Muvucas nas bordas do mundo: A Associação Rede de Sementes do Xingu e a luta por outros futuros possíveis
Dannyel Sá
Amanda Horta
A Associação Rede de Sementes do Xingu (ARSX) é uma iniciativa de produção comunitária e familiar de sementes florestais para reflorestamento, que conecta 24 comunidades na região de transição entre o Cerrado e a Amazônia nas bacias do Xingu, Araguaia e Teles Pires. Há mais de dez anos, a ARSX vem fazendo suas muitas histórias: os grupos associados se renovam, assim como a lista de espécies a serem coletadas; novos coletores se associam, novas técnicas de beneficiamento são desenvolvidas e compartilhadas; as pessoas e seus coletivos se transformam; novas florestas surgem onde o que havia era terra arrasada.
Conectando essas experiências, a ARSX não tem um só começo, mas uma miríade deles, surgindo de múltiplas direções e transbordando suas possibilidades na medida em que se encontram, convergem e fazem brotar. Esse texto propõe ecoar algumas das muitas narrativas sobre a ARSX, como histórias que ressoam na concha de um caramujo, Caramujo, inclusive, é o codinome da área da ARSX dedicada a promover ações transversais contínuas para trazer a diversidade das populações envolvidas à tona e horizontalizar os processos de tomada de decisão em todos os momentos e espaços dentro da associação, onde as vozes entram, reverberam umas com as outras e depois saem para seguir seus próprios caminhos. Onde “o futuro está atrás, por vir, projetado em função da experiência milenar”.
Diversidade é a “palavra-chave” no encontro e na mistura desses dois biomas no Brasil Central. A interação complexa entre fatores históricos, ecológicos e físicos do ambiente deu origem a uma extraordinária riqueza de espécies, paisagens, processos biológicos e sociedades humanas. Nossa história começa com as plantas e seus ancestrais, da época em que a Amazônia e o Cerrado começaram a formar as suas atuais aparências (aproximadamente 10 milhões de anos atrás).
As gerações contemporâneas de jatobá-da-mata (Hymenaea courbaril L.), copaíba (Copaifera langsdorffii Desf.), mamoninha (Mabea fistulifera Mart.), murici (Byrsonima sp.), angelim-da-mata (Andira vermifuga Mart. ex Benth.), urucum (Bixa orellana L.), entre outras são descendentes de plantas que já viviam em outras regiões desses dois biomas (e até da Mata Atlântica). Neste tempo prístino, contam os povos indígenas, as árvores eram gente. Mas mesmo na história natural, podemos entrever a intencionalidade das plantas: as árvores que já gostavam mais de água ficaram morando nas beiras dos rios para se prevenirem da época do ano que não chove ou porque suas sementes só conseguiram chegar até ali. Outras seguiram se adaptando aos demais ambientes — alguns encharcados, outros secos.
O manejo realizado pelos animais, fungos, bactérias e a interação entre as diferentes espécies vegetais têm um papel fundamental na história da constituição das vegetações que hoje conhecemos. O manejo e seleção das sementes dessas árvores pelas populações indígenas, ao longo de milhares de anos, também espalhou espécies de plantas para muitos outros lugares e gerou ainda mais diversidade. As tecnologias indígenas, como o manejo do fogo e todos os processos envolvidos na origem das terras pretas de índio, junto às particulares relações com as sementes, são bons exemplos locais de como as relações entre os humanos e os ecossistemas podem gerar diversidade e moldar paisagens.
Nas zonas de transição entre o Cerrado e a Amazônia, a paisagem se desdobra em florestas, savanas e campos, cada um deles com uma grande diversidade de histórias sobre suas origens, que se conectam com as histórias das pessoas que ali habitam, ou habitaram. A introdução da pecuária e da agricultura industriais em meados do século XX alterou drasticamente o modo de ocupação e o modelo hegemônico de relação entre os humanos e o ambiente nesses territórios.
Dizemos hegemônico, pois esse não era, como vimos, o único tipo de relação estabelecida na região. Tínhamos as terras dos índios e eram muitas as etnias que habitavam as partes altas e médias das bacias do Xingu, Araguaia e Teles Pires no início do século XX. Os povos alto-xinguanos, os Khisêt-jê os Bakairi, os Yudja, são alguns dos povos que fazem parte dessas histórias de interação direta e indireta, entre trocas e embates violentos. Os efeitos foram nefastos para os indígenas: as epidemias do contato dizimaram suas populações; alguns povos foram ainda vítimas da remoção forçada de seus território tradicionais, como os Kawaiwete, os Panará, os Ikpeng e os Xavante.
Além dos povos indígenas, alguns extrativistas e posseiros também faziam sua vida na terra. As políticas de ocupação da Amazônia, que começam a ganhar força ainda na década de 1940, deslocavam agricultores de outras regiões do país a fim de preencher o suposto “vazio demográfico” do Brasil Central — discurso que apagava a presença dos sujeitos humanos e não-humanos que já travavam ali sua existência.
A partir da década de 1970, a abertura de eixos rodoviários e o loteamento de terras para o capital privado nacional e internacional, que marcaram o regime militar, implicavam também o deslocamento de grandes contingentes de trabalhadores, muitos vindos do nordeste, em busca de trabalho e melhores condições de vida. Alguns desses, aos poucos, se firmam na terra: plantar e fazer brotar o sustento da família e da comunidade é uma atitude de afeto. Manejam a paisagem, abrem roças, criam vínculos com o território.
É esse cenário de diversidade que a agricultura industrial vem invisibilizar, com seu rolo compressor, pequenos agricultores, indígenas, extrativistas, gente engajada em relações complexas com o território, e que resistia aos avanços da colonização, passam a ser confinados em pequenos espaços, estrangulados pelas agricultura intensiva e ofensiva, baseada na monocultura, dependente de insumos tóxicos, que impõe a todos novas dinâmicas ecológicas. Derruba-se a vegetação nativa e, a que resta, confinada também, tem seus ciclos de sobrevivência, de chuvas, de fogo, de rios, alterados. Assim, rompe-se grande parte das relações milenares que as sementes nativas engendravam.
O desmatamento também altera bruscamente o fluxo do ciclo reprodutivo das espécies vegetais autóctones: a eliminação das matrizes fontes das sementes, a fragmentação e interrupção da sua dispersão e o comprometimento da viabilidade do solo para o estabelecimento de novos indivíduos. Tudo isso gera inúmeros impactos negativos aos modos de vida das plantas e demais populações minoritárias da região, cuja reprodução física e simbólica está diretamente associada às relações com os sujeitos não-humanos (plantas, sementes, animais, espíritos, fenômenos meteorológicos, cursos d’água, etc).
O grau de atrocidade de tais relações destrutivas com a vegetação foi percebido e denunciado justamente por essas populações habituadas às interações profundas e construtivas com o ambiente e, por isso mesmo, mais sensíveis às consequências e impactos socioambientais deste modelo de desenvolvimento excludente.
Em meados dos anos 2000, os povos indígenas do Xingu, conclamaram seus parceiros institucionais a mobilizar mais agentes envolvidos nesta trama para coletar sementes e plantar florestas. Em 2004, surge a campanha Y Ikatu Xingu e depois a Rede de Sementes do Xingu, em 2007, com o desafio de construir uma rede que integrasse produtores e consumidores de sementes para reflorestar as nascentes do rio Xingu — todas situadas fora dos limites dos territórios indígenas. A percepção comum sobre a importância da água, da terra e da floresta, faz os distintos grupos coletores agirem em conjunto, manejando, dia após dia, suas formas de se organizar. Anos depois, em 2014, a Rede se transformaria em uma associação: a Associação Rede de Sementes do Xingu.
Coletar sementes florestais, beneficiá-las e vendê-las não fazia parte da vida dos coletores. Mas a relação com as sementes tem raízes profundas na vida das pessoas que se articulam através da Associação Rede de Sementes do Xingu. Cada grupo possui uma miríade de usos tradicionais e de formas de manejo das árvores, dos frutos — e consequentemente das sementes das espécies que são coletadas hoje. Ademais, pesquisas antropológicas conduzidas no âmbito dos projetos da ARSX, mostram que, pelos menos entre os grupos indígenas, as regras de manejo condicionam a saúde das pessoas, fazendo da coleta uma atividade minuciosa e altamente valorizada.
As narrativas contadas pelos diversos coletores sobre o modo como eles se envolveram com a coleta e beneficiamento de sementes não dizem de uma escolha racional. Contam sobre um “namoro”, como afirma Antônio, agricultor familiar do assentamento Caeté (Diamantino-MT), membro da Diretoria da ARSX. A palavra “namoro” é interessante, pois mostra um duplo movimento: das pessoas em direção às sementes e das sementes em direção a elas.
As pessoas experimentam a coleta pela primeira vez de maneira despretensiosa: é comum contarem que a atividade, a princípio, lhes parecia vã. A renda gerada é pouca, e os efeitos, supostamente, se dariam a quilômetros de distância, na propriedade que seria reflorestada. Pouco a pouco, porém, a semente passa a atrair os coletores, a gerar alegria, satisfação, a produzir neles o desejo de coletar. O namoro se consuma. No mesmo sentido, quando as mulheres Yarang, coletoras de sementes da etnia Ikpeng, veem um pequeno grupo, de outra casa, voltar de uma pequena expedição com os baldes cheios de sementes, elas se apressam em sair para coletar também. Dizem que ficam doidas. Doidas por semente.
É assim que a ARSX se consolida na vida dos coletores, mobilizando afetos, desejos e saúde em pessoas que pertencem a grupos historicamente marcados pelo parco acesso às políticas públicas, à renda e à representatividade na política local e nacional. Essas pessoas habitam as bordas do mundo — terras indígenas, assentamentos e áreas urbanizadas de baixa densidade demográfica — promovendo a vida nos seus territórios e além, produzindo, plantando e vendendo sementes nativas e de adubação verde.
A Associação está organizada tal como as plantas: ao mesmo tempo descentralizada e ancorada no território com suas raízes fincadas no chão dos grupos de coleta e com o poder de comando e as funções de tomadas de decisão deslocadas para as várias células de seu corpo em redes distribuídas. Os coletores e as sementes são os protagonistas da iniciativa, representados institucionalmente pela Associação Rede de Sementes do Xingu. O seu fortalecimento contribui para a continuidade de práticas comunitárias sustentáveis dentro dos territórios. Esse processo colabora para a construção de mecanismos autônomos de tomada de decisões coletivas que definem os futuros da organização e de si, além de propiciar o fornecimento de sementes para ações de recomposição florestal.
Isso já é muito. Mas as mais de 500 pessoas que integram a Associação Rede de Sementes do Xingu, hoje, fazem muito mais. Elas fortalecem seus laços comunitários e aprofundam suas relações com o território, envolvendo todos os membros da comunidade nesse processo. Nas comunidades coletoras, mesmo as pessoas que não coletam sementes, passam a observar a paisagem com mais afinco, buscando as matrizes, avisando os vizinhos coletores sobre a floração das árvores e a maturação dos frutos. A coleta e o beneficiamento envolvem homens e mulheres de todas as idades, costurando gêneros e gerações e adensando o senso de cuidado mútuo. Ativam-se redes de transmissão de conhecimento, produzem-se histórias, memórias e relações. Cada comunidade, com seu modelo próprio de manejo territorial, organiza seu coletivo de modo autônomo, inventa, resgata e transforma tradições de manejo, valores comunitários e tradições orais — tudo isso junto à floresta em pé.
O reflorestamento promovido pelos processos da ARSX é feito pelo plantio simultâneo de sementes de várias espécies diretamente no solo, não pelo convencional plantio de mudas. A mistura é apelidada de Muvuca, remetendo a essa combinação de gentes e de sementes, condição de existência da Associação e de tudo mais que ela produz. A Muvuca, porém, nada tem de desordem: ela é pautada pelos atributos essenciais da vida — a diversidade, a horizontalidade e a possibilidade de que a interação entre os seus componentes (as pessoas, as sementes) produza características, elementos e propriedades novas, distintos das partes que a compunham na origem. O movimento é constante. Não há aqui, promessa de estabilidade, mas a transformação contínua própria de uma organização em rede, e o engajamento ativo de pessoas, sementes e muitos outros sujeitos, nessas transformações.
A Muvuca de gentes é o conjunto de populações minoritárias e suas respectivas organizações de base comunitária, movimentos de mulheres, parceiros institucionais, universidades e instituições de pesquisa que atuam nos territórios em sinergia com demais ações transversais nas comunidades que se articulam em rede, além dos consumidores de sementes. As atividades de trocas de experiências entre os diferentes grupos de coleta contribui para a construção coletiva de um futuro que efetivamente leva em consideração a diversidade de realidades, que só é possível devido ao protagonismo dos grupos de coleta. Isso mostra como a diferença sempre é uma oportunidade para a ARSX alçar novos voos. É justamente essa abertura a outros mundos e a modos distintos de experimentá-los que faz a Associação Rede de Sementes do Xingu ser especial como é.
A Muvuca de sementes é a mistura das sementes de espécies vegetais que podem ser classificadas em dois grandes grupos de estratégias de vida: umas de vida curta que se reproduzem rapidamente e outras de vida longa que demoram mais tempo para se reproduzir. Cada espécie ocupa uma posição nesse gradiente sutil de variação entre esses dois pólos. Há aquelas que gostam de ambientes com muita luz, vivem poucos anos, crescem e atingem a maturidade rapidamente produzindo muitas sementes. Isso as torna especialistas em ocupar e colonizar ambientes, principalmente onde não há árvores grandes tampando a luz do Sol — justamente o caso das áreas desmatadas onde a saúde do solo também está muito debilitada. Por isso também são chamadas de “pioneiras”.
Algumas delas são herbáceas e arbustivas, como o feijão-de-porco (Canavalia ensiformis (L.) DC), a crotalária (Crotalaria sp.) e o feijão-guandu (Cajanus cajan (L.) Millsp.). Elas crescem pouco em altura e morrem rápido. Suas sementes brotam logo nas primeiras chuvas e rapidamente cobrem o solo exposto. Elas ajudam na descompactação e sombreamento do solo, protegendo-o dos intensos raios de Sol durante a estação seca. Isso colabora para o crescimento das raízes das árvores, minimiza a perda de água por evaporação e abafa o crescimento de gramíneas que atrapalham o crescimento das árvores. O feijão-de-porco cresce algumas dezenas de centímetros de altura, a crotalária um pouco mais. Ambas vivem no máximo um ano. Apenas o feijão-guandu cresce acima de um metro de altura e pode viver até seis anos. Esse tempo é suficiente para criar condições para a germinação, o crescimento e o estabelecimento das espécies de árvores que também gostam de muita luz e que também compõe a Muvuca.
O feijão-de-porco, a crotalária e o feijão-guandu são chamadas de “adubos verdes” porque ajudam a fixar nitrogênio no solo através de suas raízes enquanto estão vivas e até depois de mortas, com a decomposição de suas folhas e galhos. O nitrogênio é importante para o crescimento de todas as plantas. Ainda sobre as espécie de vida curta, as plantinhas de árvores que também gostam de muita luz e crescem rápido como o caju (Anacardium occidentale L), mamoninha (Mabea fistulifera Mart.), o carvoeiro, (Tachigali vulgaris L.F. Gomes da Silva & H.C.Lima) e o baru, (Dipterix alata Vogel) se desenvolvem sob as folhas das anteriores neste ínterim. As copas dessas árvores pioneiras iniciam a formação do teto da floresta em regeneração, formam uma barreira ao vento, atraem insetos, mamíferos e aves, ajudam na dinâmica microbiológica do solo, além de incrementar o sombreamento do andar debaixo da mata.
O outro grande grupo de plantas semeadas na Muvuca é formado pelas espécies que vivem muitos anos, preferem a sombra, crescem mais lentamente e demoram mais tempo para atingir a maturidade, como o jatobá-da-mata (Hymenaea courbaril L.), angelim-saia (Parkia pendula (Willd.), copaíba (Copaifera langsdorffii Desf.) e mirindibas (Buchenavia sp.). É comum que as sementes dessas árvores fiquem dormindo por um longo período, esperando para germinar no momento com as condições ideais de luz, temperatura e umidade para o seus ciclos de vida. A preparação da Muvuca envolve técnicas para despertar a germinação dessas sementes conforme a fisiologia de cada uma delas. Algumas são embebidas em água durante 24 horas, outras são escarificadas ou submetidas a choque térmico.
A diversidade de espécies na Muvuca é diretamente relacionada à quantidade de fases da sequência dos ciclos de vida das plantas que forma a estrutura da vegetação. Quanto mais espécies na Muvuca, mais completa é a transição entre as fases de crescimento da floresta ou do cerrado. A germinação, o crescimento e a reprodução das espécies da fase seguinte são sempre preparados ativamente pelas plantas da fase anterior, seja por relações de colaboração como a promoção de condições de luminosidade favoráveis para a germinação e crescimento ou da manutenção da umidade do solo, seja por relações de competição como a ocupação do espaço físico para o estabelecimento de novos indivíduos. Ou seja, o plantio simultâneo das sementes na Muvuca mimetiza o processo de regeneração natural reativando a sucessão ecológica e os demais processos ecológicos e ecossistêmicos que estavam estagnados na área degradada.
A proporção das sementes de cada espécie na Muvuca é definida ponderando as taxas específicas de germinação e a densidade de indivíduos observada ao longo dinâmica sucessional do tipo de vegetação em questão (cerrado, floresta entre outros). Consideremos uma clareira formada pela queda de uma árvore em uma floresta tropical como modelo. Ela é densamente ocupada por árvores de espécies pioneiras de tronco fino nos primeiros anos.
Ao longo do tempo, elas vão sendo substituídas por menos indivíduos das espécies de vida longa, maiores em altura e espessura, que germinaram e cresceram à sombra daquelas que cresceram primeiro. Geralmente, as espécies pioneiras produzem muitas sementes pequenas que germinam proporcionalmente mais que as sementes das espécies que vivem mais tempo. Por exemplo, as sementes de carvoeiro germinam proporcionalmente mais que as sementes de angelim-saia.
No caso da restauração ecológica de uma área degradada, é muito importante cobrir o solo rapidamente. É por isso que a Muvuca capricha na quantidade de sementes de adubação verde e das árvores pioneiras, como feijão-de-porco e carvoeiro, respectivamente, apesar delas germinarem bastante. Por outro lado, a quantidade de sementes de angelim-saia tem que ser suficiente para garantir a densidade aproximada de indivíduos desta espécie conforme a taxa de germinação de suas sementes. E por aí vai… Dá pra usar todo tipo de sementes pra fazer esse consórcio de plantas que cumprem diversas funções nessa trajetória, inclusive o milho e outras culturas agrícolas, como hortaliças e mandioca junto da adubação verde nos primeiros anos da sucessão na restauração da mata.
A área em processo de restauração via semeadura direta de Muvuca adquire características estruturais de uma floresta jovem (como o número de indivíduos por área, formação de dossel e biomassa estratificada) na mesma velocidade da regeneração natural — aumentando a diversidade local de espécies e retomando os processos de sucessão secundária em aproximadamente cinco anos de crescimento. Esses excelentes resultados ecológicos aliados ao dinamismo e à versatilidade da semeadura direta explicam os muitos benefícios da Muvuca. É também mais prático transportar sementes do que mudas, especialmente considerando as grandes distâncias e precariedade das estradas no Mato Grosso. Além do fato de que a Muvuca é adaptável a diferentes escalas de plantio, uma vez que a semeadura pode ser manual ou mecanizada.
A semente é o insumo básico das ações de restauração e sua comercialização permite arcar com os custos operacionais da produção que são embutidos no preço da semente de cada espécie. Essa operação é importante para viabilizar o custeio desse processo pelo parceiro comercial que adquire as sementes para o plantio. Todos os demais efeitos positivos promovidos pela iniciativa, como organização social que é, nas atuais e futuras gerações compõem o papel da Associação Rede de Sementes do Xingu não estão submetidos à lógica do mercado.
Viva e diversa, a Associação Rede de Sementes do Xingu cria e desenvolve um modelo criativo e inclusivo de geração e distribuição de renda através de um arranjo de relações e processos entre agentes humanos (coletores, equipe de facilitadores, professores, lideranças, caciques entre outros) e não-humanos (espécies vegetais, matrizes, frutos e sementes, animais, espíritos donos, instituições parceiras entre outros). Valoriza as contribuições socioambientais dos Sistemas Agrícolas Tradicionais, colabora para a continuidade de práticas comunitárias sustentáveis dentro dos territórios de atuação das comunidades e propicia o fornecimento de sementes para ações de recomposição florestal. Através dessas ações, a Associação promove e catalisa o potencial da diversidade socioambiental, bem como da troca de conhecimentos entre os grupos coletores e o corpo técnico da iniciativa.
A Associação se transforma continuamente, incorporando os discursos e os posicionamentos (às vezes divergentes) de cada um dos grupos aos seus próprios arranjos e nutrindo-se também dos modos de vida e das formas de organização dos coletores, para desenhar suas próprias ações institucionais. Ecoam, nas ações da ARSX, a cosmologia e os conhecimentos dessas populações sobre o ambiente, estimulando suas relações com o território, promovendo a alegria e a saúde daqueles que optam, dia após dia, por viver suas vidas com o pé na terra e os olhos ora no céu, a procurar matrizes, ora no chão, a procurar sementes.
Para garantir essas ações de valor inestimável, a estruturação e fortalecimento da ARSX enquanto organização social depende de um arranjo complexo, que costura a luta pelo acesso às políticas públicas, iniciativas voluntárias e socializadas, mercado de projetos e dinâmicas ecológicas. A linha que entrelaça esses sujeitos e que mantém a Associação Rede de Sementes do Xingu viva e em constante transformação não é a renda que a semente gera, por mais que, neste cenário de invisibilidade e exclusão social, o dinheiro ocupe um lugar específico como uma via importante de acesso à dignidade. São as relações com a floresta e a aposta neste modelo de vida ancorado em relações profundas e ambivalentes com os vegetais, os animais, as águas e as outras populações da região, por mais distintas que sejam, que fazem convergir esse arranjo complexo.
A ARSX agrega em rede os atores que atuam para restituir a malha do tecido de relações rompido pelo desmatamento a partir de práticas comunitárias que adiam o fim desses mundos e produzem muito mais que sementes florestais. A Associação se faz pelos seus processos, pelas pessoas que ela conecta e pelas conexões mantidas, criadas e recriadas entre essas pessoas e o mundo que elas habitam. Assim, consolida-se como oportunidade para os jovens, as mulheres e os anciãos das comunidades dos povos indígenas, agricultores familiares e dos grupos urbanos a partir das práticas comunitárias pautadas na solidariedade e cooperação, produzindo sementes florestais e valorizando a diversidade nessa região reconhecida mundialmente pela extraordinária diversidade socioambiental.
Nas últimas décadas, o planeta vem sendo assolado por catástrofes de ordem social, climática e ambiental. A biodiversidade se reduz a passos largos, a acidificação dos solos e das águas reduz a disponibilidade de água potável e um futuro preocupante se anuncia. Nas bordas da sociedade, afastadas dos louros trazidos pelo acúmulo do capital, já é possível sentir os efeitos da era da dominação antrópica, o Antropoceno.
A experiência da Associação Rede de Sementes do Xingu revela como a experimentação ativa e autônoma dessas populações é imprescindível para a reversão deste cenário e para a criação de outros futuros possíveis. Ela ensina que iniciativas de restauração ecológica (em escala ou não), podem ser potencializadas se formuladas caso a caso e, principalmente, protagonizadas pelas populações interessadas na conservação dos seus territórios para a fabricação de um futuro em que interagem todas as dimensões de suas realidades locais. Nesse sentido, os esforços para a construção de caminhos possíveis são amplificados quando focamos em ações voltadas para a pluralidade dos vínculos possíveis entre as pessoas, os vegetais, os animais, os microorganismos, os espíritos, os fenômenos meteorológicos, os cursos d’água e a terra. Nossa aposta para a reversão do cenário adverso em questão e a construção do futuro das populações que já sofrem as consequências da crise do Antropoceno é a afirmação da diversidade dos mundos e das questões relacionadas à restauração ecológica.
AUTORES
Dannyel Sá já foi pesquisador de comunidades de florestas estacionais do triângulo mineiro e de populações do coquinho-azedo manejadas por agricultores familiares e quilombolas no cerrado do Norte de Minas Gerais. Estudou biologia na Universidade Federal de Uberlândia e fez o mestrado em ecologia na Universidade de Brasília. É assessor do Programa Xingu do Instituto Socioambiental desde 2012. Atualmente apoia a organização dos grupos de coleta de sementes dos povos Wauja, Matipu, Ikpeng, Kawaiwete e Yudja no Território Indígena do Xingu e o desenvolvimento das ações de Fortalecimento da Diversidade promovidas pela Rede de Sementes do Xingu. Palestrino praticante da vida muvucada e do experimentalismo sonoro pelas florestas, campos, cerrados e cidades do mundo afora.
Amanda Horta é mulher, feminista e afeita a umas e outras gentes, bichos, plantas, versos e antropologias. Colaboradora da ARSX e doutora em antropologia pelo Museu Nacional da UFRJ, desenvolve pesquisa junto às populações do Território Indígena do Xingu, com ênfase nas experiências indígenas no espaço urbano de Canarana (MT).
Caramujo é o codinome da área da Associação Rede de Sementes do Xingu dedicada a promover ações transversais contínuas para trazer a diversidade das populações envolvidas à tona e horizontalizar os processos de tomada de decisão em todos os momentos e espaços dentro da iniciativa. Considera a espiralidade dos processos da vida para promover ações em todas as ações.
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COMO CITAR ESSE TEXTO
SÁ, Dannyel; HORTA, Amanda. Muvucas nas bordas do mundo: A Associação Rede de Sementes do Xingu e a luta por outros futuros possíveis. (Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. Publicado em 25 set. 2020. Disponível em https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n14-muvucas-nas-bordas-do-mundo. ISSN 2179-1287.