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Sociedade

Arte e

Editor Temático: Moacir dos Anjos

nº 6 |  07 de junho 2019

Educação pela cana

Moacir dos Anjos 
 

O ABC da Cana é trabalho realizado em 2014 pelo artista Jonathas de Andrade, nascido em Maceió em 1982 e residente no Recife desde o início da década de 2000. Um homem do Nordeste, portanto. As 26 fotografias que compõem o ABC da Cana pertencem, desde 2016, à coleção do Museu do Homem do Nordeste – MUHNE, criado por Gilberto Freyre em 1979.

 

Elas integram também, contudo, o acervo de um outro Museu do Homem do Nordeste – MHN, inventado pelo próprio Jonathas de Andrade em 2013. Museu sem sede que serve como dispositivo flexível para reunir trabalhos do artista que, embora bastante diversos entre si, têm a ambição comum de rasurar narrativas estáveis sobre a região. Inclusive (ou principalmente), as que ancoram o museu mais antigo do qual toma emprestado o nome, como se fosse seu duplo ou sua sombra contemporânea.

 

Um museu ficcional que reúne instalações, filme, objetos, textos e fotografias e que ainda acolhe, a cada vez que é apresentado em museus de fato ou galerias, documentos de outras instituições públicas e privadas do Nordeste do Brasil, desestabilizando seus significados mais assentados. Ter o ABC da Cana na coleção do MUHNE é, assim, ter nele a lembrança de um gesto artístico que lhe é evidentemente próximo mas que lhe é também conceitualmente distante; é admitir, em seu acervo, um corpo estranho a uma instituição que, como qualquer museu, tem na conservação física e simbólica do que exibe uma de suas principais missões.

 

É, nesse sentido, um exercício institucional de se abrir às fissuras que a arte contemporânea provoca no campo dos discursos estabelecidos. Exercício de se expor às disputas permanentes embutidas em quaisquer representações que sejam feitas, no campo do sensível, desse “homem” do Nordeste brasileiro.

 

Em cada uma das 26 fotografias que compõem o trabalho, o artista registra um ou mais operários de uma refinaria próxima a Condado, cidade situada na região da Marta Norte de Pernambuco, historicamente associada à produção e beneficiamento da cana-de-açúcar. Nas imagens, os trabalhadores aparecem de corpo inteiro em meio a um canavial, manuseando talos de cana recém-cortados e construindo, com eles, as formas de todas as letras do alfabeto.

 

Quando expostas juntas sobre a parede, as 26 fotografias constituem um abecedário vegetal, dando concretude natural a uma abstração feita no âmbito da cultura. Abecedário que evoca, agora como objeto vivo, as fontes de letras entrelaçadas por desenhos de talos e folhas da cana desenhadas pelo artista Luís Jardim, em 1957, para a revista Brasil Açucareiro, publicação do Instituto do Açúcar e do Álcool. Instituição cujo acervo sobre a cultura do açúcar no Nordeste brasileiro integra a coleção do MUHNE desde sua criação.  

 

Chama de imediato a atenção de quem se detém nas imagens o fato de que todos os homens retratados são negros ou mestiços, confirmando a existência de uma distribuição de corpos na região (e no país) em que os de pele escura desempenham, quase como norma, atividades repetitivas de trabalho, sejam elas forçadas, como ocorrido durante três séculos de escravidão, sejam mal remuneradas, na posição de cortadores de cana-de-açúcar ou de operários das indústrias instaladas há menos tempo nesse território.

 

Aos corpos de pele mais clara, ausentes do registro feito – mas implícitos e implicados nesse abecedário –, são destinados, nessa distribuição de origem colonial que ainda vigora, cargos de mando e de trabalho criativo.

 

Recorte de raça e de classe que faz o ABC da Cana de Jonathas de Andrade indiretamente remeter ao método Paulo Freire para alfabetização de adultos, cuja implementação – interrompida pelo golpe militar de 1964 – foi tentativamente feita em zonas rurais como esta onde as fotografias foram realizadas. Método cuja etapa primeira era o levantamento, junto aos adultos que não sabiam ler e escrever – majoritariamente pobres e negros –, das palavras e questões que mais importavam para a comunidade onde viviam.

 

Como cana, por exemplo. Como trabalho exaustivo, por exemplo. Para o educador pernambucano, eram os significados sociais desses vocábulos e temas que serviam de base ao aprendizado formal da leitura e da escrita. Criar letras de talos de cana é lembrar, portanto, de fraturas antigas da história do Nordeste do Brasil, quando a geração de riqueza material fundada na produção de açúcar não se distinguia da geração de desigualdades abissais entre as condições de vida de trabalhadores e aquelas desfrutadas por donos de terras.

 

É lembrar, aos visitantes do MUHNE e ao próprio museu, a necessidade de multiplicar e complicar as narrativas de vida dos homens e das mulheres do nordeste brasileiro. Não somente dos de antes, mas também dos de agora. Como as histórias de vida daqueles operários fotografados refazendo, desde algo que lhes é próximo, o fundamento da linguagem.

O AUTOR

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Moacir dos Anjos é pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). Foi curador da 29ª edição da Bienal de São Paulo (2010) e é autor dos livros local/global: Arte em trânsito (Zahar, 2005), Artebra crítica (Martins Fontes, 2010) e Contraditório: arte, globalização e pertencimento (Cobogó, 2017).

COMO CITAR ESSE TEXTO

DOS ANJOS, Moacir. Educação pela cana. (Artigo). In: Coletiva - Arte e Sociedade. Publicado em 07 jun. 2019. Disponível em https://www.coletiva.org/arte-e-sociedade-n6-educacao-pela-cana-por-moacir-dos-anjos. ISSN 2179-1287.

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