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Protesta mapuche en Vaca Muerta. Foto Em

Foto: Emiliano Ortiz/8300 Web

Diversidade

Socioambiental

nº 2    13 de agosto de 2018

Editor temático: Pedro Silveira 

Lidando com as forças do mundo: petroleiras e o povo Mapuche na Argentina

  Karine L. Narahara

Quando se está em um Wiñoy Xipantv, ou em qualquer cerimônia mapuche, sempre que alguém te oferece muzai¹ para beber, ou algum outro alimento, você deve antes de consumi-lo jogar um pouco no chão. É uma forma da pessoa “oferecer à mapu”: de oferecer à terra aquilo que está sendo consumido.

O Wiñoy Xipantv é uma das principais cerimônias do povo Mapuche (gente da terra) e está associada ao solstício de inverno. Winõy provém do verbo wiñon – que em mapuzugun, o idioma mapuche, significa voltar. Xipan pode ser traduzido por saída e antv é como os Mapuche nomeiam o Sol. Esta cerimônia marca uma espécie de retorno do Sol ao hemisfério sul: a partir desse tempo do ano os dias vão se tornando cada vez mais longos. 

Marcando o início de um novo ciclo, o Wiñoy Xipantv costuma ser considerado o “ano novo” mapuche. Na província de Neuquén, norte da Patagônia argentina, a cerimônia é realizada próximo a um rio. Pede-se aos que irão participar que levem não apenas alimentos a serem consumidos entre as pessoas, mas também sementes que serão lançadas no rio num determinado momento da cerimônia.

Compartilhar alimentos com outra pessoa é algo fundamental na vida mapuche. Sempre que um visitante chega à casa lhe será oferecido ao menos mate (como chamam o chimarrão),  geralmente acompanhado de pão e doces. Da mesma maneira que se compartilha alimento entre os humanos, também se compartilha com o território. E isto acontece não apenas durante as cerimônias, mas também em situações cotidianas mais corriqueiras: é comum, especialmente quando se está ao ar livre em uma área rural, lançar sobre o chão um pouco do alimento que se vai consumir.

Essa prática é uma das formas pelas quais os Mapuche se comunicam e se relacionam com os newen: com as forças de um determinado lugar. Os newen circulam pelo mundo, originando e mantendo aquilo que consideramos vivo, como os humanos, as plantas e os animais, e também coisas tidas como não vivas, como pedras e montanhas. Há toda uma ética baseada no respeito e no cuidado com relação a essas forças. São necessários então certos comportamentos – como “pedir licença” ao mergulhar num rio ou ao retirar um pedaço de planta para preparar algum remédio; assim como não se deve fazer determinadas coisas: produzir eco em certos locais e escalar vulcões, por exemplo.

Os Mapuche conformam uma das maiores populações indígenas da América Latina, vivendo na Argentina e no Chile, especialmente na região da Patagônia. Segundo os últimos censos realizados nestes dois países, mais de um milhão e seiscentas mil pessoas se autorreconheceram como Mapuche, número que supera o total da população indígena identificada no último censo brasileiro.

Tanto no Chile quanto na Argentina é comum as mídias veicularem notícias sobre diversos conflitos envolvendo comunidades mapuche. Esses conflitos estão relacionados à presença de projetos de desenvolvimento, como hidrelétricas e atividades mineradoras, e também à presença de empresas florestais, de unidades de conservação, de empreendimentos turísticos e à pressão do agronegócio e de grandes latifúndios. Esse cenário tem levado a uma profunda militarização do território mapuche. Recentemente o jovem mapuche Rafael Nahuel foi assassinado durante uma ação policial em uma comunidade, próximo à cidade argentina de Bariloche.

 

Na província de Neuquén a presença de petroleiras em comunidades mapuche também gera uma série de tensões. No início dos anos 1970, a exploração de petróleo e gás do reservatório de Loma de La Lata levou a indústria petroleira para o interior das comunidades de Kaxipayiñ e de Paynemil, ambas localizadas nesta província. Há décadas Neuquén cumpre um papel central na produção de petróleo e de gás na Argentina e na matriz energética do país como um todo.

   

Em meados dos anos 1990, os Mapuche começam a entender que seus problemas de saúde estavam relacionados à contaminação gerada pelas empresas de petróleo. A partir daí iniciam uma série de ações e mobilizações contra às atividades petroleiras. Nos anos 2000, um amplo estudo demonstrou a presença de contaminantes em corpos d´água, no solo, no ar e nos corpos mapuche. Os dados clínicos indicaram uma intoxicação crônica por hidrocarbonetos e metais pesados em função da ocorrência de sintomas como vertigem, dor e adormecimentos em extremidades do corpo, tosse, problemas dermatológicos, cefaleia, insônia e abortos espontâneos.

   

Em 2010, foi divulgada a descoberta do reservatório de Vaca Muerta, que prometia retirar a Argentina de sua “crise energética”. O evento reposicionou o país no mapa da geopolítica do petróleo: Vaca Muerta é considerado um dos maiores reservatórios de petróleo e gás não convencionais fora dos Estados Unidos. Os chamados recursos não convencionais, dentre eles o “shale gas” (no Brasil conhecido como “gás de xisto”), vêm gerando uma grande polêmica mundial quanto à sua exploração. O método utilizado na primeira fase de exploração desses reservatórios, o fraturamento hidráulico ou “fracking”, tem sido banido em diversas partes do mundo por conta dos graves casos de contaminação associados ao seu uso. No epicentro de Vaca Muerta estão as comunidades mapuche de Campo Maripe e Fvta Xayen, localizadas próximo à cidade de Añelo, também na província de Neuquén. Se o cenário na região já é delicado, a situação tende a piorar com a chegada do fracking.

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Ação de recuperação territorial na comunidade Campo Maripe, província de Neuquén, Argentina. 

Em primeiro plano uma Wenu Foye, a bandeira mapuche. Foto: Karine Narahara.

 A presença petroleira implica mais do que a contaminação por compostos químicos tóxicos aos corpos humanos: ela também afeta as forças presentes no lugar. O território para os Mapuche não é um mero conjunto de “recursos naturais”, que podem ser submetidos ao controle total por parte das pessoas. Coisas como montanhas, pedras, a terra no solo ou as águas que correm em um rio não são objetos passivos. No mundo mapuche um vulcão nevado pode irritar-se por conta do excesso de turistas escalando-o, por exemplo. E, com isso, levar vidas humanas.

Se seguimos Tim Ingold, o território mapuche é um emaranhado em que se entrecruzam humanos, os demais organismos e as coisas que povoam o mundo. E essas relações se dão, propõe Ingold, ao longo de linhas de vida – ou forças, diriam os Mapuche. O próprio mapuzugun não corresponde apenas a uma fala humana. Mapu é terra, enquanto zugun quer dizer fala ou falar. O idioma mapuche na verdade é a fala da terra: ele é a fala não só das pessoas, mas também das demais vidas. Ele permite a comunicação com os distintos newen do território.

O que as petroleiras fazem – injetando elevadas quantidades de água misturada com compostos tóxicos e areia, fraturando rochas para perfurar poços, retirando gás e petróleo,  contaminando o lençol freático – atinge o ordenamento mais amplo das forças do mundo. Essas coisas (solo, água, areia...) mobilizadas não são mera “matéria-prima”, inertes e disponíveis para qualquer uso em qualquer circunstância. Elas são newen que devem ser respeitados e cuidados de certa maneira.

As lutas mapuche vão além da defesa de uma porção de terra. O que os Mapuche defendem é, em última instância, um certo ordenamento das forças do mundo, que fica comprometido quando se minera o subsolo de maneira ilimitada. É por isso que as arenas políticas em território mapuche, assim como nos Andes estudados por Marisol de la Cadena, costumam envolver a presença não só de humanos, mas também de não humanos. As forças associadas a vulcões, rios e lagos, formações montanhosas e outras coisas do mundo costumam ser mobilizadas pelos Mapuche nas suas lutas em defesa do território.    

NOTAS

[1] Uma bebida fermentada que costuma ser feita com grãos (como quinoa e trigo) ou com pinhão.

A AUTORA

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Karine L. Narahara é doutoranda em Sociologia e Antropologia pelo IFCS/UFRJ e analista ambiental do IBAMA.

COMO CITAR ESSE TEXTO

NARAHARA, Karine L.  Lidando com as forças do mundo: as petroleiras e o povo Mapuche na Argentina. (Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. Publicado em 13 ago. 2018. Disponível em https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n2. ISSN 2179-1287.

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