Colagem de obras das séries artísticas Metaesquemas, Geometria à Brasileira, Bichos e Bixinhas, de Hélio Oiticica, Rosana Paulino, Lygia Clark e Lyz Parayzo, respectivamente. Reprodução.
Sociedade
Arte e
Editores Temáticos: Moacir dos Anjos e Paulo Marcondes
nº 10 | 10 de agosto de 2023
Sobre bichos, bixinhas, abstração e concretude na arte brasileira
Moacir dos Anjos
A virada política nas artes visuais no Brasil é fato. Seja em exposições institucionais ou em feiras de arte, em premiações ou projetos editoriais, há uma presença forte e inconteste, ao longo dos últimos dez anos, de questões historicamente ausentes do campo artístico brasileiro, notadamente aquelas vinculadas à violência colonial que funda e define o Brasil. Em simultâneo, tornam-se ali gradualmente mais visíveis trabalhos de artistas indígenas, negros e que se identificam como pessoas transgêneras, desafiando sua patente sub-representação (ou mesmo total ausência) nesse espaço de legitimação.
Trata-se de uma produção artística que difere, de modo evidente, daquela que esteve hegemonicamente associada ao país (internamente e no exterior) ao longo das últimas décadas, grande parte da qual descendia, principal e assumidamente, da tradição construtiva da arte brasileira – em particular do neoconcretismo, movimento amadurecido na transição da década de 1950 para a seguinte.
Entre as obras feitas naquele período que se tornaram influentes para muitos dos artistas atuantes no país entre as décadas de 1990 e 2000, destacam-se, indubitavelmente, as de Hélio Oiticica e de Lygia Clark, ambas celebradas por sua sofisticação formal e conceitual. Para muitos dos artistas que estão desenvolvendo suas obras no Brasil de agora, contudo, não é mais possível seguir este legado – ainda que reconhecendo sua importância – sem estabelecer, com ele, uma relação crítica. Relação que é apresentada, aqui, a partir de trabalhos de duas artistas: Rosana Paulino e Liz Parayzo.
Rosana Paulino tem desenvolvido uma obra que examina processos de silenciamento, apagamento e desumanização da população negra na história do Brasil, para o que investiga suas representações visuais ao longo do tempo. Em particular, interessa-lhe examinar retratos de pessoas negras, elaborados por fotógrafos europeus que viviam no país no século XIX. Em vários de seus trabalhos, a artista usa fotografias feitas pelo francês Auguste Stahl, por encomenda do naturalista suíço-americano Louis Agassiz, no âmbito da Expedição Thayer – visita de exploração científica ao Brasil organizada pela Universidade de Harvard entre 1865 e 1866.
O objetivo da expedição era expandir uma documentação visual dos tipos raciais existentes no mundo, iniciada pelo pesquisador na década de 1850, nos Estados Unidos. A pedido de Agassiz, Stahl fotografou dezenas de mulheres e homens negros e mestiços no Rio de Janeiro, registrando-os muitas vezes despidos. Essas fotografias seriam usadas como evidência das teorias criacionistas e racialistas de Agassiz, as quais eram baseadas em duas principais ideias: primeiramente, a de que a humanidade seria formada não por uma, mas por várias espécies ou raças humanas, criadas por gesto divino; em segundo lugar, a ideia de que haveria uma hierarquia entre essas espécies ou raças, igualmente instituída por ordem de Deus.
Fundamentalmente, o naturalista estava empenhado em demonstrar que estaria em curso um processo de degenerescência das raças “superiores” (os brancos) provocada pela mestiçagem com raças “inferiores” (os negros), o que justificaria a defesa científica da segregação absoluta entre uns e outros. Se na época já existia arquivo fotográfico suficientemente representativo de brancos, a tarefa a que Louis Agassiz se impunha era formar arquivo amplo também de negros “puros” e de pessoas miscigenadas, de modo a poder comprovar suas convicções racistas.
Ao incorporar algumas dessas fotografias em seus trabalhos, bem como imagens de homens e mulheres indígenas feitas em contextos similares, Rosana Paulino tem um duplo propósito: denunciar a violência nelas contida e devolver humanidade às pessoas ali retratadas. Em uma das séries assim feitas, chamada Geometria à Brasileira (2018), imagens de homens e mulheres negros e indígenas são aproximadas de imagens de exemplares da flora e da fauna brasileiras (também feitas por artistas europeus no Brasil), como se todas elas fossem parte de um estudo classificatório de espécies naturais. Nas obras, os olhos desses homens e mulheres estão, além disso, obstruídos por elementos geométricos coloridos, em referência possível – sugerida pelo título da série – à tradição abstrata e geométrica da arte brasileira.
Imagem 1 - Rosana Paulino. Geometria à Brasileira Chega ao Paraíso Tropical, 2018. Reprodução.
Em particular, as obras parecem fazer alusão, no uso especializado desses blocos de cor que obliteram olhos, à serie de trabalhos feita por Hélio Oiticica no final da década de 1950, conhecida por Metaesquemas.
Além das ciências ditas naturais, Rosana Paulino parece sugerir que também a história da arte possui suas estratégias, explícitas ou não, de apagar as diferenças e o protagonismo daqueles povos. Povos que, para que o Brasil fosse inventado como lugar regido pela razão, foram continuamente violentados pelo colonizador e, em seguida, pelo próprio brasileiro branco que não reconhecia, em indígenas e negros, a humanidade que reclamava para si mesmo.
Em alguns dos trabalhos da série Geometria à Brasileira, os olhos dos animais estão igualmente vendados por barras de cor, como a lembrar que tal como homens e mulheres racializados, aqueles estão à mercê de uma racionalidade arrogante que se atribui o direito de definir o que pode e o que não pode viver. De definir, por vezes, o que deve morrer.
A artista Lyz Parayzo, por sua vez, dialoga em sua obra com uma série de trabalhos feita por Lygia Clark no início da década de 1960, nomeada de Bichos. Os Bichos são objetos feitos de placas recortadas de alumínio articuladas por dobradiças, de modo que podem ser mexidos por qualquer pessoa e assumir formas diferentes. Mais ainda: são trabalhos que somente ganham significado se forem manipulados por quem os deseje. Para Lygia Clark, o artista seria apenas um propositor de experiências, enquanto o público seria o ativador dessas proposições, e não apenas um espectador passivo. Implícito nessa sugestão estaria o fim de limites rígidos entre quem é e quem não é artista. Ideia de participação do outro na construção de significados da arte, que se tornou muito influente no Brasil nas décadas seguintes.
Para Lyz Parayzo, contudo – assim como para outras e outros artistas que produzem no tempo presente –, esta noção de partilha na construção de significados dos trabalhos não é mais suficiente. Ela se inscreve na trilha do projeto construtivo elaborado por Lygia Clark apenas para promover nele uma torção crítica. Movimento que fica evidente na sua série batizada de Bixinhas, iniciada em 2018, que formalmente remete e se assemelha à serie de Bichos, de Lygia Clark, mas que estabelece, com ela, uma marcada diferença: as bordas das placas de metal que constituem as Bixinhas são serrilhadas, podendo ferir as mãos de quem quiser manuseá-las. Essa característica construtiva faz com que as serras também possam servir como instrumentos de proteção e autodefesa.
Bixinhas, neste contexto, não é, evidentemente, somente um diminutivo para o feminino de Bichos, posto que a troca do CH pelo X na nomeação da série a associa ao termo que usualmente designa uma pessoa queer no Brasil. Palavra que, dependendo de quem a usa, pode ser insulto e pode também ser declaração de pertencimento partilhado de condição de vida. Considerando que Lyz Parayzo é uma jovem mulher trans, o título genérico que usa para vários de seus trabalhos – Bixinhas – tem aqui conotação empática e de acolhimento. Conotação que faz também recordar, todavia – dada a violência implícita que seus objetos encerram –, que o Brasil é o país com maior número de pessoas transgêneras assassinadas no mundo, e que a maior parte da população transgênera no Brasil morre antes de completar 35 anos.
A contribuição de Lygia Clark para a tradição construtiva ganha, assim, nos trabalhos de Lyz Parayzo, um significado completamente diferente. Passa a ser plataforma formal de denúncia de um abuso e, também, da necessidade de resistir a ele, reivindicando assertividade de corpos usualmente subalternizados no Brasil. Com isso, a participação que as Bixinhas demandam é de ordem distinta daquela sugerida pelos Bichos. Na série de Lyz Parayzo, o que mais importa é a participação de qualquer um (artista e não-artista) na construção de uma outra paisagem social para o país. As Bixinhas são, de modo singular, um convite à participação na luta, sem fim certo, contra a violência de gênero.
As séries Geometria à Brasileira e Bixinhas são exemplos da virada política na arte contemporânea brasileira. Exemplos, em particular, de como suas autoras (além de outras e outros vários artistas) reconhecem a importância da tradição construtiva moldada décadas atrás no país ao mesmo tempo que apontam problemas ou limitações na adesão acrítica tantas vezes feita a ela, evidenciados pelos temas e demandas que movem o Brasil de agora. De diferentes maneiras, Rosana Paulino e Lyz Parayzo apontam a necessidade de revisitar essa tradição a partir de questões estranhas às concepções que lhe deram origem. Pondo-a pelo avesso, mostram que, se é preciso entender e acatar sua relevância e potência histórica, é necessário também fraturar sua hegemonia que por várias décadas foi indisputada.
O AUTOR
Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e coordenador-geral do Museu do Homem do Nordeste. Foi curador da 29ª edição da Bienal de São Paulo (2010) e é autor dos livros local/global: Arte em trânsito (Zahar, 2005), Artebra crítica (Martins Fontes, 2010) e Contraditório: arte, globalização e pertencimento (Cobogó, 2017).
COMO CITAR ESSE TEXTO
DOS ANJOS, Moacir. Sobre bichos, bixinhas, abstração e concretude na arte brasileira. (Artigo). In: Coletiva - Arte e Sociedade. nº 10. Publicado em 10 ago. 2023. Disponível em: <https://www.coletiva.org/arte-e-sociedade-reflexoes-sobre-a-possivel-indissociabilidade-entre-arte-e-politica>. ISSN 2179-1287.
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