

Foto: Gabriela Lacet/Galeria Marco Zero
Em Constelação de Serpente, Juliana Lapa produz imagens de um universo onde forças e elementos aparentes e ocultos se entrelaçam. A obra se move entre a terra e o cosmos, entre o tangível e o etéreo, criando visualidades carregadas de caminhos e possibilidades.
Em um diálogo com as ideias de Leadbeater e Annie Besant em Formas de Pensamento, podemos imaginar que as cores e formas vibrantes da pintura representam lançamentos energéticos que criam e pulsam no âmbito imaterial e espiritual. Para Besant e Leadbeater, todo pensamento se projeta como “uma porção vibrante de si mesmo”[1], criando imagens e formas no plano etéreo com o movimento de energias invisíveis, algo que podemos imaginar através da criação de Juliana Lapa.
Entre figuras menores que sugerem cenas de rituais ou observações ativas, imponentes serpentes e figuras humanas flutuantes, a composição ecoa imagens de um mundo em constante movimento. Nos convidando a uma noite ou madrugada, pode, aí, existir uma narrativa que pensa uma relação entre humano e não-humano, entre micro e macro, em uma interdependência entre elementos materiais e forças espirituais. A obra pulsa com a energia de uma crítica a um racionalismo ocidental, demonstrando que a criação é tanto uma expressão de vontade quanto uma entrega ao imprevisível.

O pássaro desenhado entre um laranja e vermelho no canto inferior esquerdo da obra pode nos convidar a um passeio pela imagem do Zhū Què, o Pássaro Vermelho das mitologias orientais, um dos quatro animais sagrados[2] associados às constelações na astrologia chinesa. Relacionado ao elemento fogo, à direção sul e à estação do verão, o Zhū Què percorre as Sete Mansões[3], ou Xiu, divisões da esfera celeste atribuídas ao sul. Essas mansões representam o desdobramento do tempo e do espaço em fases distintas, parte de um sistema maior de 28 mansões lunares, que guiam o movimento cíclico dos corpos celestes. Na obra de Juliana, o pássaro vermelho se apresenta em voo ao lado de uma figura humana que, com os braços erguidos, parece dançar entre terra e céu, como se conectasse raízes profundas ao cosmos em um movimento de elevação e entrega.

Essas formas internas presentes em algumas serpentes, que parecem delicadamente contidas como em casulo, um útero, podem evocar a ideia de sementes — pequenas entidades prontas para se expandirem e preencherem o espaço ao seu redor, carregando em si o potencial do que ainda não é, mas que já existe em potência. Guardando um mistério que não se revela de imediato, que por vezes descansa quente, mas que sugere um estado latente, força prestes a se desdobrar, talvez em explosão contínua de um sopro de vida e existência.
O fato de estarem envoltas no corpo da serpente parece sugerir que são protegidas, nutridas, talvez até moldadas por essa figura que serpenteia pelo quadro, com o movimento fluido e oscilante de quem acolhe e transforma. Assim, essas "sementes" ou embriões se mantêm em suspensão, que já existem por si só e que no vôo alcançam uma expansão para emergir. Elas parecem insinuar um ciclo não como um fim e começo distintos, mas como um contínuo, onde o potencial repousa, se acumula e, em algum momento, transborda em energia infinita e singular, com a estrela ao lado, presença da vastidão onde esses potenciais se lançam, indicando que esse gesto de germinar e crescer está entrelaçado com um todo e tudo.
A narrativa de Constelação de Serpentes evoca um mundo em constante movimento, habitado por figuras humanas flutuantes, serpentes imponentes e elementos ritualísticos com um tempo que foge à razão. Essa coexistência de seres e forças remete à ideia yanomami de um superorganismo descrito em A Queda do Céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. Para os yanomami, a “máquina do mundo”[4] é composta por incontáveis seres vivos, protegidos por guardiões invisíveis - os xapiri. Se aproximando das ideias da imagem de Juliana, em A serpente cósmica: o DNA e a origem do saber, Jeremy Narby também reflete que “o dragão-serpente representa a união de dois princípios opostos. Sua natureza andrógina é mais claramente simbolizada como Ouroboros, a serpente-dragão que encarna a união sexual permanentemente autofecundadora, como a sua cauda enfiada na boca indica”[5]. A obra de Juliana reflete essa interdependência ao apresentar uma paisagem onde forças se entrelaçam sem começo nem fim, numa pulsante rede de conexões.
As serpentes flutuantes, com seus movimentos sinuosos e indeterminados, evocam essa ideia de fluxo contínuo, em uma coreografia que fala de ciclos, de renovação, de uma natureza que pulsa e respira em constante diálogo consigo mesma. Esse fluxo pode se aproximar da ideia de informe[6], apontada por Bataille como uma reação contra a imposição de sentido, uma ideia que foge das classificações tradicionais de forma ou estrutura, remetendo a algo que se recusa a ser definido ou ordenado. Podemos imaginar um diálogo com Mil Platôs, onde Deleuze e Guattari propõem algo como uma rede rizomática — estrutura sem começo nem fim, onde as conexões são múltiplas e heterogêneas, sugerindo uma realidade onde tudo está em constante transformação, um devir[7], constante "tornar-se”. Esse caráter rizomático do informe parece refletir-se na obra de Juliana, que se abre para múltiplas possibilidades de leituras, flutuando.

A alquimia, frequentemente presente na simbologia das serpentes, atravessa a narrativa visual da obra. No livro Contra/políticas da Alquimia, Andityas Matos cita Atalanta Fugiens, obra emblemática escrita pelo médico, músico e alquimista alemão Michael Maier (1568-1622). Matos, através de Maier, reflete como, desde Aristóteles, o ato é associado à forma, enquanto a potência está ligada à matéria indeterminada [8]— um princípio que, para os alquimistas, encontra sua expressão em figuras como serpentes, dragões e vermes. Esses seres, sejam imponentes como o dragão ou minúsculos como o verme, são entendidos como uma “massa móvel”, cuja dinâmica de contração e expansão lhes confere uma fluidez similar à da água. Em suas sinuosas movimentações, as serpentes, tal como os rios, dobram-se e curvam-se em círculos, inclinando-se de um lado para o outro, num movimento incessante de ciclos transformativos.
Assim, as serpentes de Juliana Lapa podem flutuar como entidades guardiãs, capazes de transitar entre os mundos, entre o tangível e o etéreo, e que carregam em si uma dualidade que conversa entre a terra e a estrela, entre sabedoria, constante atenção e ameaça, rastejando num etéreo sem fim. Elas parecem emergir de um universo de sonhos e intuições, nos convidando a um ponto de partida para refletir sobre as intersecções entre o consciente e inconsciente, bem como arte e natureza.
Na alquimia também encontramos o princípio de que a diferença entre veneno e remédio reside na dose — uma lógica que ressoa com a dualidade presente na figura de Asclépio. Castigado a habitar os céus entre as constelações de Sagitário e Escorpião, ele ocupa uma região simbólica de fronteira entre os elementos fogo e água, forças opostas e complementares, ecoando uma possível tensão alquímica e mitológica, onde a serpente representa tanto o poder de cura quanto o potencial de destruição. Quíron, mestre de Asclépio, era o curador ferido, aquele que, mesmo carregando uma dor incurável, ensinava a arte da cura como uma entrega ao mistério. Em sua relação com Asclépio, transmitiu não apenas o saber técnico, mas também uma ética que nasce da vulnerabilidade, uma ciência que reconhece a potência e o perigo da cura, numa dança silenciosa entre forças opostas.
Assim como Asclépio foi elevado ao firmamento, as serpentes de Juliana ganham um estatuto ambíguo e celestial, movendo-se entre um sagrado e um profano, o instintivo e o transcendental, num limiar entre o medo e o fascínio. Essa conexão ecoa na constelação de Ofiúco[9], também conhecida como Serpentário, onde o herói é retratado segurando uma serpente. O Sol cruza Ofiúco de 30 de novembro a 17 de dezembro, se posicionando como um símbolo de transição e movimento entre dimensões.
Na obra de Juliana, esse simbolismo parece se expandir, capturando um movimento de tensão entre o terreno e o celeste, entre o material e o transcendente, evidenciando como os materiais e a experimentação técnica - entre lápis de cor, pastel a óleo e guache - ampliam as cores, texturas e uma cinesia da obra.
O percurso criativo destaca a capacidade de Juliana de dialogar com suas próprias intuições, permitindo que a obra evolua em direções inesperadas. Essa dinâmica sugere um processo de criação que é simultaneamente entrega e resistência, onde cada etapa adiciona uma camada à narrativa final e apesar de sua invisibilidade continua presente, não se limitando ao tangível; sendo uma jornada pelo invisível, pelo imensurável e pela constante interação entre forças aparentemente opostas.
Aqui, nesse exercício de leitura de algumas das visualidades criadas por Juliana Lapa em Constelação de Serpentes, pensamos como o observar atento de uma obra possibilita reflexões sobre arte, natureza e além, ou como as narrativas visuais podem transcender barreiras materiais e simbólicas, estimulando também novos olhares sobre o universo ao nosso redor e dentro de nós.
NOTAS
[1] “Todo pensamento dá origem a uma série de vibrações que no mesmo momento atuam na matéria do corpo mental. Uma esplêndida gama de cores o acompanha, comparável às reverberações do sol nas borbulhas formadas por uma queda de água, porém com uma intensidade mil vezes maior. Sob este impulso, o corpo mental projeta para o exterior uma porção vibrante de si mesmo, que toma uma forma determinada pela própria natureza destas vibrações.” em BESANT, Annie; LEADBEATER, Charles Webster. Formas de pensamento. Tradução de Joaquim Gervásio de Figueiredo. São Paulo: Pensamento, 1. ed., 1995.
[2] Sendo eles o Dragão Azul (leste), o Tigre Branco (oeste), a Tartaruga Negra (norte) e o Pássaro Vermelho (sul).
[3] Na mitologia, o sagrado Pássaro Vermelho percorre os caminhos das mansões de Poço, Fantasma, Salgueiro, Estrela, Rede estendida, Asas e Carruagem.
[4] “A máquina do mundo é um ser vivo composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela atividade vigilante de seus guardiões invisíveis, os xapiri, imagens espirituais do mundo que são a razão suficiente e a causa eficiente daquilo que chamamos de Natureza.” ver em KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu: palavras de um xamã yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
[5] Ainda, para o autor, “em toda parte onde a natureza é venerada como animada em si própria, ou seja, inerentemente divina, a serpente é reverenciada como seu símbolo” ver em NARBY. Jeremy. A Serpente Cósmica: o DNA e a origem do saber. Rio de. Janeiro: Dantes Editora, 2018.
[6] Sobre continuidade e informe em Bataille, apontamos sua discussão a partir de Didi-Huberman: “Mesmo no campo estético, o informe não poderia, portanto, se apresentar como um resultado absolutamente realizado: o informe, já o vimos, procede de movimentos - horrores ou desejos -, e não de estases obtidas. Ele não é, jamais será, absoluto (pois aí perderia seu valor de desmentido). Tende sempre para um impossível, não realiza de fato senão a própria impossibilidade de um resultado definitivo” ver em DIDI-HUBERMAN, G. A semelhança informe ou o gaio saber visual segundo Georges Bataille. Rio de janeiro: Contraponto, 2015
[7] O entendendo como “a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo.” ver em DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Trad. Suely Rolnik. Vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34, 1997.
[8] O autor diz que “Desde Aristóteles, se identifica o ato com a forma e a potência com a matéria indeterminada, que para os alquimistas se traduz nas serpentes, nos dragões e nos vermes que, independentemente de serem maiores como o dragão ou menores como o verme, são vistos como uma massa móvel porque se movimentam por meio das contrações e expansões de seus corpos, como a água derramada, descrevem círculos determinados, inclinando-se ora de um lado, ora de outro, como se pode ver na maior parte dos rios, que à maneira das serpentes, dobram seu curso e o curvam com sinuosidades”. ver em MATOS, Andityas Soares de Moura Costa. Contra/políticas da alquimia. 1. ed. São Paulo: Sob Influência, 2023.
[9] Ver mais em LORENZ-MARTINS, Silvia; Astronomia nas culturas: falando sobre mitos nas constelações. Rio de Janeiro: OV/UFRJ, 2024.
O AUTOR
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George Henrique Pereira é mestrando na linha de pesquisa Imagens, Patrimônio, Museus e Contemporaneidade no Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE e licenciado em História pela UFRPE. Pesquisa cultura, artes visuais, fotografia, política e espiritualidade, atuando em curadoria, produção e mediação cultural.
COMO CITAR ESSE TEXTO
PEREIRA, George Henrique. Arte, temporalidades e pulsações da vida (Artigo). In: Revista Coletiva - Arte e Sociedade. nº 15. Publicado em 14 de Março de 2025. Disponível em: <coletiva.org/arte-e-sociedade-n15-constelacao-serpente>. ISSN 2179-1287.
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