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Imagem: Rose Gondim, 2023.

Sociedade

Arte e

Editores Temáticos: Moacir dos Anjos e Paulo Marcondes 

nº 13 | 04 de junho de 2024

Poesia e outros códigos

 Paulo Marcondes Ferreira Soares

O título deste ensaio sugere um conjunto de interações da poesia com as demais formas de expressão, que podem envolver outros códigos de linguagem em arte, mas também de outros meios da comunicação humana. Evidentemente, tal processo enreda-se num tipo de experimentação ampliada das poéticas em jogo, cujos códigos de linguagem gozam de certas especificidades, por mais contíguas que pareçam.

Há muitos modos de tratar o tema. Não vou, contudo, lidar com elementos de uma teoria dos signos, capaz de uma abordagem de ordem estrutural ao campo da linguagem poética e artística.

Noutra direção, meu procedimento será guiado por um tipo de abordagem mais relacional, e, certamente, de uma correspondência entre essas poéticas que, em lugar de compreender o tangenciamento de suas formas, opta pelo reconhecimento de uma espécie de borramento daquelas referidas especificidades.

O risco de uma abordagem desse tipo é o de cair em afirmações muito generalistas que, ainda que consiga situar obra e contexto, finda por traçar um tão poderoso mecanismo de interpretação, que torna inviável o delineamento de certas particularidades contidas nas diversas linguagens artísticas que se manifestam em suas obras e movimentos.

Em todo caso, esse alerta serve igualmente para modalidades interpretativas que unicamente ressaltam as tais especificidades da obra, sem qualquer dimensão do contexto em que ela se dá. Meu empenho será, contudo, no sentido de refletir essa dinâmica relacional a partir de um olhar sobre processos de transformação da arte e seu padrão estético.   

Quando se é chamado a pensar a relação da poesia com outros códigos de linguagem no circuito mais amplo da arte contemporânea, uma questão se faz imediatamente presente: a necessidade de refletir sobre a dimensão dialógica dessas linguagens, à luz do campo de mediações possíveis entre transformações na arte e o advento de novas mídias – que são, por sua vez, resultado do desenvolvimento da pesquisa tecnológica em determinada época e lugar, que está longe de se encontrar a salvo das condições materiais de produção dessa época e lugar, com suas lógicas de mercado e distribuição.

Esta parece ser, em todo caso, uma assertiva que não diz respeito, exclusivamente, ao que se poderia nomear de contemporâneo na arte. Qualquer discussão a respeito dos movimentos artísticos do início do século XX, com as chamadas vanguardas históricas, passa necessariamente pelo reconhecimento desta relação da arte com os meios tecnológicos e as condições geopolíticas de seu tempo.

De mais a mais, embora pareça chover no molhado, não custa lembrar que a palavra tecnologia se refere a um conjunto de procedimentos e regras que resultam em métodos e técnicas da ação humana em determinada época. Deste modo, falar da relação entre arte e técnica é falar de algo imbricado em toda forma do invento humano, artístico e não artístico. O que difere no tempo é o advento de novas tecnologias que, em suas essências, não se encontram descoladas das relações de poder - texto e contexto do que passamos a caracterizar como uma nova época, frente a uma anterior.  

Aliás, não são poucos os intérpretes que indicam os processos de incorporação dos novos meios tecnológicos em seus estudos, bem como de novos materiais e de objetos do cotidiano como característicos da natureza experimental da arte na modernidade, por exemplo.

Orientadas que estavam para procedimentos de arte-vida, muitas das manifestações das vanguardas assumiram atitudes de quebra de quaisquer fronteiras a propósito do que se poderia considerar como arte e não-arte, em termos de um processo artístico que recrudesceu ainda mais a exposição vívida de sua vinculação com a revolução tecnológica - mais do que em qualquer outra época até então.

Da vinculação de arte e tecnologia do período é que se dá a dinâmica da arte temporal, dado o grau de efemeridade que isso traz como implicação. Sendo assim, se tecnologia e cotidiano compõem o universo experimental das vanguardas históricas, eles se apresentam de um modo altamente expressivo e com novas configurações no âmbito da arte contemporânea. 

Neste ponto, pretendo centrar atenção na esfera mais específica do título proposto, que é o do tratamento da poesia contemporânea em seus diversos “fazeres” e nas suas relações com outros modos de arte.

Em meu entendimento, qualquer debate acerca do tema já nos coloca diante da seguinte questão: aqui, não se trata de refletir o contemporâneo na poesia apenas em termos do que está próximo. Ao contrário, a ideia de contemporâneo implícita nessa discussão é a que vincula a linguagem poética à sua dimensão experimental, de uma poesia que é tida como de invenção,  de um inescapável diálogo com o mundo e com a vida cotidiana.

Nesse sentido, assim como  é possível identificar no contemporâneo o diálogo com toda uma herança de conquistas das vanguardas históricas, podemos, igualmente, verificar, no surgimento das novas tecnologias digitais, o recurso a meios e processos claramente distintos de padrões anteriores.

Com isso, pode-se argumentar que o fazer poético na atualidade se exerce sob o prisma de uma completa sinergia desses meios e processos, configurados na forma do hipertexto e da hipermídia.

Assim, se a premissa “verbivocovisual” definida pela poesia concreta pode nos levar a reconhecer preocupações anteriores com experimentos visuais, sonoros e verbais não-lineares da poesia, capazes de promover uma nova sintaxe poética radicalmente distinta das formas tradicionais do poema, não resta dúvida que a inserção desses elementos na tecnologia digital se traduz por condições infinitamente mais ampliadas de suas realizações.

Sem querer estabelecer uma longa historicidade da poesia visual, acredito ser suficiente, para os limites desta fala, identificar marcos da referida modalidade poética a partir de Mallarmé, poeta francês que viveu no final do século XIX, em sua conquista da espacialidade visual do poema.

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Daí em diante, a contemporânea visualidade na poesia foi se configurando mais e mais em diálogo com seu tempo e nas fronteiras com outras artes, chegando mesmo a experimentar mudanças que transformaram por completo a estrutura do poema.

Em suas relações com as artes plásticas, já no começo do século XX, período das vanguardas históricas, em que a pintura deixa de ser o meio privilegiado de representação plástica, passando o objeto a predominar como meio de arte, a poesia visual  também tem suas primeiras inserções nesse formato: colagens, caligramas (Apollinaire), ready-mades, etc.

Poème 22, Apollinaire, 1916. Imagem: Reprodução.

Uma breve ressalva faço aqui: há, na arte, um modo de se falar em objeto como meio, que diz respeito a como, em dado experimento de linguagem, passam a ser incorporados ao espaço/código tradicional de uma experiência artística, objetos comumente associados a outro espaço ou código.

Em poesia, esse processo é normalmente percebido em manifestações da chamada “vertente semiótica”, que alguns estudiosos passaram a classificar de “poesia intersignos”, como um conjunto de manifestações da poesia visual e sonora, em suas interfaces com outras linguagens e outros meios, mas, evidentemente, a partir de sua própria materialidade enquanto código de linguagem.

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Clichetes, Philadelpho Menezes, 1984. Imagem: Reprodução.

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Beba Coca-Cola, Décio Pignatari, 1957. Imagem: Reprodução. 

Com os novos meios áudio-visuais, outra modalidade, há muito decantada pela poesia experimental, transforma-se numa manifestação corrente: a poesia sonora. No que pese a diversidade de experimentações cabíveis sob essa denominação, pode-se dizer que experiências dessa natureza são, em geral, intervenções de técnicas sonoras e musicais, tanto acústicas quanto eletrônicas, sem a necessária alusão ao verbal ou à letra. 

Poema O pulsar, Augusto de Campos, 1975. Imagem: Reprodução.[1]

São, igualmente, intervenções de técnicas corporais, em que o som pode ser explorado com base unicamente em processos guturais, naturais, etc. Ou seja, como já foi dito, os experimentos sonoros tanto podem incorporar quanto podem negar a palavra-linguagem. A pesquisa sonora tanto pode prescindir da melodia quanto utilizá-la.

Acrescente-se, ainda, que assim como a poesia visual destrói a sintaxe tradicional do poema, abolindo o verso, e depois a palavra e, mesmo, a unidade da letra; a poesia sonora se ocupa do deslocamento da sonoridade de sua significação mais imediata na estruturação fonética da palavra, em termos de linguagem propriamente. Daí que por poesia sonora não se deve entender simplesmente o estado da poesia musicada.

PaLlarva, Paulo Bruscky, 1980. Imagem: Reprodução.

Evidentemente, como ficou dito, a pesquisa sonora também se vale da palavra enquanto linguagem, inclusive para alterar sua estrutura. Como exemplo dessas tendências, citaria nomes já bastante conhecidos, como é o caso de John Cage,  Yoko Onno e seus experimentos guturais ou, ainda, de Meredith Monk - só para ficarmos com algumas fontes que podem ser facilmente acessadas nas plataformas digitais.

Num circuito mais comercial do disco, poderíamos ter como referência, entre outras, "Portrait of Gertrude", no CD A Fábrica do Poema, de Adriana Calcanhoto ou, ainda, "Rappopcreto", no CD Tropicália 2, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre tantas outras experiências que serviriam para exemplificar essa modalidade.

Uma última consideração a propósito da discussão em torno da relação poesia e letra de música caberia aqui: ao classificar a letra de música como “literatura de performance”, Charles A. Perrone, no seu livro Letras e Letras da MPB (Booklink, 1988), chama a atenção para o fato de que um poema feito para ser cantado deveria ser estudado no próprio corpo da canção: melodia e palavra. Dessa unidade da canção, a performance do poema poderá se expressar na forma da palavra cantada e dramatizada, bem como da sonoridade como palavra-linguagem.

A rigor, do ponto de vista da transfiguração da palavra em materialidade poética, não há distinção, a meu ver, entre poesia e letra. Por outro lado, é possível reconhecer, em circunstâncias diversas, mais redundância na letra de música e, por sua vez, mais concisão na poesia. A ideia aqui é a de que a letra, em sua performance musical, tende a certas repetições e extensões de preenchimento da frase melódica que pode levar à redundâncias.

Da perspectiva da melodia, é correto afirmar que o compositor pode musicar qualquer tipo de texto, seja um poema com musicalidade própria, uma letra feita em sincronia ou não com a melodia, seja um texto em prosa. A este respeito, veja-se o caso em que Caetano Veloso musicou um texto em prosa de Joaquim Nabuco, no CD Cores do Norte

Numa tipologia um tanto redutora, pode-se dizer que há três modos de compor uma canção (melodia e letra): 1) música sobre o texto (poético ou não); 2) sincronia música-texto; 3) texto sobre música. Fato é que há música cantada e há música falada. Evidentemente, as possibilidades da composição são bastante amplas para serem postas em tal nível de restrição.

O que sustento aqui, contudo, diz exclusivamente respeito à relação melodia e letra, como acentuado acima. Seja como for, pode-se dizer que o poema traduz, em sua corporeidade, uma musicalidade própria, diferentemente, em princípio, da letra de música, que se compõe numa interação com a melodia. Em todo caso, uso a condicionante “em princípio”, por reconhecer que tanto a poesia quanto a letra de música assumem configurações de linguagens que se legitimam como poéticas.

Outro ponto que gostaria de mencionar, apenas de passagem, dado os limites do espaço que disponho aqui, e por fugir, em parte, do que apresentei até o momento, pode ser identificado como uma “nova performatização da palavra poética”, em termos de uma reconfiguração de sua mais remota e original forma de expressão, a oralidade - para desenvolver esse caminho, seria necessário da Revista um espaço específico. Por isso, não pretendo estender a questão desde suas primeiras manifestações até seus desdobramentos contemporâneos, longe disso, limito-me a dar o registro.

Quero, assim, e para não deixar no silêncio, fazer unicamente alusão a algumas das manifestações atuais que podem ser traduzidas como bandeiras de novas representações identitárias, cujas expressões poéticas têm sido assumidas por segmentações juvenis oriundas de centros urbanos, em geral, habitantes das periferias das cidades, que centram sua poesia em pautas diretamente ligadas ao corpo, às etnicidades, às questões de gênero, sobretudo na forma de protesto relativo às relações de poder e exclusão, como é o caso da cultura hip-hop, em particular, com referência às suas batalhas ou competição de poesia, os "poetry slams"  - tais pautas não são, contudo, mera expressão conteudísticas, visto que o elo semântico desta poesia de oralidade está intimamente enredado num jogo de corporeidades, que é a forma de sua expressão.

Penso que a diversidade identitária dessas manifestações como construtos do sujeito em suas subjetividades individuais e coletivas, processada em seu cotidiano, possibilita às/aos artistas envolvidas/os nesses movimentos, o reconhecimento de formas discriminatórias e de alijamento sofridos pelas comunidades em razão do gênero, da cor ou da orientação sexual, por exemplo.

Trata-se de um cenário particularmente desfavorável, do ponto de vista do que é estimulado pela sociedade de consumo, do mercado capitalista, que é, por sua natureza, um fator de exclusão, numa sociedade altamente desigual como a nossa. Num espaço social sufocante tal qual esse cenário aponta, as/os artistas passam a assumir uma poética mais envolvida num sentimento de pertença às comunidades dos que estão "de fora", do que em modos de expressão que se traduzem, poderíamos dizer, numa espécie de lírica do tipo ensimesmada, algo como uma Egotrip.

NOTAS

[1]  Essa é uma poesia que tanto exemplifica a poesia visual quanto a poesia sonora, dado que os sinais em estrela e em pontos são marcações sonoras do tom na leitura da poesia. (Ela foi musicada por Caetano Veloso). 

O AUTOR

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Paulo Marcondes Ferreira Soares é sociólogo e professor do Departamento de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), desenvolve pesquisa em Sociologia da Arte (artes plásticas, cinema, literatura e música), com artigos publicados na área, e leciona as disciplinas Problemas Centrais de Sociologia da Arte (nas graduações de Ciências Sociais e de Museologia), Arte e Política no Brasil e Sociologia da Arte (na pós-graduação em Sociologia). É poeta e compositor, com livros de poesias publicados e um CD de poesia em áudio, disponível nas plataformas. Como letrista, tem uma produção significativa de músicas gravadas por seus parceiros.

COMO CITAR ESSE TEXTO

SOARES, Paulo Marcondes F. Poesia e outros códigos. (Artigo). In: Revista Coletiva - Arte e Sociedade. nº 13. Publicado em XX junho de 2024. Disponível em: <coletiva.org/arte-e-sociedade-poesia-e-outros-codigos-por-paulo-marcondes>. ISSN 2179-1287.

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