobre a presença indígena nos censos demográficos. Nosso intuito com o projeto é que mais gente tenha acesso a essas informações e isso inclui os próprios povos indígenas e suas comunidades escolares, além de toda a sociedade pernambucana e brasileira.

 

No Atlas, trazemos um conjunto de mapas que busca suprir essa lacuna. Como o museu comunitário do filme, nossa ideia é que os mapas ali contidos possam fazer parte do acervo dos povos indígenas, não como peças estáticas de museus tradicionais, mas como aquelas que serviram de instrumento de luta contra o apagamento histórico de Bacurau. 

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O site está apoiado em anos de pesquisa bibliográfica e de campo acumulados pela nossa equipe, em diálogos sistemáticos com povos indígenas,  suas lideranças e também com outros pesquisadores das áreas da história e antropologia, que têm se dedicado a estudar os povos indígenas em Pernambuco em todos os tempos. Além disso, realizamos uma ampla revisão da literatura disponível – documentação histórica e etnológica primária e secundária, principalmente de fontes impressas e eletrônicas. Dentre os materiais, destacam-se a considerável produção histórica e antropológica na forma de dissertações, teses, livros e relatórios já publicados ou existentes em bancos de dados. A partir daí, buscamos verter para uma linguagem cartográfica as informações contidas nessas fontes, elaborando mapas interativos que dessem conta de inscrever graficamente os fluxos culturais e as dinâmicas históricas dos povos indígenas.

GRIFANDO A PRESENÇA INDÍGENA NO MAPA DE PERNAMBUCO, SAINDO DOS MUROS ESCOLARES

Assim como faz o professor em Bacurau, nosso convite com o site é para que os conhecimentos ali contidos sejam acessados fora dos muros escolares (no nosso caso, universitário). Desta forma, pretendemos reunir e divulgar para um público amplo e não especializado as informações disponíveis sobre os povos indígenas em Pernambuco, suas histórias, terras, culturas e lutas. Oras, foi apenas ao colocar os corpos e o mapa em movimento, em uma aula de campo, que professor e estudantes puderam constatar que estavam querendo tirar a comunidade do mapa.

Para melhor distribuição, o conteúdo do Atlas está organizado em postagens compostas de textos, imagens e mapas georreferenciados, divididas em duas seções, além de serem sinalizadas pelo período histórico ao qual fazem referência.

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Na seção Cartografias estão textos mais curtos: são 14 publicações que acompanham a leitura dos mapas, também tem reflexões panorâmicas e com referências a outros trabalhos, para aprofundar os conhecimentos ali apresentados. Os temas das cartografias variam e são como pequenas coleções que podemos agrupar da seguinte maneira: 

  • Brasil Holandês: 1628 | O primeiro mapa indígena do Brasil?; 1635 | Aldeias indígenas no período holandês; 1638 e 1640 | Os brasilianos, por Adriaen Van der Dussen; 

 

  • Relatórios da igreja: 1680 | Visita do Bispo de Pernambuco ao rio São Francisco; 1693 | Relatório da Diocese de Pernambuco; 1701 | Descrição da Diocese de Pernambuco;

 

  • Estimativas populacionais dos indígenas: 1782 | Ideia da população da capitania de Pernambuco; 1872 e 1890 | Os indígenas nos censos do século XIX; 1991/2000/2010 | Os indígenas nos censos contemporâneos; 

 

  • Terras destinadas aos povos indígenas: 1729/1739/1746/1760 | Os aldeamentos na primeira metade do século XVIII; 1936 | Curt Nimuendajú, povos indígenas e a cartografia da resistência (por Renato Athias); 2023 | Terras indígenas em Pernambuco; 2023 | Terras indígenas no leste e nordeste;

 

  • Outros temas: Século XVIII | Caminhos para o rio São Francisco; 1801-1804 | Povos indígenas nos sertões do Pajeú e Moxotó.

Já a seção Artigos conta com seis publicações que são frutos de pesquisas mais elaboradas, realizadas pela equipe do projeto e por pesquisadores/as convidados/as. Quatro deles são cartografias históricas de séculos distintos: 

As outras duas são publicações de cartografias contemporâneas, feitas de forma colaborativa junto aos povos indígenas em Pernambuco, pelo projeto Nova Cartografia Social da Amazônia:

 

Desde o lançamento do site, em janeiro de 2023, a plataforma já foi acessada mais de 6500 vezes, por pessoas de mais de 20 países. Só no Brasil, há acessos de 500 diferentes municípios brasileiros. Para ampliar o alcance, circulamos com o debate sobre seu conteúdo e as possibilidades de desdobramentos em quatro eventos – um lançamento no Museu do Estado de Pernambuco, para um público diverso; e dois debates em universidades, respectivamente na Universidade Federal da Paraíba e de Pernambuco.

 

Na primeira, estivemos no Centro De Ciências Aplicadas e Educação (CCAE)/Campus IV, onde foi apresentado à comunidade acadêmica do curso de antropologia. Na plateia, havia público discente e docente da graduação e pós-graduação em antropologia, com destaque para a significativa presença de indígenas Potiguara, estudantes da UFPB. Na UFPE, realizamos o lançamento no contexto das aulas da Licenciatura Intercultural, um curso destinado especificamente para a formação de professores/as indígenas, no Centro Acadêmico do Agreste (CAA). Por fim, houve também um debate com colegas da Universidade de São Paulo (USP). 

Com isso, desejamos que as histórias contadas nesses mapas venham a se somar àquelas que os povos indígenas estão vivendo e contando nos dias de hoje,  na perspectiva de que o trabalho não cessa e o Atlas está saudavelmente incompleto, porque as vidas indígenas seguem sempre produzindo novas realidades e apontando para o futuro.

Como sempre ouvimos do movimento indígena: “E diga ao povo que avance!” 

PARA SABER MAIS

OS AUTORES

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Estêvão Martins Palitot é doutor em Sociologia (UFPB). Professor do Departamento de Ciências Sociais (CCAE/Campus IV) e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPB.

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Lara Erendira de Andrade é doutora em Antropologia (UFPE), indigenistas e educadora popular. Trabalha há mais de dez anos em colaboração com organizações indígenas tecendo conexões entre processos de formação, mapas e história. Atualmente é pós-doutoranda no Institut Nationale de la Recherche Scientifique (INRS/Quebec, Canadá).

COMO CITAR ESSE TEXTO

PALITOT, Estevão Martins; ANDRADE, Lara Erendina de. Atlas do Pernambuco Indígena: refletindo sobre silêncios que gritam. (Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. nº 21. Publicado em 22 maio. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n21-atlas-do-pernambuco-indigena-estevao-palitot-lara-de-andrade>. ISSN 2179-1287.

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