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Javalis e pessoas aproximam distâncias em Barcelona. Foto: Aníbal G. Arregui.

Diversidade

Socioambiental

Editor temático: Pedro Silveira 

nº 13 |  11 de maio de 2020

Paisagens virais: os corpos dos outros após a COVID-19 [1]

Aníbal G. Arregui

A pandemia de COVID-19 revela um entrelaçamento vital e letal de corpos humanos e não humanos numa escala global. Este texto trata de como diferentes linhagens virais podem interagir numa mesma espécie e entre espécies, tanto biológica como socialmente. Assim, este ensaio considera as paisagens virais multiespécies como um nicho planetário “selvagem” que conecta corpos de maneiras que tornam obsoletos os projetos tecnocientíficos de domesticação.

“Javalis selvagens não combinam com confinamento”, diz um comentador do twitter no dia 20 de março. De fato, javalis perambulam livremente pelas ruas desertas de Barcelona enquanto as pessoas seguem o isolamento de quarentena da COVID-19. Faço parte de um projeto colaborativo  que gira em torno da antropologia da caça, da medicina veterinária e dos javalis selvagens. Pessoalmente, eu acompanho o caso particular de alguns surpreendentes vizinhos suínos de Barcelona. Atualmente meus “sujeitos” etnográficos estão lá fora e eu estou escrevendo do confinamento doméstico, tentando rastrear pela internet esses porcos indisciplinados. 

 

A presença de javalis selvagens  não é novidade em Barcelona. No entanto, a mobilidade destes visitantes suínos é agora menos impedida do que nunca, quando eles  adentram o perímetro urbano. Os javalis selvagens italianos tiveram a mesma ideia em Gênova. De fato, esse é um momento pioneiro para muitas espécies também: perus selvagens e veados foram vistos em diferentes contextos urbanos, patos selvagens nadam na Fontana di Trevi, macacos famintos lutam por comida após o desaparecimento dos turistas das ruas de Lopburi, na Tailândia. 

 

A COVID-19 está trazendo uma grande variedade de animais às novas texturas das paisagens virais. Você pode pensar que o coronavírus é o único vírus jogando suas cartas mortais atualmente, mas não é. Precisamente a província chinesa de Hubei está preocupada agora com outro surto, agora o da chamada Febre Suína Africana (ASFV). Essa é uma linhagem viral que mata porcos domésticos e selvagens muito rapidamente, com consequências catastróficas para as economias da suinicultura e para as ecologias na Ásia, e potencialmente também na Europa.  A ASFV não mata humanos, mas sai do controle muito facilmente quando os humanos estão em apuros. Em Hubei, a quarentena da COVID-19 limitou a mobilidade das equipes de veterinários que controlam a ASFV, que tem os javalis selvagens como um importante vetor de transmissão. Há um entrelaçamento entre ASFV e COVID-19, assim como há entrelaçamentos importantes entre humanos, javalis selvagens e porcos domésticos. 

Sugiro que os entrelaçamentos multiespécies da pandemia atual nos levará a repensar as maneiras pelas quais sintonizamos nossos corpos humanos com os corpos de outros animais, no futuro. Por exemplo, diz-se que a COVID-19, assim como o Ebola e o HIV (AIDS) entraram no corpo humano por meio de transmissão zoonótica. Zoonose é o processo pelo qual uma doença é transmitida do corpo de um animal para o corpo de um humano, mesmo que haja também a dinâmica de transmissão reversa. Agora estamos conscientes das zoonoses, e preocupados. 

Edward Holmes, um virologista que está rastreando a zoonose da COVID-19 entre humanos e pangolins já notou que uma lição desta pandemia deveria ser a necessidade de reduzir a auto-exposição humana à vida silvestre. De fato, depois da COVID-19, muitos temerão que com toda a coexistência humano-animal sendo resumida ao signo da ‘peste que virá’, toda interação humano-animal se torna um potencial marco zero de pandemia.

Hoje eu me pergunto: como os desdobramentos da COVID-19 transformarão meu campo de pesquisa, em que humanos e javalis selvagens se relacionam de maneiras tão íntimas? Eu tive recentemente uma conversa com Gregorio Mentaberre, um cientista veterinário do Grupo de Ecologia da Vida Selvagem e Saúde, da Universidade Autônoma de Barcelona. Ele especula que a entrada de javalis na cidade, agora aumentada pela atual quarentena humana, poderia aumentar a presença de carrapatos e patógenos como enterobactérias, em parques urbanos e áreas verdes. Isso levará ao “distanciamento social” entre seres humanos e javalis no futuro? Os humanos tornar-se-ão mais cautelosos sobre transmissão zoonótica de coronavírus, ASFV e outros patógenos? O que eu tentativamente chamei de “paisagens virais” (viralscapes) propõe tornar visíveis - ou imagináveis- os cenários corporais multiespécies pelos quais os vírus circulam. Esse cenários inter-corporais, ou “paisagens”, estão sendo agora fortemente representados na imprensa, tornando a vida microbiana de humanos e “outros-não-humanos” uma preocupação social. COVID-19 está certamente trazendo à tona algumas relações microbianas inter-corpóreas, mas a maneira como as paisagens virais que agora começamos a ver e sentir terão impacto em hábitos interespecíficos em particular, isso ainda veremos.

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Javalis e pessoas aproximam distâncias em Barcelona. Foto: Aníbal Arregui

Escrevo este comentário a partir de um preocupante confinamento doméstico, porém com um olhar esperançoso para as novas formas de vida e coexistência multiespécies “depois” da COVID-19. Também vejo que o trabalho da antropologia, da história e de outras ciências sociais e humanidades é, em tempos de crise, mais importante do que nunca. Alguns insights vindos destes ramos das ciências serão cruciais no reposicionamento dos seres humanos nas paisagens virais multiespecíficas que emergem rapidamente em nossos tempos. Podemos, por exemplo, observar como as pragas anteriores foram imaginadas, tornadas visíveis e abordadas. Ou podemos nos inspirar na violência reversível das espécies e entre espécies no contexto da caça, e assim entender a tarefa da virologia, como a de “perseguir” seres que a qualquer momento podem se voltar contra nós e também nos matar. Já que os vírus são seres selvagens e seu nicho selvagem são nossos corpos, precisaremos caçar dentro de nós mesmos. E precisaremos respeitar os vírus assim como os caçadores respeitam a agência potencialmente reversível e mortífera de suas presas. 

Caçadores não são predadores solitários. Agem em coordenação com um coletivos de outros-não-humanos cujo entrelaçamento em um dado ambiente precisa ser bem entendido. A primeira coisa que um caçador reconhece é que a maioria de seus aliados e inimigos outros-não-humanos são “selvagens”, ou seja, autônomos e não domesticáveis enquanto espécies. Isso provoca uma atentividade corporal e uma afecção para com os outros que é pautada pelo respeito, algo bem diferente do que confiar na submissão e na obediência daqueles cuja autonomia foi capturada pela tecnociência.

Da mesma forma, eu diria que não é possível nos posicionarmos seguramente nessas paisagens virais que nós dividimos com outros sem conhecer e respeitar sua interações ao nível micriobiano, que são abertas e autônomas. Há um ramo emergente da virologia que estuda a chamada vida social dos vírus . Esses especialistas estudam a comunicação e a coordenação entre diferentes linhagens de vírus que se aliam para conjuntamente conquistar um organismo. A partir de uma perspectiva multiespécies das ciências sociais, sugiro que para mapear essa dinâmica “social” dos micróbios, precisamos saber não só como os vírus interagem biologicamente, mas também como as relações entre os seres humanos, e entre humanos e não-humanos reembaralham as próprias relações virais de maneiras imprevisíveis.

O equilíbrio que propicia a vida humana nas paisagens virais emergentes é um projeto que envolve necessariamente pensar coletivamente nossa relação com outros-não-humanos. Obviamente nós, como indivíduos, precisamos conhecer os corpos e afecções dos outros para prevenir situações de zoonoses patogênicas e o posterior contágio e propagação entre humanos. Mas isso não necessariamente consagra o celebrado “distanciamento” de uma vez por todas. Também envolve cuidado, respeito e humildade para com os “outros”. O modelo individual do distanciamento está rapidamente sendo posto em prática para prevenir a transmissão entre humanos, e há quem defenda ou aplique esse distanciamento também para animais.

Um distanciamento cuidadoso e temporário agora é vitalmente necessário. Mas ele não pode se estabelecer como um padrão relacional ou cultural. Vimos nas últimas semanas a emergência de formas horríveis e virulentas de racismo e “alteridade”. Em primeiro lugar, os indivíduos chineses “sem higiene” foram culpabilizados pela dispersão da COVID-19. Depois os italianos “gananciosos”. Logo após, estereótipos sobre práticas dos espanhóis de beijos e cumprimentos indiscriminados podem ser as próximas indiciadas. Para combater o vírus, um conjunto de técnicas corporais de higiene e “distanciamento social” foi imposto numa escala sem precedentes: uma disciplina anátomo-política planetária. Imagine Michel Foucault acordando agora e vendo essa confusão. E agora imaginemos como ele imaginaria o entrelaçamento entre a COVID-19 e o outro vírus, o que o levou, HIV/AIDS.

O ponto em que quero chegar é que não importa se você é uma pessoa estadunidense ou chinesa, um pangolim ou um javali. Nas paisagens virais que nos envolvem e evoluem velozmente, nossos corpos são, inevitavelmente, os corpos de outros. Nunca a permeabilidade dos corpos dos indivíduos foram tão dramaticamente evidentes quanto na pandemia atual. E ainda, a irrupção da COVID-19 não revela que estávamos próximos demais uns dos outros. Mostra que não prevemos o perigo da porosidade radical de nossos corpos compartilhados. Não previmos como o que é selvagem poderia atual fora, dentro e entre nós. Mesmo se a “distância” se tornar um condutor da ignorância, do abandono ou do racismo, para muitas pessoas essa epidemia será a revelação de que estamos vitalmente misturados.

Por isso a auto-disciplina, as técnicas corporais de higiene e o distanciamento social não pode ser o telos deste momento para a humanidade. Todos sabemos (ou esperamos) que que essa seja apenas uma solução temporária, de curto prazo. Humanos outros-não-humanos logo recomeçarão a navegar pelas distâncias individuais interrompidas. Assim, a emergência da COVID-19 pode ser uma oportunidade de repensarmos o sistema que inevitavelmente nos une como um coletivo multiespécie, não como indivíduos humanos. Muitas vozes já apontam nesta direção, lembrando, por exemplo, da lógica econômica destrutiva que nos impediu de interromper a propagação da COVID-19 a tempo.

De qualquer maneira, temos agora um fracasso total no sistema, que se tornou uma questão somática para quase todos os seres humanos no mundo. Mas essa não é uma batalha contra a COVID-19 enquanto espécie ou como linhagem viral. Esse é um momento de repensar nossa posição nas paisagens virais nas quais o coronavírus está nos agarrando, enquanto, ao mesmo tempo, tece conexões silenciosas com ASFV, HIV/AIDS e, quem sabe, com outros monstros invisíveis. Assim, COVID-19 e seus congêneres estão nos contando que permanecerão selvagens e, mesmo que os domestiquemos com uma eventual vacina, continuarão sofrendo mutações, se aliando e retornando para nossos corpos humanos e outros-não-humanos, presentes em toda parte.

Agora enxergamos a floresta somática multispécie em que vivemos, e não podemos domesticá-la. Só podemos mostrar respeito pelos corpos selvagens que circulam entre e dentro de nós, e aceitarmos a incerteza. Isso é algo em que os caçadores são muito melhores do que os cientistas.

NOTAS:

[1] Texto originalmente publicado em inglês, na série “Corona”, da Allegralab, sob o título de Viralscapes. The bodies of others after COVID-19. Disponível em: https://allegralaboratory.net/viralscapes-the-bodies-of-others-after-covid-19/.

Tradução de Pedro Castelo Branco Silveira.

PARA SABER MAIS:

Despret, Vinciane (2004) The Body We Care For: Figures of Anthropo-zoo-genesis. Body & Society 10 (2–3): 111–134. http://www.biolinguagem.com/ling_cog_cult/despret_2004_thebodywecarefor.pdf

 

Dolgin, Elie (2019) The Secret Social Lives of Viruses. Nature, 570, 290-292. https://www.nature.com/articles/d41586-019-01880-6

 

Keck, Frédéric. (2018), Avian preparedness: simulations of bird diseases and reverse scenarios of extinction in Hong Kong, Taiwan, and Singapore. Journal of the Royal Anthropological Institute, 24: 330-347. https://rai.onlinelibrary.wiley.com/doi/pdf/10.1111/1467-9655.12813

 

_____. Os morcegos e os pangolins se rebelam: entrevista com Fréderick Keck. Editora n-1, Série Pandemia Crítica. https://n-1edicoes.org/050

 

Keck, Frédéric and Lynteris, Christos (2018) Zoonosis. Prospects and challenges for medical anthropology. Medicine Anthropology Theory 5 (3): 1–14. http://medanthrotheory.org/read/10867/zoonosis

 

Lainé, Nicolas (2018). Elephant tuberculosis as a reverse zoonosis. Postcolonial scenes of compassion, conservation, and public health in Laos and France. Medicine Anthropology Theory 5 (3): 157–176. 

http://www.medanthrotheory.org/read/10870/elephant-tuberculosis-as-a-reverse-zoonosis

Lynteris, Christos (2019) Human Extinction and the Pandemic Imaginary. London: Routledge. https://www.routledge.com/Human-Extinction-and-the-Pandemic-Imaginary-1st-Edition/Lynteris/p/book/9780367338145

 

Mauss, Marcel (2003[1924]) As técnicas do corpo. In: Sociologia e Antropologia. São Paulo, Cosac&Naify, p. 199-420. http://ea.fflch.usp.br/content/tecnicas-do-corpo

 

Staal, Jonas (2020) “Coronavirus Propagations”. e_flux. https://conversations.e-flux.com/t/coronavirus-propagations-by-jonas-staal/9671

O AUTOR

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Aníbal García Arregui é atualmente pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Barcelona. Seu trabalho tem como tema os engajamentos corpóreos entre humanos e não-humanos, por um viés etnográfico, para estudar processos de transformação ecológica. A partir de 2006 Aníbal realizou trabalho de campo em comunidades ribeirinhas e quilombolas do Baixo Amazonas, e mais recentemente sobre os javalis selvagens peri-urbanos de Barcelona. A maior parte de suas publicações situa-se na interseção entre antropologia ambiental, antropologia do corpo e etnografia multiespécies.

COMO CITAR ESSE TEXTO

ARREGUI, Aníbal García. Paisagens virais: os corpos dos outros após a COVID-19. Artigo). In: Coletiva - Diversidade Socioambiental. Publicado em 11 maio 2020. Disponível em: https://www.coletiva.org/diversidade-socioambiental-n13-paisagens-virais-por-anibal-arregui. ISSN 2179-1287.

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