top of page
Sonoridades afrodiaspóricas pernambucanas: breves reflexões acerca do manguebeat e o bairro de Peixinhos

Artur Onyaiê

musica-grupo-afro-cultural-lamento-negro-1o-festival-da-lua-cheia-02-04-91.webp

Lamento Negro no Festival da Lua Cheia, em 1991. Foto: Reprodução do site Telestoques.wordpress.com

É sabido da contribuição do Manguebeat para a visibilidade do Recife num âmbito internacional, o que levou ao considerável incremento no que tange aos produtos culturais que ponderavam a respeito do movimento; contudo, acho descabido como pouco se aprofundam nas periferias e nas manifestações afrodiaspóricas tão medulares para o movimento mangue. Sob estas circunstâncias, retomo meus estranhamentos e incômodos ao assistir documentários em torno do movimento com entrevistas com pessoas de São Paulo que tiveram contribuição para o crescimento da cena. Bem, esses desconfortos não se davam apenas pela minha ignorância de desconhecer aquelas pessoas brancas da cidade cinza; mas mais por entender que temos uma pluralidade de pessoas, lugares e instituições negras tão e mais importantes quanto as entrevistadas.

Diante desses hiatos, tenho proposto perceber o movimento manguebeat por uma ótica que leve em consideração a importância de personagens negros e negras que habitam e ocupam outros estratos do lamacento estuário. Por isso, me valendo deste espaço, proponho algumas articulações entre o bairro de Peixinhos e grupo percussivo Lamento Negro como nódulos relevantes de uma rede afrodiaspórica dentro do Mangue.

Frente a tantas lacunas e tantas camadas, o bairro de Peixinhos é origem e destino de um percurso onde lanço os sentidos na busca por histórias outras que tangem o Movimento Mangue. Além de ser berço do Lamento Negro, penso que a herança ancestral do bairro foi fonte imprescindível para o movimento, por isso insisto em trazer os ouvidos para as histórias e as sonoridades do bairro.

Visto o seu posicionamento entre Olinda e Recife e a proximidade do Rio Beberibe, compreender a localização do bairro de Peixinhos é tarefa imprescindível para baldearmos os nossos olhares. A boa navegabilidade do Rio Beberibe permitiu que as populações negras, que em grande parte exerciam atividades ribeirinhas, se fixassem às suas margens.Além disso, circunjacente às matas de Catucá, a região de Peixinhos também foi ponto inicial de fuga de escravizados que se destinavam ao Quilombo de Malunguinho.

Podemos perceber a maneira que a população negra buscava se apropriar do espaço pela via material, pois dali realizam suas atividades ribeirinhas, rotas de fuga e estratégias de sobrevivência; mas, igualmente, é espaço simbólico de culto das religiões da diáspora negra. Sobre essas organizações na beira do rio Água Fria, atual Rio Beberibe, o pesquisador Bruno Halley nos conta:

Mesmo diante de um contexto de controle e repressão étnico-religiosa, elaboraram e reelaboraram estratégias para se organizarem na região do rio Água Fria. A partir desta resistência, os grupos sociais negros que buscavam a manutenção de suas práticas, habitações, e lugares simbólicos, acabaram também por estender o tecido da cidade em áreas marginalizadas pela elite.¹

Desta forma, passei a sentir Peixinhos como um centro de organização e disseminação do sistema simbólico afrodiaspórico, um território sonoro que construiu, constrói e reconstrói tradições e nostalgias das culturas da diáspora. Não por acaso, de acordo com o site Mapeando Axé², atualmente, no bairro de Peixinhos, encontram-se mais de 35 casas de candomblé, umbanda e jurema. Sendo assim, é muito possível entender que ao longo do processo da construção simbólica do território santificado, contiguamente, há a formação de um território sonoro proveniente das práticas musicais vinculadas às atividades também simbólicas.

É justamente dentro desse contexto ancestral do bairro de Peixinhos que em 1987 é fundado o bloco percussivo Lamento Negro. Osmair José, o mestre Maia, um dos fundadores do bloco, conta que ele e os amigos vivenciavam as culturas negras a partir do Centro de Educação Daruê Malungo, do Mestre Meia Noite; e das referências estadunidenses que chegavam pelas indústrias fonográfica e cinematográfica, principalmente pelo break dance e o funk de James Brown.

A ideia do bloco veio após o encontro de Maia e seus amigos com um ensaio do afoxé Alafin Oyó. Extasiado pelo contato com outras correntes afrodiaspóricas trazidas pela negrada do afoxé, Maia relembra³ que se tratava de uma negrada diferente, que se valiam de dreads, roupas coloridas, um jeito diferente de dançar; o que contrastava com os cabelos black power, as roupas escuras e os tênis basqueteiras dos jovens do futuro Lamento Negro. Esse cruzo de vivências de uma negritude muito ligada nos rituais africanos com a geração de Maia, marcada pela negritude estadunidense, foi fundamental no que diz respeito à construção da estética do Lamento Negro; pois dali vêm as ideias de traduzir e dialogar as batidas de James Brown com os surdos dos grupos de samba-reggae de Salvador, como o Olodum, Muzenza e Araketu; com o afoxé; e os maracatus.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Entendo que é sempre importante ter em vista que Chico Science & Nação Zumbi, maior expoente do movimento mangue, surgiu a partir do encontro de Chico Science com o Lamento Negro, intermediado por Gilmar Bola 8, morador de Peixinhos e integrante do deste grupo. Outrossim, o Lamento também é e foi formador de grandes percussionistas, pois sempre promoveu o ensino dos instrumentos musicais percussivos com base na música negra. Não por acaso, Canhoto, Gira, Gilmar Bola 8 e Toca Ogan, todos com passagem pela Nação Zumbi, também tiveram formação no bloco percussivo.

Para se ter uma ideia da sonoridade do Lamento Negro com Chico Science, podemos ouvir uma das primeiras versões da música A cidade, lançado pela TV Viva. O ritmo mais cadenciado aproxima o mangue ao suingue dos blocos de samba-reggae de Salvador. Podemos perceber a caixa, tocada por Canhoto, homem negro, morador de Peixinhos e do Lamento Negro, inspirada no balanço do funk de James Brown. Na configuração dos surdos, de novo a ligação com o samba-reggae de Salvador, que, diferentemente da alfaia de maracatu, tem som mais suave, devido à baqueta com ponta macia, e a nota grave se sustenta por mais tempo.

O manguebeat foi forjado também nas espirais da diáspora, todavia temos poucos debates em torno dessas histórias. Destarte, penso que essas breves reflexões possam contribuir por essa tentativa de trazer à superfície essas histórias outras que se localizam em diferentes estratos do mangue. Um movimento inicial foi lançado na gira do tempo para podermos alargar as fissuras e trazer articulações das histórias outras da cultura pernambucana.

NOTAS

[1]  Entrevista concedida por Sérgio Vaz ao Programa Provoca com Marcelo Tas no dia 14 de maio de 2024. Pergunta feita em 16m18s. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=Ctfc8oht-I4&t=1039s acessado em 15 de outubro de 2024.

[2] https://www.mapeandoaxe.org.br/cd/paginas/inicio.htm

[3] Durante entrevista cedida em dezembro de 2022

[4]  https://www.youtube.com/watch?v=jV6NHQHwyjY

PARA SABER MAIS 

HALLEY, Bruno. Onde mora o xangô? Fatores de localização de terreiros afroreligiosos às margens do rio Água Fria – Recife (séculos XIX - XX). Tempo - Técnica - Território, Brasília, v.5, n.1 (2014), p. 29:54.

O AUTOR

WhatsApp Image 2024-12-20 at 11.53.27.jpeg

Sou Músico, produtor e  pesquisador nascido em Recife, graduado em História pela Universidade Católica de Pernambuco. Especializado em Cultura Pernambucana, pela Fafire, e História de Nordesta, pela Universidade Católica de Pernambuco. Em 2019 finalizei o mestrado em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco, onde pesquisei as relações das cenas musicais e os dispositivos que atuam nas construções das memórias. Atualmente, doutorando em Comunicação, pesquiso as diásporas negras no manguebeat.

Ainda tratando das cenas musicais e memórias, tenho pesquisado as controvérsias do movimento manguebeat e suas origens no bairro de Peixinhos sob o ponto de vista afrodiaspórico. Apresentei os trabalhos Peixinhos território ancestral: notas sobre processos de territorialidade e a musicalidade do Manguebeat, no evento Popfilia, em 2021, no  Recife; o Que Negritude é essa no Manguebeat? Breve reflexão em torno dos clipes de A Cidade, de Chico Science, no Popfilia de 2023, também no Recife; e o Mangue Afrodiaspórico: rasuras sobre o manguebeat em Pernambuco, no Intercom Nacional 2023, em  Belo Horizonte.

COMO CITAR ESSE TEXTO

ONYAIÊ, Artur. Sonoridades afrodiaspóricas pernambucanas: breves reflexões acerca do manguebeat e o bairro de Peixinhos. Revista Coletiva, Recife, n. 35, ago.set.out.nov.dez. 2024. Disponível em: https://www.coletiva.org/artur-onyaie . ISSN 2179-1287. 

Conteúdos relacionados

APOIO
LABJOR/UNICAMP
REALIZAÇÃO
régua_de_marca_page-0001-removebg-preview (1).png
bottom of page